segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Sobre a Albânia, o final do ano e meus votos


 

                                                                        Para meus colegas do Campo Lacaniano

Desde o ano passado tenho pensado muito na Albânia. E semana passada sonhei com ela. Não quero ir lá sozinha, vamos comigo à Albânia?

O sonho foi assim: uma cidade com prédios baixos, como um caixote, feia e cinza, como as construções comunistas de Berlim Oriental ou Bonn. Vou saindo da cidade e tudo é montanhoso. Chuva, neblina e vento e entro em um povoado, tem muitas casas brancas de telhados cinza, com janelas bem altas, arqueadas, no estilo mouro, ao pé de um morro. E depois, mais ao longe da cidadela, já no campo, casas de pedra, em forma de torres. Sei quais são as cidades, tanto uma quanto a outra: primeiro Tirana, a capital da Albânia. Depois Gjirokastra, a cidade de nascimento de Ismail Kadaré, o grande escritor albanês. A geografia das duas tirei de seus livros. Tenho olhado fotos, lido os livros dele. E conversei com um rapaz albanês em Florença que contou-me tantas coisas sobre o país.

Descobri, anos atrás, a obra de Ismail Kadaré graças a Walter Salles. Seu filme Abril Despedaçado é uma adaptação do romance do escritor Ismail Kadaré. No Nordeste da seca e da fome, duas famílias brigam há tempos pela terra, ninguém mais lembra como a briga começou. Os Breves (esse poderia ser o sobrenome de todos os seres humanos), pais de Tonho, personagem vivido por Rodrigo Santoro, perderam o filho mais velho, assassinado por um membro da família rival, e retiraram a camisa do morto, penduraram no varal até o sangue amarelar. Quando o sangue seca é chegada a hora da cobrança.

Embora todo o contexto seja diferente, essa cobrança do sangue é o cerne do romance de Kadaré. Essa matança entre duas famílias não é considerada uma vingança para os albaneses. É o Kanun, um Código de Honra entre famílias, que regulamenta a vida das cidades desde antes dos tempos medievais. Gjorg recuperou o sangue de sua família, com a morte de Zef Kryeqyqe, então sabe que será o próximo a morrer. Consegue uma trégua de 30 dias. Viverá de 17 de março até 17 de abril. Anda pelos campos, pelas estradas entre os povoados, rodeando as montanhas de sua província, com uma fita negra na manga da camisa – marca dos que estão sob a lei do Kanun – vivendo seu último mês, esperando chegar seu abril morto, despedaçado.

Enquanto vive sua vida dividida em duas, os vinte e seis anos que já viveu e seus últimos dias, errante pelos lugares, como um Ulisses, longe de casa. Porém sua Ítaca é uma sepultura. Será por isso que Kadaré compara seu personagem com Ulisses em vários momentos do romance? O que já desceu ao mundo dos mortos? Diz que o dilema de Gjorg é muito pior que o To be or not to be de Hamlet, seu drama é o de Ulisses. Pela errância da vida tão marcada pela morte com data fixa, 17 de abril? “Abril, a partir de agora, envolvia-se para ele numa dor levemente azulada...Sim, abril sempre lhe produzira essa impressão, um mês em que alguma coisa permanece incompleta. Abril de amor, como diziam as canções. Seu abril inacabado....”

Porém, no roteiro para o cinema, o final trágico é amenizado. Um irmão mais novo toma o lugar do destinado a morrer e ele pode viver porque encontrou o amor. No romance de Kadaré, uma mulher chega até Gjorg, que está no alto de uma torre, aguardando seus últimos dias. Tenta tirá-lo de lá, mudar seu destino. Mas não sabemos o que conversam, ela sai e ele caminha para o fim, para cumprir seu destino. O filme tem um final meio ao estilo “o amor salva até da morte”, mas o livro não: o sujeito cumpre seu Dasein.

Este livro tão denso, entremeado de muitas histórias da Albânia, de suas cidades e seu povo, seus costumes, foi o primeiro que li de Ismail Kadaré. Depois li outros, em que conta de uma Albânia tão milenar, que descende dos ilírios, um povo tão antigo quanto os gregos. A língua grega tem palavras estrangeiras, palavras albanesas. Kadaré quer nos mostrar o quanto seu país é antigo, e como ele era outro, antes de tantas invasões. E que, desde o Séc. XIV, assujeitado por tantos dominadores, invasores, seu povo parece ao estrangeiro tão feroz, temível, mas ao mesmo tempo tem um costume em que um hóspede, quando entra na casa de uma família albanesa, é mais do que um pai ou um filho, é um deus. E como tal é tratado.

Então, com essa introdução sobre a Albânia, meu sonho e minhas errâncias literárias, queria desejar feliz ano novo a todos sem falar do calor campo-grandense, “esse braseiro, essa fornalha”, que - já me chamaram a atenção, reclamo muito – queria desejar feliz ano novo com a geografia e o tempo da Albânia na cabeça, com suas chuvas intermináveis, seus ventos, e a neblina beijando as montanhas. Com suas terras montanhosas que andam rondando meus sonhos. Meus votos a todos de muitas alegrias no final do ano e recomeço pleno de energias, pois ano que vem teremos muito trabalho a fazer, muitos sonhos a fazer, muitas viagens a fazer, encontros a organizar. Enfim, nossas errâncias do ano vindouro serão grandes.

E falando em votos, aproveito para agradecer a todos os votos depositados em mim para o CRIF e dizer que não se preocupem que volto do estrangeiro albanês para o nacional de nosso campo no início de 2013: latino-americano, americano sem ser latino, europeu, australiano. E, claro, brasileiro.

Mas por ora estou albanesa, vivendo às margens do Adriático. Quem vem comigo à Albânia?

 

domingo, 9 de dezembro de 2012

O centenário de Luiz Gonzaga


Na Revista Bravo deste mês, a capa é Gilberto Gil com uma das frases dele dadas em entrevista à Bravo: “Eu não existiria sem Gonzagão”. A entrevista de Gil aparece logo depois da matéria sobre Luiz Gonzaga. Seu centenário tão comemorado é uma homenagem que o Brasil presta a esse grande músico, que foi influência para tantos músicos que vieram depois dele. Para encerrar a entrevista, a Bravo fez uma pergunta besta a Gilberto Gil: Michel Teló não existiria sem Gonzaga? Que Gil responde rindo: “Eu não existiria sem Gonzaga! Imagine o Michel Teló, que pintou bem depois.”.

Não entendi porque o jornalista Armando Antenore simplesmente ignorou em sua matéria o filme de Breno Silveira “Gonzaga de pai para filho”, filme visto por mais de 1 milhão de pessoas. Não gosto quando uma matéria faz uma coisa dessas.

Uma coisa importante que a matéria conta: que Luiz Gonzaga, caminhando por uma rua de Fortaleza, entrou em uma loja e tirou o último LP de Caetano Veloso da prateleira – Caetano estava fora do país, exilado, pela perseguição política destes tristes tempos do Brasil – e se emocionou ao ver que no disco com todas as novas músicas de Caetano, havia uma exceção: Caetano cantava Asa Branca, essa música  linda, com letra de Gonzaga e Humberto Teixeira e divulgada para os quatro cantos do mundo por Gonzaga.

Mas eu vou fazer minha homenagem agora a Gonzaga, comentando sobre o filme de Breno Silveira, que eu simplesmente adorei, me emocionei, lembrei de meus anos de faculdades e morri de saudades de Gonzaguinha.

Gonzaga de pai para filho retrata a vida de dois artistas fundamentais para nosso país e mostra os dilemas de uma relação tão complicada entre pai e filho, repleta de desavenças, decepções, mas de um amor muito grande que os une. E também um amor muito grande pelas raízes. Em Gonzaga, o amor pela terra, o sertão pernambucano, que ele leva consigo para onde vai.  E por seu pai Januário, que lhe ensinou ainda menino a arte da sanfona e que lhe diz uma frase importante, prova do amor de um pai: quero que você seja feliz meu filho. A matéria da Bravo reproduz uma foto de um show de Gonzagão tocando sanfona com seu pai Januário.

Gonzaguinha é mostrado no filme como o menino órfão de mãe, afastado do pai, que peregrinava pelo Brasil, divulgando sua arte e que não queria o filho envolvido com a música, o queria doutor, com diploma. Foi criado pelos amigos do pai, por Dina, que Gonzaguinha chamará de mãe, eternizada em suas músicas: “O Dina teu menino desceu o São Carlos, pegou um sonho e partiu. Pensava que era um guerreiro. Com terras e gente a conquistar...”.

O filme dá uma versão que não sabemos o tanto que é verdadeira, mas que fica linda na história: que Gonzaga precisava se “tornar alguém” em busca de reconhecimento, pois amava a filha de um coronel, para quem ele era um menino pobre, mulato, sem eira nem beira. Caiu no mundo para estar à altura de sua amada. Porém, o grande amor que fica, também, evidente, é o de Gonzagão pelo Nordeste, sua terra, suas raízes, sua gente.

Os atores que fazem Gonzagão são muito bons. Sobretudo Nivaldo Expedito de Carvalho, que faz o Gonzagão jovem. Ele tem um carisma tão grande, que quando sorri ilumina a tela. Ele e o ator que faz Gonzaguinha, Julio Andrade. É um Gonzaguinha  encarnado espantosamente, com seus gestos, com seu olhar por vezes raivoso. Julio Andrade incorporou Gonzaguinha.

Passei os anos de faculdade escutando Gonzaguinha em um velho Gradiente, adorava e adoro suas músicas, letras de rebeldia, amor, hino à vida, que é bonita, bonita, e que ele não cansava de cantar. Em um domingo de manhã, com aquele chamado da TV Globo, que já sabemos que é prenúncio de desgraça, fiquei sabendo da morte de Gonzaguinha, perto de Pato Branco, no Paraná, cidade que eu conhecia, perto de onde vive meus tios, as raízes de meus pais, morreu em 1991 um dos maiores cantores e letristas do Brasil. Chorei como se fosse da família. Minha amiga Marta Senghi chorou quando Renato Russo morreu, para mim, o sofrimento foi a morte de Gonzaguinha. Sua obra fez de sua vida muito mais do que um nada no mundo.

Há quem fale
Que a vida da gente
É um nada no mundo
É uma gota é um tempo
Que nem dá um segundo...

 

 

domingo, 2 de dezembro de 2012

Zeca Baleiro


Ontem, aqui em Campo Grande, na Livraria Leitura, organizado por Pietro Luigi – esse carioca que contribui para a cultura sul-mato-grossense – Zeca Baleiro autografou seu CD “O disco do ano”. Não pude estar presente, a responsabilidade com minha clínica, com meus pacientes, a quem escuto suas dores de viver, não me permitiu estar presente a um evento de meio de tarde. Porém Pietro pediu a Baleiro autógrafo em dois CDs, o meu e o de presente que darei. E no meu, conto para vocês com toda a metidez, Zeca Baleiro escreveu: Para Andréa Carla,  calor, prazer, poesia. Achei lindo, lindo. Só não gostei do calor, mas na virada do ano, quando estiver no meio do gelo, seus votos vão me esquentar. Aqui em Campo Grande não precisa

Estou brincando, na verdade sei que para esse poeta, o calor que ele deseja é a paixão de viver, a alegria, como ele escreve a seguir, o prazer e a poesia de viver.

Adoro a musicalidade de Zeca Baleiro, mas sobretudo as letras de sua música, por sua poesia e pelas brincadeiras que ele faz com as palavras, jogando com a homofonia em vários idiomas. Um grande poeta do Brasil, e além do mais, um poeta com ritmo.  Coisa ímpar nesse momento de Tum Tum Tum.

Vejam que poemas nesse CD: “[coração] Bandido cansado de enganos. Herói de capa e espada na mão. Esquece metas retas e planos. Veleja no mar escuro da ilusão”. Essa estrofe é da canção “Calma aí, coração”.  E a faixa 10 é a música “Felicidade pode ser qualquer coisa”.  Ele diz que se você quiser ser feliz, tente. Felicidade pode ser qualquer coisa, um futebol na tarde de domingo – isso só se for para os homens – um beijo, um orgasmo, uma cachaça. Está certo, felicidades muito masculinas. Mas na última estrofe, ele é universal: Vida eterna é vida de sonho, Deus é o tempo, sonhar é a salvação. O sonho de Lennon morreu. O meu não”.

E na música desejo, escutei lembrando do que Lacan escreveu: o artista sabe o que o psicanalista ensina. A vida segue e não estanca o corte, a peleja. “Você faz planos, planeja, deseja e o desejo sangra. Quer uma casa em Angra. Quer carro i-pad família. Filhos na universidade.” E segue mostrando um sujeito que acha que desejo são coisas, aquisições que se vai tendo na vida. Mas tem a falta a falta, a falta, a falta, que a vida devasta. Assim, uma falta repetida quatro vezes na música e milhões de vezes na vida inteira. Assim, eu entendi a repetição . Ao final, conclui que a paixão não pode morrer. “Pra todo mal vem um bem. E tudo mais é essa dura dura peleja”.

 

 

 

quinta-feira, 22 de novembro de 2012

O filho de mil homens

Terminando de ler, O filho de Mil homens, de Walter Hugo Mãe. Que livro lindo! Livro que ganhei de presente de Elynes Barros Lima, com dedicatória do autor e tudo. Esse foi um desses presentes que a gente nunca esquece. Ainda mais que não entendi a letra do autor e a dedicatória ficou enigmática. O livro é sobre os desencontros que as pessoas vão tendo na vida. E sobre a diferença entre os homens e a mulheres. O autor repete em três momentos da obra: "Os homens eram todos iguais. Somente as mulheres podiam aceder à diferença".
E outra lição que um personagem nos dá: ser o que se pode é a felicidade. Não adianta sonhar com o que é apenas fantasia, com o que é impossível. "A felicidade é a aceitação do que se é e se pode ser". Mas esta é uma lição masculina.
A felicidade para a personagem feminina, Isaura, "a mulher carregada de silêncios e ausências" era o amor. E ela responde assim a essa espera do amor, que não chega, não chega: "Porque o amor era espera e ela, sem mais nada, apenas esperava. A isaura sabia que amava alguém por vir, amava uma abstração de alguém no futuro. Ela esperava o futuro, e esperar era já um modo de amar. Esperar era amar. Certamente, amava de um modo impossível o futuro. Disse: eu pensava que o amor era bom".
Nem tenho mais palavras que as do próprio autor para dizer o tanto que o livro é lindo.

terça-feira, 13 de novembro de 2012

Skyfall

Venho aqui pagar a boca: tinha avacalhado com Daniel Craig como 007. Os dois primeiros filmes dele no papel do sempre charmoso agente secreto, para mim, tinham sido um fracasso total. Ele tinha virado um troglodita insensivel, lutador do UFC, sem inteligência nenhuma, que nem gostava de mulher. Enfim, um horror de roteiro e de atuação de Daniel Craig.
Neste sábado assisti Skyfall e adorei. Neste filme é o mesmo 007 de sempre: inteligente, estrategista, muito mais do que atirar, prova a todos que não está passado do ponto. E além disso tem a atuação de Raph Fiennes, ator que adoro, e sobretudo de Javier Bardem. Bardem está um vilão memorável. Há uma cena excelente em que Bardem/Ramirez, espião que pretende matar M., tenta seduzir Bond para ficar do lado dele. Bond amarrado, feito prisioneiro e o outro, sedutor, mostrando que deseja homens, passa a mão pela perna de Bond e lhe diz "para tudo tem uma primeira vez". E Bond, responde também bem sedutor: "e quem disse que é a primeira vez?" Antes de desarmar todo mundo, é claro. E ficamos sem saber se, de fato, ele já tinha se deitado com um homem antes.....
Roteiro excelente.

quinta-feira, 25 de outubro de 2012

A herança de um pai

Acabei de ler Ernestina, de J. Rentes de Carvalho. É um volume de memórias do autor, memórias ficcionadas, lembra seu editor. É também uma história sobre o Norte de Portugual entre 1930 e 1950. Sobre a vida rural difícil dos camponeses, a história de um exôdo, pois eles começam a almejar viver nas cidades. A história de Vila Nova de Gaia, pequena cidade perto de Porto está bem retratada no livro. É nela que Ernestina, a mãe do escritor, vai viver na casa de seus tios, pois vive uma guerra devastadora com a mãe e seu pai decide que assim, duas mulheres guerreando dentro de casa não se vive. E ela abandona o campo, passa a viver com os tios, na cidade. Os tios têm dois filhos, um deles morre e o outro vive de bebidas, mulheres e farras. É com esse que, posteriormente, eles casam Ernestina. E assim, casam o filho com a sobrinha, que criavam como filha.
Casamento feito para "consertar" um homem, tirá-lo da farra, das tavernas e que, claro, não dá certo. O autor/narrador nasce desse desencontro, dessa expectativa frustada, desse arranjo sem amor, sem esperanças, sem desejo. Desde cedo percebe o desencontro, as brigas, as saídas do pai para os bares, a volta embriagado, as agressões físicas.
E para se refugiar desse mal-estar, ele vai olhar para outros lugares. Descobre o prazer de olhar tudo à distância, de um binóculo: "perdia horas a espiar a cidade com o binóculo, admirado das mudanças que a guerra causava". Paralelo ao desencontro dos pais, vivia uma infância de muitas experiências, descobertas, pesquisas. Tem um saudosismo da infância: "A vida nunca mais voltaria a ter semelhante caleidoscópio de surpresas e mistérios, de romantismo, de irrealidade. Em tudo, por toda a parte, era como se constantemente se abrissem portas que ora revelavam ameaças ou deixavam entrever esperanças".
Ainda garoto sentia-se inapto com as meninas, era baixinho, tomava xaropes para crescer e não adiantava. Sentia que os outros garotos tinham fama com as garotas da escola. Com cerca de 10 anos, no exame médico da escola, o médico diagnostica que ele tem uma corcunda que o fará sofrer na vida adulta. Os pais se preocupam e levam em outro médico. Esse descarta a corcunda, mas descobre nele um problema que não quer falar na sua frente. Pede que saia e conta aos pais. Começou a tomar injeções bem doloridas para isso que ele descobriu, logo em seguida, a causa: sífilis congênita. E percebeu que depois desse diagnóstico, "a zaragata começou na cozinha".
Ele sabia que sífilis vinha de coisas que ele ainda não tinha feito, mas não entendia o congênito. "e a procurar o sentido no dicionário compreendi que, como outros bens e males, a mazela me viera por herança. Com dores nas costas pagaria eu os gozos de meu pai, de meus avós e dos avós deles, que de geração em geração tinham passado o mal-turco uns aos outros".
E assim, usará essa herança a seu favor: putanheiro, como o pai. Quando os colegas da escola perguntam porque toma injeções tão dolorosas, responde que é para "uma galiqueira que me pegara uma puta do café Royal".
Livro lindo, com um final lindo. Termina depois da primeira experiência sexual com uma garota criada por tios e que tinha o nome de Ernestina. Será que realmente a garota tinha esse nome e era realmente mais uma Ernestina "adotada" por tios? Ou é um Complexo de Édipo ficcioso criado pelo autor? Pouco importa. É um final lindo: de uma Ernestina até a outra.
E o portugues de portugal, que coisa linda! Zaragata é confusão, desordem. Galiqueira é outro nome para a doença sifilítica.

domingo, 14 de outubro de 2012

Diário argentino II

Terminei na quinta-feira de ler o "Diário argentino", de Gombrowicz. Livro triste, de um homem deslocado e triste, que não se sente feliz em nenhum lugar. O livro termina quando ele volta para a Europa, depois de 24 anos de exílio argentino. Mas, vendo as costas de Barcelona também não fica feliz. A Europa também não é seu lugar. E relembra que está indo para Paris. Esteve lá trinta e cinco anos antes e também sentiu-se estrangeiro.
Fiquei pensando sobre isso: é preciso na vida saber viver como um estrangeiro, um estranho em um lugar. Seja ele onde for. Saber perder-se e encontrar-se. Não importa onde.

segunda-feira, 8 de outubro de 2012

Mudou

Uma bobagem, uma tolice. Por que disse isso? Uma frase torta, falada na hora errada. Um instante de nervoso, um tropeço daqui, outro de lá. E depois, a vergonha. A inadequação. A  impressão de que se foi mais tolo do que nunca. É isso o desejo: nos atropela, nos interpela, nos interpreta. Tolos, sempre tolos. Divididos, perdidos. Deslocados. Tem alguns que são mais privilegiados para explicar isso: os poetas.
Estamos perdidos, sem localização geográfica, mas não sem poesia. Eis Taiguara:
"Mudou o tempo e o que eu sonhei para nós. Mudou a vida, o vento, a minha voz."

quinta-feira, 4 de outubro de 2012

Madrugei hoje

Madruguei. Vendo notícias. Uma animada entre tantas de morte, acidente, roubo, corrupção, mensalão: Liam Neeson tira a roupa no programa de Ellen Degeneres. E aquele homem gigante, de mais de 1.90m de altura fica só de cuecinha rosa pink, em apoio à campanha do cancêr de mama. E eu sou fã dele, um dos grandes atores do momento e ainda de cueca rosa pink? Maravilha. Quinta começou bem.

Pescando na Lagoa do Itatiaia

          Uma última coisa meio estranha que aconteceu domingo. Conto e vou dormir: um garoto que mora no condomínio veio me mostrar, dentro de uma vasilha, um peixe que ele pescou na piscina do condominio. Digo que não é verdade, que ele pescou na Lagoa do Itatiaia. Ele responde que sim, envergonhado. Na verdade, ele sabe que não poderia ter pescado lá. Ai eu digo - foi automático, não queria colocar tanta culpa na criança - eu acho que você devia devolver à lagoa, no mesmo lugar onde pegou, por que o pai e a mãe do peixinho devem estar atras dele. Foi imediato: a criança fez uma cara de tristeza e culpa. Não tinha pensado no peixinho como tendo familia. Ajudei a criar a neurose em uma criança no dia de hoje. Que coisa.......

segunda-feira, 1 de outubro de 2012

Diário argentino

        Quando descubro um novo autor é como se descobrisse um mundo. Dois escritores argentinos escreveram sobre ele: Witold Gombrowicz. Em 1942, ele foi para um congresso de literatura em Buenos Aires. Estava no navio, à caminho, e os alemães tomam seu país, a Polônia. Sua familia judia é enviada aos campos de concentração. Ele não tem para onde voltar. Está "preso" em Buenos Aires. E fica lá, quase 25 anos. Anos depois, passa a escrever não mais em polonês, mas em espanhol.      
      Estou, agora, deitada na cama e olhando a lua pela janela aberta. E lendo "Diário argentino", de Witold Gombrowicz, o mais novo escritor exilado que descobri. Uma partezinha para vocês, em que fala que a alegria é o melhor do ser humano: "essa alegria que es nuestra única victoria sobre la existencia, la unica gloria del hombre.".
      Não quero interpretar o escritor, mas se vocês lerem o livro, verão que a alegria falta nesse relato diário de seus dias portenhos.

domingo, 16 de setembro de 2012

Minha "relação emocional" com o divã

            A jornalista Angela Kempfer pediu-me um relato de minha "relação emocional" com o divã para uma matéria que está escrevendo sobre o mobiliário. Escrevi o que está abaixo. Gostei e resolvi publicar também aqui.        
          Freud inventou o uso do divã - o mobiliário era bem comum à época, uma peça clássica - porque descobriu que a hipnose não funcionava, os pacientes não lembravam o que estava realmente no inconsciente. E também aquilo que ele sugestionava-os, hipnotizados, não tinha efeito senão por dias. O cara a cara também não lhe serviu, pois percebeu que as pessoas precisavamm controlar pelo olhar do outro como estavam sendo vistas, aprovadas. Fazemos isso toda hora (fulano me olhou de tal jeito, será que é de aprovação? me disse bom dia com um olhar tão sério, está bravo comigo? Está ou não gostando do que eu estou falando?), então imagina o peso disso durante o tratamento? É maior ainda.Assim ele inventou o uso do divã: o sujeito deita e olha para qualquer lugar, não conseguindo controlar como está sendo olhado, diz o que vir à cabeça. A regra: associação livre.
         Então, o principal não é o divã, é estar fora do controle do olhar.Quando comecei a fazer minha formação psicanalítica, mandei fazer um divã. Um bem simples, que era o que o meu dinheiro conseguia pagar. Meu analista também tinha um divã simples. Então não me preocupava com a simplicidade do divã. Porém, eu deitada no divã, enquanto fazia minhas sessões, olhava para o lado, uma parede toda de vidro e,para além do jardim de inverno da sala dele, ao longe, enxergava o Cristo Redentor. Como eu não conseguiria em minha sala, ter ao longe um Cristo Redentor, não me importava que o divã fosse simples.
           Uma parte de minha formação psicanalítica, fiz olhando para o Cristo. Depois ele se mudou para outro consultório,continuei minha análise, mas faltava a vista. Estou fazendo humor disso, só para dizer que o mais importante é olhar para outro lugar e com isso se afloram lembranças, cenas que não se tinham antes, que estavam apagadas, no inconsciente.
           O divã é secundário. Tanto que, por vezes, estando em outras cidades para dar seminários e cursos, atendo em quartos de hotel, consultórios emprestados de colegas e, metaforicamente, carrego meu divã comigo: ele é minha escuta, que propicia aos pacientes que se "deitem no divã da linguagem".
Mas à parte tudo isso, conto duas histórias, primeiro uma de Freud e, depois, uma minha: O consultório de Freud era de mobiliário simples, divã simples e para não ficar tão clean, tinha um tapete persa pregado na parede, atrás do divã, porém no anteparo da lareira, ele colocou pequenas estatuetas, de sua rara coleção de estátuas antigas, estátuas egipcias, uma coleção de falos, vasos etruscos, etc. O divã simples era ofuscado por essa coleção. Para imitar Freud, e sem condições financeiras para coleção de arte antiga, nem para mirada do Cristo Redentor, coloco na prateleira de livros em frente, uma coleção de bolinhas de neve, dentro com pontos turísticos de todas as cidades por onde passei. Não é a mesma coisa. É muito menos.
         Outra história: anos atrás, andando em uma loja de móveis em Bruxelas - Maison du Monde - uma das lojas mais lindas que já fui, vi um divã lindo e quis muito ter um igual em minha sala. Logo eu que sou adepta do divã simples, vou gostar de um do outro lado do mundo. Tirei uma foto dele, continua guardada a foto. Foi um sonho de consumo. Quem sabe um dia mando fazer um igual? Por ora, continuo reformando meu antigo divã, gosto dele, tem me dado sorte na vida profissional. Eis uma pequena superstição boba que me impede de ter o caro-cópia-plágio do divã de Bruxelas.


sexta-feira, 20 de julho de 2012

A Lebre da Patagônia

A Lebre da Patagônia é um livro imprescindível para se compreender o que foi o século XX. Escrito pelo jornalista francês Claude Lanzmann, da revista Les Temps Modernes, nascido em 1925 e vivo até hoje, ele traça um panorama da Segunda Guerra Mundial, do Holocausto, da revolução de 68. O autor visitou a China e a Coréia do Norte, para conhecer os regimes comunistas que se instalavam ali; militou a favor da liberação da Argélia pelo regime francês; relata as impressões que teve em diferentes momentos que visitou Israel.


Viveu durante sete anos com Simone de Beauvoir, em uma relação a três – eles dividiam um apartamento e Beauvoir continuava com Sartre, que morava em outro apartamento, nas arredondezas. Com Simone de Beauvoir, nesses anos que viveram juntos, correram o mundo, por seus vários continentes. Por vezes com Sartre, outras vezes só os dois. No começo do livro conta sobre sua judeidade, a condição de ser judeu nos colégios franceses, o antissemitismo nos anos antes da guerra, de como ele, o pai e os irmãos sobreviveram porque tinham passaportes falsos, com sobrenomes não-judeus. Enfim, reafirmo sua importância: é uma aula de história.

Para contar sobre o Holocausto dirigiu um filme sobre ele, intitulado em hebraico, Shoah, que demorou mais de 10 anos para finalizar e que tem quase oito horas de duração. Nos últimos capítulos do livro conta-nos detalhes sobre a produção do filme, sua obstinação em convencer alguns membros da SS a lhe dar testemunho sobre como operacionalizavam a Solução Final; as filmagens nos Campos de Extermínio da Polônia, o antissemitismo que ainda grassava por lá, entre os camponeses das cidades pequenas, nos arredores dos Campos; os problemas políticos que teve com o lançamento do filme. Em 1985 ele ficou pronto, quando ninguém mais acreditava que ele fosse finalizá-lo. Nessa questão judaica só há uma coisa que não gostei: quando ele chega ao nome de Ariel Sharon. Ele, um autor que é veemente em sua opinião e denúncia dos erros/crimes de todos, cita Sharon e nada. Nem uma palavra, nenhuma crítica. Nada. Nessa parte decepcionei-me com o autor.

Perguntei-me porque o livro assim se intitulava. Na epígrafe, o autor cita um trecho de um livro: A lebre dourada, de Silvina Ocampo e mesmo lendo essa epígrafe fica o enigma a ser solucionado, no final. Eis um resumo da epígrafe: em um campo, uma lebre corre, atenta a tudo, aos menores ruídos. Um dia, como outro qualquer, escuta muitos latidos. Começa a correr. Grita para os cachorros uma pergunta, “aonde vamos?”. E os cachorros respondem: “Até o fim de sua vida!”. E a lebre aparece novamente em uma cena que o autor não esquece e nos conta em dois momentos do livro: ele e Simone de Beauvoir, viajando à noite, pela Sérvia, dirigindo um carro velho, atropelam muitas lebres. Ficara muito angustiado, desviava o carro sempre que possível, queria salvá-las da morte. Quando visitou a Patagônia, algo parecido aconteceu: quase matou uma. Por estas situações podemos entender que as lebres são os seres para a morte. Em seu filme queria captar, a partir dos depoimentos, todos os detalhes de como foi o momento final dos milhões de judeus, enquanto marchavam para morrerem na câmara de gás (Não sei como ele escreveu em francês, mas em português isso foi traduzido simplesmente como “gazeados”. Achei horrível escrever ou traduzir assim: dizer gazeado retira o caráter de assassinato do ato). Ele queria captar algo ainda não dito que pudesse entender o momento final. Reprisa a pergunta: por que não fugiram? Por que não correram? Mas não colocada por ele, por outros historiadores. Não quer dizer que tenha validade para ele a pergunta, porém há uma relação entre correr e mesmo assim morrer, na lebre e não correr, não fugir e mesmo assim morrer, nos judeus. Posteriormente descobriu, durante as pesquisas para seu filme, relatos de que muitas lebres freqüentavam o Campo de Concentração de Birkenau, e contorciam-se entre as cercas e saíam do campo quando queriam. Assim, a lebre é, também, uma sobrevivente, a que escapa, faz um malabarismo, corre, foge e então, símbolo da vida.

Tem uma coisa que não gostei em tudo que ele relata, não tem relação com essa densa e importante história de vida e de forma alguma com sua visão sobre o Holocausto. Fiquei meio enojada de seu jeito de escolher as mulheres. Fiquei pensando uns dois dias nisso, fazendo a pergunta freudiana, ao inverso, o que quer o homem? É claro que só pode ser respondida na singularidade do caso a caso. Ele se orgulha de ter vivido com Simone de Beauvoir, depois se casou com uma atriz famosa de teatro, filha de industriais em que fica nos relatando o alpinismo nas montanhas chiques que fazia com o sogro. Depois nova esposa, uma escritora alemã, segundo ele a “mulher mais linda da Alemanha”. Fiquei curiosa e digitei no Google o nome dela. Nada de linda, mas para ele ficar com uma mulher tem que dizer que é muito linda, muito rica, muito conhecida, muito, muito, muito. Mas se apaixonou por uma mulher da Coréia do Norte, uma enfermeira que cuidou dele por alguns dias, uma mulher calada, da qual não entendia uma palavra da língua, que se comunicavam por desenhos, que mostrou a ele seu seio queimado por gás, com a qual só pôde ter um beijo, escondido em um canto do hospital. Quando ele retorna à Paris, ela manda uma carta para ele. Ele não responde, não faz nada. Volta cinqüenta anos depois à Coréia do Norte, com quase oitenta anos, atrás dela, fica andando a esmo pela cidade, não investiga nada, nem para saber se ela estaria viva ou morta, não pergunta sobre ela e volta para casa. Volta para suas mulheres, ricas, “lindas” e famosas.

Acho meio desprezível um homem que precisa se afirmar ficando com mulheres ricas, famosas, estilo celebridades. Isso é coisa de coluna social. Ele não precisava, com tudo que viveu, com tanto que escreveu, dirigiu, com seu papel de testemunha dos principais acontecimentos do mundo, com todas as viagens que fez por esse mundo enorme de meu Deus – eu gosto de gente que corre o mundo – não precisava disso. E além de tudo, na foto da capa do livro, tirado no Egito, com Beauvoir e Sartre, ele com cerca de uns 35 anos, era um homem bonitíssimo. Precisava disso? Precisava. Resta saber o por quê. Só ele pode respondê-lo.

O livro é ótimo, a história de vida e do século é ótima, só o homem é que é decepcionante. Mas leiam, vale a pena.

sexta-feira, 13 de julho de 2012

Abre-me e eu te devoro

A peça de Antonio Quinet, “Abrem-se os histéricos”, é um balé sincronizado de quatro histéricas mais uma, retratando os impasses de uma época que, de certa forma, ainda é hoje.

No final do Século XIX, Charcot encontrou na histeria uma doença verdadeira e não uma simulação ou degeneração. Uma doença encenada no corpo. E Charcot tornou-se à época, uma celebridade em Paris, um médico e mestre construindo um saber encenado no palco por suas pacientes histéricas. Era assistido por muitos, jovens cientistas como Babinski, que não acreditava na histeria – achava que as histéricas eram umas falsificadoras de sintomas, por isso propôs para a histeria um novo nome, pitiatismo, piti – e Freud, que apostava em outra cena como a causa da doença, uma outra cena, infantil e traumática, explicava esse teatro no corpo; bem como era assistido por literatos como Leon Daudet e Maupassant. Esse momento histórico é o eixo da peça do psicanalista e dramaturgo Antonio Quinet.

Em “Abrem-se os histéricos”, Babinski, Freud e mesmo Charcot são um tanto apagados, ficando em segundo plano. Não sei se foi intencional ou se os atores ainda estão meio deslocados diante do balé das histéricas – e como dançam bem! Não apenas Sarah Bernhardt, todas.

Quando as histéricas estão na primeira cena, os homens/doutores desaparecem e ficamos encantados com a dança/doença delas, com seu sofrimento, suas contrações, seus desmaios, suas contraturas. O que reina é o corpo, palco de uma verdade que denuncia uma mentira. Quinet contrapõe a histeria ao teatro, que encena uma mentira para dizer uma verdade.

E a histeria reinava na Salpetrière, no Século XIX, como reinará no século seguinte. Tanto que Freud a elegerá como a neurose de base, sendo a outra apenas seu dialeto. E Lacan a elevará a categoria de um discurso. Hoje os sintomas podem estar um pouco diferentes – embora ainda encontremos na clínica alguns casos como as pacientes de Charcot – porém o sofrimento no corpo continua o mesmo, com as fibromialgias, anorexias, LER e outros tantos que evidenciam que as mulheres – não somente elas, mas sobretudo elas – continuam sofrendo com seus corpos.

Os homens da ciência de hoje, como os da época de Charcot, continuam querendo abrir o cérebro e o corpo das histéricas, para decifrá-las, inventando remédios e terapêuticas e se irritando porque essas histéricas, ah, elas insistem. E continuam fechadas, enigmáticas, não querendo seu ser reduzido a uma compreensão débil.

A peça de Quinet mostra que a histérica encena o desejo sempre um tanto inominável, apreendido por um desvio, inassimilável a não ser pela palavra. Mesmo Freud se enganou em vários de seus casos sobre o que queriam suas pacientes histéricas nesse caminho em que acreditava decifrá-las, até se perguntar “mas o que quer uma mulher?” Para ele também a histeria ficou sempre sendo uma esfinge, mesmo com toda sua descoberta do inconsciente e do desejo.

A iluminação, o figurino e a música da peça são um primor. E a disposição do palco, com duas cenas, em que podemos ver a outra cena, através do vidro, foi uma estratégia excelente do diretor.

O dramaturgo nos mostra que as histéricas se furtam à decifração, se furtam a se abrirem, escapam de serem devoradas, classificadas, compreendidas e continuam a encenar no palco de seu corpo a verdade do desejo. Seu e do Outro. As quatro assim o fazem e também Madame Charcot, presa ao desejo do marido, correndo de um canto ao outro, despenteada e desgrenhada, atrás das histéricas, as outras mulheres para quem seu marido só tinha olhos.

Ao sair da peça, pensei: “se demorasse mais cinco minutos, iria sair daqui com o braço torto”. O engraçado foi que duas amigas, uma logo na saída, e outra no dia seguinte, disseram-me quase o mesmo. A histeria é contagiosa e quer continuar fechada – a despeito que tantas histéricas queiram se analisar – tal como uma esfinge. Na peça, os devorados somos nós. E também os atores masculinos, um pouco. Somos nós os devorados que saímos quase meio tortos.

Aliás, conclamo vocês a assistirem a peça e saírem dela sem entortar nem um dedinho sequer.



















sexta-feira, 29 de junho de 2012

Aniversário de minha mãe

Dona Eugênia, minha mãe, faz hoje 70 anos. No almoço de ontem, com filhos e netos, estávamos combinando o que fazer de almoço hoje e lá vem ela com seu jeito temperamental e suas ordens que não são desobedecidas: amanhã não terá almoço nessa casa, vou fazer minha cuca (típico bolo que os descendentes de alemães do sul fazem). E ela incrementou a receita há alguns anos atrás, colocou ricota, e fica melhor do que o que minha avó (mãe dela) e tias fazem.


Um episódio define bem minha mãe: dois anos trás, estávamos viajando, eu, ela, meu pai e meu sobrinho e teve um acidente na rodovia. Um caminhão de bebidas tombou, minha mãe abriu a porta e foi andando pela rodovia para ver o acidente. Imediatamente veio-me a lembrança o perigo disso, quantos acidentes não sabemos que acontecem com aqueles que param e andam à beira da rodovia? Rafael foi chamá-la e ela voltou. Dei uma bronca, lembrando a idade que ela tem. E ela me sai com essa: sinto-me com uns cinquenta anos. É muito curiosa!

E saúde de cinquenta ela tem. Adquiriu uma insônia e uma labirintite depois que perdeu um filho, o caçula, Osni, que partiu em 2008. Convive com uma insônia ocasional, uma labirintite ocasional, que junto com a saudade, não a deixou esquecer diuturnamente que perdeu um filho. Mas isso não lhe tirou a energia de vida que sempre teve.

Estamos proibidos de aparecer lá hoje na hora do almoço - estou em dúvida se posso ligar para dar os parabéns - mas terá um jantar e cuca de ricota depois, é claro.

Já nos disse tudo o que não quer ganhar de presente. Não gosta de coisas caras, nesse aniversário não quer flores, roupas, joías não usa. Praticamente só tive a idéia de lhe dar um chinelo de inverno, pois disso ela está precisando e não sabe.

Depois de escrever isso, afinal, nem sei mais quantos anos minha mãe está comemorando hoje.

sábado, 2 de junho de 2012

Saudades

É sábado de manhã, faz sol, faz calor e eu faço uma horinha para ir trabalhar. Sinto saudades da Bélgica, de uma janela para um canal, de andar pelas Ardennes Flamandes, dos pralinés da padaria da esquina, de viajar até uma cidadezinha próxima de Gand e, ao longe, enxergar o Mar do Norte. Sinto saudades do crepe artesanal, com geléia caseira de framboesa, feito pelas velhas senhoras flamencas; dos rodedendros nos jardins das primaveras frias. Sinto saudades da língua, do país, do povo, tão diferente de nós, brasileiros: receosos, cautelosos, mas quando abrem a casa e o coração, é uma entrega tal. Sinto saudades desse outro país, que não o meu, mas que habita em minhas lembranças.

Amanheci estrangeira.

quinta-feira, 24 de maio de 2012

Prata da Casa trinta anos depois

Velhos amigos cantam antigas canções

Velhos amigos que se encontram trinta anos depois, e que cantam não as novas canções, mas as velhas, as mesmas que cantaram outrora, à época de gravação do LP Prata da Casa. Isso foi o show de ontem, 22 de maio de 2012, no Glauce Rocha. Esse LP foi o mais falado e homenageado da noite. Ao meu lado alguém dizia “eu tive um” ou “eu estive no outro show quando foi gravado o LP e tinha 10 anos”. Quando velhos amigos se encontram “relembram loucuras de outros verões e fazem de conta que o tempo não ronda os seus corações”. Com essa música, de Almir Sater e Paulo Simões, eles, os autores, e todos os outros amigos, encerraram o show. Começo pelo fim, porque creio que o fim das coisas diz seu começo: foi isso o show, resgate da memória, através de um projeto da UFMS, que permitiu a todos nós reencontrar esses artistas, todos juntos, e creio que tambem nós, os espectadores, éramos velhos amigos. A observar que o tempo passou bem para os músicos sul-mato-grossenses, para os poetas-músicos de nossa região, esses artistas da “fronteira em que o Brasil foi Paraguai”.

Um show para gravação de CD e DVD é um pouco desestimulante: muita parafernália, assistentes de palco trabalhando, cada músico só cantou uma música, entra e sai de artistas, atrasos, câmeras, luzes, apresentador que falava demais de si mesmo. Enfim, mesmo com tudo isso, compartilhamos com os velhos amigos o percurso de 30 anos que cada um fez.

Quase no início estava lá o grupo ACABA, quarenta anos dos canta-dores do Pantanal, com a música Pássaro branco: “ainda criança aprendi o caminho dos pântanos, aprendi a voar. Sua asa desenhou meu retrato para ficar nessa terra.” Quando o ACABA acabou de cantar, vieram outros e sempre a referência era essa terra, a paixão pelo Pantanal, pelos sonhos guaranis, por esse planalto central de cerrados e pantanais, pelos Kadiwéus, remanescentes da grande nação guaicuru. Geraldo Espíndola cantou Kikiô, esse índio que nasceu no centro, entre montanhas e mar.

E falando dos Espíndolas, eles comparecem em peso ao show: Celito, Geraldo, Alzira, Tetê e Jerry. O que dizer mais? Eles já sofreram o tombamento, transformados em patrimônio da humanidade do Mar de Xaraés do cerrado central.

Temos o nosso mar, o Mar de Xaraés, longínquo. Deve ser por isso que quando um sul-mato-grossense vê o mar, tem uma nostalgia milenar. A paixão pela terra, pelas origens, que domina os homens, dominou todas as vozes, todas as letras. O homenageado foi José Boaventura, que esteve no Prata da Casa anterior e agora já se foi. Os Hermanos irmãos o homenagearam. Ele foi a presença-ausência da noite, que o tempo levou, mas a obra e a saudade deixou.

Quando Geraldo Roca cantou sua Mochileira, com a mesma voz linda e possante de sempre, pudemos constatar que ele continua com a mesma presença de palco de outrora. A conversa das velhas amigas – eu e minhas três amigas – no jantar pós show foi norteado pela pergunta: quem foi essa mochileira a quem um homem assim fica pedindo “fica comigo essa noite, me fala de outros lugares, etc”?

Como escrevi acima, assisti o show com três amigas e fomos conversando durante o show (baixinho) sobre o passado. Uma delas assistiu o show anterior. Não tinha a idade que disse que tinha, mas não entramos em celeuma de idade de mulher; a outra sabe de histórias de bastidores e teve um rápido affair com um dos pratas – engoli em seco com uma rápida e “pequena” inveja. Não conto mais nada sobre isso – e a outra, uma corumbaense, amante da música, que tem um trabalho no qual coloca as mãos na lama e na fauna pantaneira, ficou um pouco dispicionada com a organização do show. Dispicionada é um neologismo de uma velha corumbaense que ela lembrou para falar de sua decepção. A dispicionada foi eu: não estive a trinta anos atrás, não tive o LP-bolacha Prata da Casa, não tive affair com prata nenhum e não trabalho no Pantanal. A mais dispicionada e desprivilegiada das quatro e tenho a responsabilidade de escrever esse singelo texto como uma forma de agradecimento a Marta Ferreira e Angela Kempfer, do Campograndenews, que arranjaram uma maneira que eu fosse ao show mesmo com o teatro lotado. Meu obrigada para elas. Aliás, também não tinha ingresso.

Para encerrar, não quero resvalar na visão que havia mais entusiasmo e alegria no show original. Isso seria a saudade nostálgica ao estilo “em busca do tempo perdido”. Vi o show como uma festa, um brinde alegre a memória, a alegria do tempo vivido, a comemoração de obras construídas no percurso de trinta anos. E isso tanto do lado de cá quanto de lá do palco. Tim Tim.



sábado, 12 de maio de 2012

Te vi


Acordada desde as cinco da manhã porque o mundo estava explodindo em raios, trovões que iluminavam meu quarto e ensurdeciam meus ouvidos. O mundo eu não sei se explodia todo, ele é muito grande, mas quase todos os raios sob os céus de Campo Grande parece que vieram estalar sobre a Lagoa do Itatiaia. Fazendo nada em uma manhã sem luz do sol, e com uma eletricidade que não comparecia - faz só uma hora que voltou - mesmo assim, cantava mentalmente a mesma música com a qual fui dormir: Un vestido y un amor. Essa história de um homem que a viu esperando o tempo passar em Madri, e que para ajudar a viver, ela fumava e escrevia. E enquanto para ela não tinha graça esse país - só tinha um vestido e um amor - ele a viu. Ele não esperava ninguém e nada e sem expectativa, desavisado e surpreso, a viu.

quinta-feira, 19 de abril de 2012

Amo Lisboa

Amo Lisboa. Em cada cidade que ando, bato com meus tênis suas ruas, sinto-me estrangeira. Em Lisboa, estou um pouco em casa. Sua lingua, sua gente, suas comidas, a mistura de raças, as ruas sinuosas com seus elétricos parecendo saídos do passado, suas ladeiras, as ruas da Baixa que descem para se encontrar com o Tejo. Seus fados quase sempre tristes. Gosto muito da cultura portuguesa, do jeito aca...nhado e disfarçado de fazer chistes dos portugueses, parecendo que brigam, mas é para fazer graça. Na entrada do país, o policial me perguntou: que está acá de novo? Respondi que não tinha culpa de amar Lisboa. Cada vez tenho descoberto um novo escritor maravilhoso. Depois de José Luiz Peixoto e Gonçalo Tavares, em dezembro foi J. Rentes. Comprei dele "Com os holandeses" e "A amante holandesa". dessa vez voltei com mais livros dele na mala. E semana passada descobri mais um escritor excelente. Arrisquei comprar um romance policial e o livro revelou-se excelente. Indico-o: Francisco José Viegas, O mar em Casablanca.


E nem todos os fados são tristes. No Cd que comprei semana passada, um fado lindo, que canta a maravilha da vida e de viver em Lisboa. O homem na cidade, de Carlos do Carmo. Vou postar em seguida para vocês. Vejam que voz linda ele tem. E canta essa poesia: "Agarro a madrugada como se fosse uma criança, uma roseira entrelaçada, uma videira de esperança". E a flor que ele canta é a de Lisboa, a bem amada, que o quer bem e a quem ele quer bem.

Eu entro na poesia e complemento: Eu também. Ela é gira, muito gira.

Enfim, amo Lisboa, e tenho a geografia da cidade em minha cabeça. E em meu coração também, claro.

terça-feira, 20 de março de 2012

Por uma terça-feira de sol

Um brinde a esta terça-feira. Por que tem dias que nascem iluminados, límpidos. E a beleza do dia se encaixa com sua disposição ao sair da cama. Acordar cedo, e mesmo assim já ter um sol que encosta na lagoa, pensar em todas as coisas que tem de fazer, na correria de dezenas de ações cotidianas, como ir ao banco, comprar alface, passar na lavanderia. E sentir que muitas coisas vão acontecer nos próximos dias que você não sabe. Assim como sexta-feira passada, em que fazendo a programação cotidiana, numa dessas esquinas da vida, reencontrei D. e o cotidiano ficou esquecido.
Hoje viro muitas esquinas e quem sabe? Como escreveu minha amiga Rita, um brinde a todas as possibilidades

sexta-feira, 16 de março de 2012

As araras

Hoje, quando saí de casa, duas araras sobrevoavam o condomínio no qual moro - em que vivo uma vida e imagino outras - à beira da Lagoa do Itatiaia. São minhas vizinhas, eu no condomínio, elas na lagoa. Minhas vizinhas deram um vôo rasante e soltaram sua linguagem ardida típica. Elas, que outrora viviam sentadas, descansando no muro em frente à minha janela, andavam sumidas. Só agora descobri o motivo. Foi D. quem me contou e disse que elas vão voltar.
Aguardo, as araras, a vida que imagino, D., e outras tantas coisas mais.
Por que você não vem D.?????

terça-feira, 13 de março de 2012

Nova viagem

Logo logo viajo. E mudo temporariamente de cidade, de ares, de língua, de continente. Torno-me outra. E depois de um tempo, de ter andado perdida por cidades desconhecidas, conversado com estranhos, falado outra língua, volto para casa para ser eu mesma. Mas mudada.

quinta-feira, 8 de março de 2012

Aniversário

Amanhã é meu aniversário e depois de muitos dias preocupada, ontem amanheci com uma alegria diferente, inesperada. Fernando Pessoa, com sua melancolia e nostalgia tão típicas dizia "não faço mais anos, duro". Eu duro também, mas creio que sem melancolia. É que ontem tive uma nova idéia. Estou escrevendo um livro, e estava sem rumo, sem saber como continuar. E coincidiu que uma pessoa ontem me mandou antecipadamente os votos de feliz aniversário e escreveu assim: "que você encontre um continente para você". Um continente é muito, um promontório está bem, com um tênue caminho entre a terra e a água, com um trajeto sobre o atlântico também está bem.

domingo, 4 de março de 2012

Olhos azuis

Seus olhos azuis já foram um norte, tinham a clareza de um dia de sol reluzente, sem nuvens. Uma manhã sem brumas. Na passagem dos primeiros dias sem ele, e nos anos subsequentes, estiveram em meus sonhos. Assombravam-me nas primeiras semanas que passei sem vê-lo. Mas nove anos se passaram e o reencontro. E o brilho de seus olhos se apagou. Enquanto ele falava comigo, eu procurava prestar atenção aos olhos – eu não estou enxergando bem, por isso não enxergo a beleza de seus olhos azuis?  Percebi que o azul tinha desbotado, o amor tinha desbotado. Perdeu o brilho nesses anos todos que estivemos longe um do outro.

domingo, 12 de fevereiro de 2012

Whitney Houston

E se foi Whitney Houston, tão linda, tão jovem ainda, tão talentosa. E tão infeliz. Hoje eu tinha acordado mirando de minha janela uma lagoa enorme, tão linda, e o mundo por instantes pareceu-me tão harmônico. Agora a mirada fica envergonhada diante de tamanha infelicidade.


Escuto agora um Cd belíssimo chamado Waiting to Exhale, trilha sonora do filme que ela participou e cantou várias músicas. Se não me engano, o filme em português ficou como "Falando de amor'.
Um trecho da primeira música que abre o CD e que ela canta:

Sometimes you'll laugh/Sometimes you'll cry/Life never tells us, the when's or why's/When you've got friends, to wish you well/You'll find your point when/You will exhale (yeah, yeah, say).


Tradução: Algumas vezes você rirá

Algumas vezes você chorará
A vida nunca conta-nos o quando e o porquê
Quando você tem amigos para desejar-lhe bem
Você encontrará o seu ponto quando
Você vai expirar (yeah, yeah, diga)

Quando o estrangeiro vira inimigo

Outro Emerson morreu, mas esse seu nome é grafado com H, Hemerson. Escrevi há quinze dias sobre a morte do soldado Emerson, morto em um ato de coragem. Esse Hemerson, campograndense, morreu por violência, vandalismo e preconceito contra o estrangeiro na saída de uma boate em Lisboa.

É claro que episódios como esse acontecem com muita freqüência no Brasil, em várias boates de tantas cidades, grandes e pequenas. A combinação de juventude - com certo entusiasmo e audácia que ela traz - bebida e, sobretudo nesse caso, violência, acarreta esses casos em saídas de boates do mundo. Não só do Brasil. Li um caso parecido que aconteceu na Espanha meses atrás, em que um americano foi assassinado na saída da boate em que estava.

O ingrediente a mais que creio é bem marcado nessa história é o preconceito contra o estrangeiro. O estrangeiro sempre foi mal-visto por todos os povos. Desde os gregos antigos – nem falo os de agora, pois só andam pensando neles mesmos – pois está na Ilíada, texto clássico do poeta Homero: o conselho que a deusa Atenas dá a Ulisses é que ande de cabeça baixa e não chame atenção, “pois os moradores daqui não recebem nenhum forasteiro de boa mente, nem dão comida aos que vêm de fora.”

Mesmo nós, brasileiros, que somos mais acolhedores que a maioria, temos preconceitos com o estrangeiro. Ele não precisa ser de outro país, pode ser o vizinho que não aceitamos seu jeito diferente, o índio, o morador do bairro pobre, o homossexual. Enfim, o diferente, que nos ameaça. Segundo Freud, o estranho.

No Mato Grosso do Sul convivemos com fronteiras com dois países e sabemos de episódios de racismos com relação aos bolivianos e aos paraguaios. Digo isso para não atirarmos logo a primeira pedra e dizer que preconceito contra o estrangeiro só os outros têm e que nós somos o povo acolhedor. Não somos, também fazemos os nossos “estrangeiros”, que nos ameaçam.

Não será essa a visão mais evidente e fácil diante de todo imigrante/estrangeiro? Apelar para o preconceito ou para a violência? Mais difícil é se perceber como um qualquer nesse mundo enorme de Deus, com tantas raças, tantas culturas, tantas línguas. Mas para isso o sujeito precisa ter a humildade de se saber um Zé ninguém. Será que os europeus estão preparados para se saberem Zé Ninguém? Quando Freud em “O Mal-estar na civilização” afirma que nenhum homem está à altura do mandamento “Amar o próximo como a ti mesmo”, que o ser humano nunca alcança o suficiente esse mandamento, é isso que ele quer salientar: nosso limite, nossa imperfeição, nossa pobreza.

Mas voltando para esse episódio de preconceito e violência em Lisboa, resultando na morte de um jovem: acredito que o preconceito europeu contra os estrangeiros aumentará nesses tempos de recessão, falta de emprego e dinheiro e queda do euro que eles estão vivendo. Embora o primeiro motivo seja a crise do euro, creio que há uma crise de identidade que assola a Europa. É só assistir o filme francês Les Murs (Os muros), traduzido erroneamente no Brasil por Os muros da escola, quando na verdade os problemas nessa escola francesa, repleta de tantos jovens falando tantas línguas, queria mostrar é a resistência dos professores em aceitar a diversidade cultural que prolifera na Europa atual.

Acredito que esta é uma dificuldade que a Europa só tem vivido nos últimos anos. Zigmunt Bauman escreveu, citando Rougemont que “a Europa descobriu todas as terras do planeta, mas nenhuma delas jamais descobriu a Europa”. E continua em sua tese: ela dominou todos os continentes, mas nunca foi dominada por nenhum deles. Pois este filme mostra exatamente isso: os colonizados foram ao colonizador, assumindo valores que sempre foram apregoados por aqueles – individualismo, busca de sucesso, etc – mas sem abdicar de sua própria cultura.

Esse é o fato novo – maior do que a dificuldade financeira atual, creio eu - que a Europa tem de conviver e não está conseguindo: hoje ela está sendo construída por muitos estrangeiros, que atualmente ela é multicultural, multiracial. E terá outra face no futuro.

Mas voltando a violência contra o Hemerson, o que dizer a essa mãe? Não tenho palavras. Nenhuma! Nem ao menos sei o que é essa dor. Só espero que essa mãe consiga justiça. E que tenha conseguido enterrar seu filho em solo pátrio, pois não vi mais uma notícia de que ela tivesse conseguido os apoios necessários.

domingo, 5 de fevereiro de 2012

Os descendentes

O filme com George Clooney, que assisti ontem lembrou-me muito do Havai, que é o personagem principal. Clooney é coadjuvante. A temática primária é um homem que espera a morte de sua mulher em coma e reaproxima-se das duas filhas. Clooney não está mal no filme, mas não é um grande filme. Nem entendi porque ele está concorrendo ao Oscar por essa atuação. A única grandeza do filme é o paraíso havaiano. Todos os personagens são secundários ao cenário mostrado, suas praias intensamente azuis pela presença das algas, suas areias escuras, vulcânicas; os homens todos com camisetas floridas – e Mat King/Clooney nos conta que não devemos nos enganar: os mais sérios e importantes negócios são feitos com pessoas trajando estas roupas - suas rodovias contornando o recorte do mar, em todas as ilhas; a cadeia de montanhas que ficou mundialmente conhecida, pois aparece no filme “Parque dos Dinossauros”, marca presença duas ou três vezes no filme. A trilha sonora toda na lingua havaiana, essa lingua tão sonora, repleta de vogais que se repetem, pois eles têm poucas consoantes.
A trama se passa em dezenas de cenários desse paraíso - assim é chamado em vários momentos - que está em vias de desaparecer. O pedaço mais inóspito de terra está para ser vendido. Mat King/Clooney vem de uma família em que ele é o descendente do rei (king) Kamehameha I, que casou-se com uma branca e deu origem a uma mistura de raças. Mat King e seus primos – ávidos por vender a valiosa terra – são os descendentes dessa mistura.

Kamehameha I foi o havaiano que unificou todas as ilhas em 1810. Em uma dessas revoltas pela unificação foi morto o Capitão Cook, célebre navegador inglês. Kamehameha é citado várias vezes no filme, suas fotos aparecem na casa do pai de Mat King, quando ele retorna ao domicílio paterno buscando a resposta para o ser ou não ser do filme: vendo ou não vendo?

Mat King é o homem mais conhecido do Estado havaiano, todos que falam com ele sabem da venda a ser feita. É como se ela decidirá o que vai ser feito das memórias: transforma-se em um conglomerado de resorts de luxo ou mantêm-se a memória desse passado recôndito? Pergunta que o personagem de Clooney só vai nos dar a resposta na penúltima cena.

O filme lembrou-me muito uma viagem do passado. Cheguei ao Havai em 9 de setembro de 2003 e senti falta de um paraíso antêntico, dos havaianos que ainda falassem perfeitamente a lingua, do artesanato tipicamente havaiano, da comida tipicamente havaiana. Fui a um centro de cultura dos povos da Polinésia e tudo me pareceu uma Disneylândia. Então entendi perfeitamente o dilema mostrado no filme. Assisti o filme com um misto de saudade desse paraiso de uma natureza belíssima, espetacular, e com uma decepção porque o capitalismo e a globalização, com seus resorts de luxo e objetos de consumo industrializados, destrói tudo, nossa autenticidade, nosso passado, nossa singularidade. Nem o Havai é mais o Havai.

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

Entrevista com FHC na Revista Bravo

Estou com uma raiva de FHC. Li ontem à noite a entrevista com Fernando Henrique Cardoso que saiu na Bravo desse mês. Acordei com raiva do dito cujo. Reli a entrevista e a raiva continua. A matéria principal da Bravo desse mês é sobre Ruth Cardoso. Está sendo publicada uma coletânea de seus artigos e por isso a revista entrevistou FHC para falar sobre a mulher. Uma das perguntas: por que ela publicou tão pouco? Ele começa respondendo bem, que ela era muito crítica, insegura com o que escrevia e pesquisava e passa a falar dele, de que ela tinha insegurança e ele confiança demais, que os filhos até debochavam disso.

Esse excesso de auto-confiança de FHC todos nós brasileiros conhecemos. Vou pular essa parte.

Nas respostas, ele sempre desliza e passa a falar dele. Ele não sabe o que fazer quando não é o centro de tudo. E minha raiva: ele enfatiza a insegurança dela em dois ou três momentos. E os erros dele - inclusive, ao final, lhe é perguntado sobre o filho que acreditava ser seu e agora o exame de DNA diz que não é - responde suscintamente. Sua lógica é assim: a limitaçao da mulher, boca no trombone; meus erros, boca de siri.

Ainda mais porque a insegurança dela achei uma coisa boa. Uma pesquisadora crítica, que tinha dúvidas, que não sabia se escrevia bem, que titubeava. Os cientistas são assim. Stephen Hawnking, que acabou de fazer 70 anos, falou em entrevista sobre isso, sobre seus erros teóricos, sobre o enigma que são as mulheres para ele, e que ele não tem resposta. Ele disse como uma brincadeira, mas entendi que o mais importante é ter perguntas e estar disposto a pesquisar.

Freud fez uma teoria, refez, no começo errou. Mas FHC não: o homem é certo, inseguros são os outros.

Eu não suporto gente que vive cheia de certezas....

quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

A coragem de um homem

O soldado Emerson Leandro da Silva tinha 19 anos e não sabia nadar. Estava com a namorada e amigos em um pesqueiro à beira do Rio Aquidauna. Sua namorada, que também não sabia nadar, escorregou em uma pedra e caiu dentro do rio. Imediatamente, seu namorado Emerson pulou no rio - esquecendo que não sabia nadar - a empurrou para perto da margem. Os amigos a puxaram e ele foi puxado pela correnteza. Isso aconteceu no final de semana, mas seu corpo foi encontrado somente ontem.

É isso o que a psicanálise define como um ato. Um ato não é algo pensado, decidido em ruminações e ruminações. Aliás, a ruminação impede o ato. Mas, ainda assim, um ato é uma escolha. Ainda que inconsciente.

A grandiosidade do ato de Emerson é maior quando nos lembramos do que Freud escreveu no O mal-estar na civilização. Freud retomou a frase de Plauto, "o homem é o lobo do homem", para sustentar que um ser humano se coloca sempre em primeiro lugar. É sua primeva, narcísica, atitude. Depois, com muita sublimação, e construção simbólica, consegue fazer laço social com seus próximos. Mas lá, em seu imaginário, ele está em primeiro lugar. Então, se um navio vai afundar, se agir pelo seu narcisisimo, ele corre antes, "que afunde os outros, eu escapo". Vocês já perceberam que contraponho a coragem de Emerson à covardia do comandante Schettini?

Emerson sabia que ia morrer? Provavelmente não pensou isso na hora, correu o risco de salvar quem amava, agiu e isso, claro, teve consequências. Sua família deve estar sofrendo muito. Mas sua coragem, esse ato que surgiu em um segundo e tomou sua vida, salvou a vida de uma pessoa.

Só escrevo para sua coragem não ficar anônima, afinal tanto se fala da covardia nesse momento.

Não esqueçam: Emerson Leandro da Silva. Quando alguém vir até vocês com teorias fatalistas de que as pessoas estão cada vez mais egoistas, autistas, ensimesmadas, que o mundo não é mais o mesmo, pensem que existem Emersons por ai. Não muitos, claro. O lugar-comum pode ser o comandante italiano, mas os homens que fazem a diferença no mundo são os Emersons.

terça-feira, 24 de janeiro de 2012

Jean Dujardin indicado ao Oscar de melhor ator 2012


Uma noite dessas, sem nada para fazer que ficar passando de um canal para outro na televisão, parei em um programa de entrevistas da TV5. Estava sendo entrevistado um ator francês que nunca tinha visto. Ele fazia a divulgação de seu novo filme - isso já tem dois anos. Gostei do que ele falou sobre o filme e o achei belíssimo. Final do ano, encontrei o filme na FNAC da Rue de Rennes, em Paris. Comprei. O filme se chama "Un Balcon sur la mer". Nele, um homem reencontra na mulher para quem ele está vendendo uma casa, a menina que ele amou na infância. Uma infância passada em uma Argélia em guerra. Saiu fugido de lá, com seus pais, criança ainda. Viveu uma vida esquecendo sua infância, casou-se, teve uma filha, mas um dia reencontra essa menina que amava e via sempre no terraço em frente. Isso justifica o títuto do filme, o terraço (balcon). Por que conto esse filme agora para vocês? Assistindo esse filme, entre natal e ano novo, novamente a beleza do ator desponta. Mas nem só isso, o principal é que ele é um ator espetacular. O nome dele: Jean Dujardin. Acabo de ver que ele foi indicado ao Oscar de melhor ator pelo filme "O artista". Um filme francês, que acaba de ser rodado e que trata da Hollywood dos anos 30. Um filme mudo. Um filme francês, um filme mudo e com Jean Dujardin concorrendo ao Oscar de melhor ator. George Clooney que me perdoe, mas torço por Dujardin.

sábado, 14 de janeiro de 2012

O último CD de Chico Buarque

O último CD de Chico Buarque de Holanda, que escuto agora pela primeira vez, é um espetáculo. Começa com "Querido Diário", em que ele, um homem que vive sozinho, encontra amigos que lhe dizem "fique com Deus". E a partir daí lhe falta uma religião ou amar uma mulher sem orifício. Essa parte é ótima e meus amigos psicanalistas entendem isso perfeitamente: ele quer amar uma mulher sem gozar dela, ou com ela. Mas já diz, na estrofe seguinte, que é impossível, pois se ama, o desejo por ela já inflama. Depois vem a declaração de amor por Aurora, para quem ele faz uma canção, que vai cantando sem pudor, mas só se for agora, Aurora, sem mais demora, fazendo tórridas confidências mundo afora. E de Aurora, a mulher amada, musa, vira Amora e depois Teodora. E assim entendemos que a musa é a palavra, com a qual vai brincando, rimando.


E depois duas músicas sobre um amor que chegou tarde, a essa hora da vida e que veio embaralhar os seus dias, amor por uma mulher mais nova que nem sabe o que é um baião e que usa expressões “tipo assim”. Mas ela “tipo assim” quer se jogar de cabeça para a vida inteira e ele “tipo assim” está com medo. Ele sente que por essa pequena que tem tempo de sobra ele vai penar muito ainda. E, na próxima música, “Se eu soubesse” é uma mulher que cai na “conversa mole” do amor por um homem, pois não é capaz de gostar de outro, só desse, que tem a conversa mole do amor.

E assim todas as músicas mostram um Chico apaixonadíssimo, falam de um amor a embaralhar horas, a viver com a cabeça na lua, a cantar “eu te amo demais”. Amor por uma mulher que “espalha seu fogo de palha”, no salão, que “arrasta a asa”, mas que é ele, o Chico-amante-compositor que apaga a brasa da amada e com a brasa bem acesa de frases tão lindas, proclama que é ele, que é em sua mão que sustêm o coração dela, que suspira. Essa música “Sou eu” é de um homem que se garante diante de uma mulher. Nem preciso dizer que é uma das que prefiro.

A única exceção do disco, em que o amor não é por uma mulher – mais ou menos – é Barafunda. Nessa música a declaração de amor é pelo futebol, pelo Rio, por Garrincha, Pelé.

Um arco-íris

Depois de três dias sem dar trégua, a chuva parou - parece-me, pelo menos por agora - e abro a janela do quarto e deparo-me com um imenso arco-íris que começa no meio da Lagoa do Itatiaia - estou brincando, de um arco-íris nunca sabemos o começo e o fim. Mas estou com a impressão que ele começa logo aí, na lagoa. E para cúmulo da contemplação, duas araras passaram voando e descansaram uns momentos no muro do condomínio, encostado da minha janela.

domingo, 8 de janeiro de 2012

Stephen Hawking faz 70 anos

Stephen Hawking fez 70 anos. Diagnosticado com esclerose lateral amiotrófica aos 21 anos, foi-lhe dado 24 meses de vida e está ai. Fez mestrado, doutorado, orientou os trabalhos dos maiores cientistas que vieram depois dele. Fez uma teoria sobre os buracos negros e depois se redimiu, disse que estava errada; refez; escreveu sobre a física de um jeito que os leigos entendessem (mais ou menos). E em entrevista diz, com bom humor e bastante verdade:


" Ao conceder entrevista à revista New Scientist, Hawking confessou que buracos negros e formulas matemáticas não são desafio nenhum, e que ele passa os seus dias pensando em um assunto bem diferente. "As mulheres. Passo o dia inteiro pensando nelas. Elas são um completo mistério", disse ele.

Viram qual é o grande mistério do mundo, para Freud, para ele, para os homens, para nós mesmas?

terça-feira, 3 de janeiro de 2012

Amós Oz na Roda Viva

Ontem assisti a entrevista de Omós Oz e fiquei decepcionada com ele. Acompanho sua obra há tanto tempo, li todos seus livros publicados no Brasil, meu novo livro sobre Psicanálise e literatura - a ser lançado em alguns meses - começa seu  primeiro capitulo intitulado "Não diga amor" dialogando com a obra dele, então foi uma decepção grande. Enorme.
Muito inteligente nas respostas, porém mostrou-se um homem tão duro. Seus personagens masculinos - sobretudo Michel, Fima - são homens tão doces, então não esperava isso. Para começar: diz que só fala o inglês e o hebraico, sua lingua, que seus pais não quiseram que ele aprendesse nenhuma das linguas européias. Como pode? Ele diz que seus mestres são os escritores russos, sobretudo Tchekhov, porém não os lê no original? Ele é filho de eslavos, seus pais eram lituanos e o russo era a lingua deles e ele não lê seus mestres no original? Gostaria que acompanhassem em meu raciocínio: não é apenas uma questão de tradução, um escritor deve ser alguém que se coloque no lugar do outro - ele diz isso literalmente nessa entrevista - não pode ser alguém fechado em um lugar, em um deserto, em seu próprio quintal, fechado em sua lingua e carregando um ressentimento de uma Europa - como se fosse uma entidade personificada em uma pessoa - que os expulsou, exterminou, não os quis.
E não gostei também de sua resposta de que a Europa se destruiu por mil anos e eles e o árabes vão levar menos tempo. São contextos diferentes. Acaso eles estão no tempo das Cruzadas, do feudalismo, da Idade Média? Não se compara o tempo assim. Mas ele tem razão, ainda não apareceram os líderes, com coragem suficiente - nem de um lado nem de outro - para parar essa guerra.
Eu o idealizava, talvez mais depois de sua autobiografia "De amor e de trevas", imaginava-o mais deslocado, mais imigrante, mais estrangeiro e o vi tão sionista, tão seguro de si, tão político, tão duro.
Quando lhe perguntaram o que é ser um árabe e o que é ser um judeu ele foi duro demais na resposta. Disse que não falaria o que é ser um árabe, isso ele não sabe, falaria o que é ser um judeu, deixaria aos árabes dizer o que eles são. Que diabo de resposta é essa? Ele não começou dizendo que um escritor é aquele que pode se colocar no lugar do outro? Por que ele não pode dizer algo do que é ser um árabe? Eu não sou árabe nem judia e me meto a dizer o que penso sobre eles. Acaso só falamos do que somos? Os árabes são os vizinhos e ele não tem uma história para contar? Algo para dizer? Tem sim, é só vocês lerem a autobiografia e vão ver muitas histórias lá. Eu não vou contá-las, está lá. E além disso falamos dos vizinhos, brigamos, gostamos. Sempre temos algo a dizer dos vizinhos. Eu, por exemplo, mudei há alguns meses e tenho um vizinho maravilhoso. Pode ser que ele não tenha a sorte de ter vizinhos maravilhosos, mas não tem nada a dizer?
Mas para finalizar, vou continuar a ler seus livros, gosto dos personagens que ele cria, das pessoas doces, ternas, amorosas. Eu acho que não gosto de homens duros. Nunca mais assisto uma entrevista dele. Nunca mais.

Melancolia, de Trier

Melancholia, de Lars Von Trier é um filme sobre o fim do mundo. Essa metáfora começa representada por três cenas que são cópias de três quadros. O primeiro, creio que de Magritte, com pássaros mortos caindo do céu. Que essa seja uma mensagem do fim do mundo já é batida, foi usada em muitos filmes e não está no Apocalipse também? O segundo é um quadro - tenho uma dúvida - de Brueghel ou Avercamp e o terceiro, Justine morta, no rio, com as flores sobre o colo, é A morte de Ofélia, de J. E. Millais. Só ai já podemos saber qual é o fim do mundo para Justine: o fim do amor. É uma visão do filme: para uma mulher, a morte do amor, a perda do amado é a explosão de um planeta.


Há mais uma coisa que, parece-me, é para assegurar que o fim do mundo é o fim do amor: a música de abertura é Tristão e Isolda de Wagner. Com Tristão e Isolda e Ofélia, Justine é a própria encarnação do amor impossível, da mulher abandonada, atormentada. Vejam só que é Wagner, o compositor preferido de Hitler que abre o filme de Lars Von Trier. Nisso ele também pode entender Hitler? No gosto por Wagner? Wagner virou um compositor proscrito depois que Hitler gostou dele, de sua obra. Tem inúmeras orquestras e países em que ele não pode nem ser tocado, mencionado. Dizer, em Cannes, que poderia entender Hitler também foi uma metáfora de Lars von Trier? Como eu não tenho nada contra Wagner, aliás acho um grande compositor, estou escutando agora, enquanto escrevo para vocês, Abertura e Morte do amor de Tristão e Isolda, de Wagner. Música soberba.

Os personagens masculinos são absolutamente patéticos no filme. Começando pelo pai de Justine e Claire. Um homem para quem todas as mulheres são qualquer uma, para não cometer enganos já chama todas de Beth. A filha Justine passa o filme todo apelando para ele escutá-la e ele não está nem aí. No último apelo, quando pede para ele dormir lá, ele deixa a carta sobre a cama, dizendo que não pode e escrito assim “para minha filha Beth”. Até a filha é qualquer uma, que ele não tem de dar atenção. O chefe de Justine é um pulha capitalista que só pensa em money; o marido de Justine, a quem ela pede que espere por ela, a deixa e o que parecia mais confiável, o rico marido de Claire, é o primeiro a sucumbir ao medo quando o fim se aproxima. Suicida-se, deixando as mulheres e o próprio filho sozinhos. Os homens são todos uns covardes nesse filme de Lars.

O filme é também sobre como as crianças devem ser protegidas do horror. Claire e Justine não o foram. Nunca. Nem no dia do casamento de Justine, seus pais têm o cuidado de não colocar seu ódio e pessimismo em jogo. Pelo contrário, expôem suas mazelas sobre as filhas. O marido de Claire, que a protegia das verdades, não fazia isso com o filho. Pelo contrário, não dava nenhuma esperança a ele: tudo caminha para o fim e pronto.

É a personagem Justine quem o faz: a colisão do planeta, morte do amor e fim da vida, sempre chega, mas agora podemos nos proteger nessa caverna mágica.

Estou aqui relendo a entrevista que Lars von Trier deu para a Veja em 7 de setembro de 2011. Ele diz que a depressão é o fim do mundo. E conta de sua mãe cruel. Mãe cruel é a de Lars von Trier. O resto é fichinha perto dela. E nessa entrevista ele nos dá a chave para entender seu Melancholia: ele diz que 'as personagens femininas sou eu". E continua: "bolei um truque muito esperto ...O que faço é escrever um filme sobre mim, dividindo-me em dois personagens masculinos. Dai escrevo vários papéis femininos - todos de mulheres que são idiotas, idealistas ou covardes. Clichês, enfim. Mas, na hora de começar a roda, inverto os papéis: os masculinos se tornam femininos, e vice-versa". Vejam então que ele é Justine e Claire, ao mesmo tempo. Dois personagens que primeiro ele pensou masculinos e depois viraram mulheres.

Mas o porque a mãe dele é um horror: antes de morrer, toda entubada, no hospital, conta-lhe que o homem que ele pensou a vida toda que fosse seu pai, não o é. Seu pai é um amante que ela teve por longo tempo. E se vai, sem explicar mais nada, sem ele poder brigar, peguntar, descobrir a verdade. Assim, desolado, tendo perdido o pai e a mãe ao mesmo tempo – o que sobra de um amor maternal depois disso? – lhe sobrevêm a depressão, e esse “fim do mundo” tem lhe acompanhado há muito. Pelo que ele conta nessa entrevista, dessa tragédia humana, ele fez uma metáfora, uma bela metáfora sobre o amor, a verdade e a vida. E também sobre as covardias. Sejam de homens ou de mulheres, não importa.

Depois desse filme e dessa entrevista, minha admiração por Lars von Trier só fez crescer.