domingo, 3 de maio de 2015

Sobre a Indonésia

                                                                         

A Indonésia está muito em voga no facebook no momento por causa dos dois brasileiros condenados à morte por tráfico de drogas. E muito se tem falado da crueldade de um Estado em executá-los. Ainda mais nesse caso mais recente, em que o jovem estava delirando, em surto psicótico, como a família e os advogados sustentaram.
Antes de fazermos uma opinião sobre o país é preciso entender a história. Eu sou sempre pela história. Quando escuto como psicanalista, escuto uma história para entender como o sujeito age como age, o sintoma que tem. Ajudo meus pacientes a construírem sua história. E antes de entender um fenômeno social, também tem de se entender a história.
Sugiro a leitura de dois livros. Os dois de V. S. Naipaul. Um escritor formidável – Nobel de Literatura de 2001 – que tenta entender o islamismo na Ásia. O primeiro livro retrata sua viagem ao Irã, Paquistão, Malásia e Indonésia em 1981 e chama-se Entre os fiéis. O segundo é o retorno dele a esses países em 1998: Além da fé.
Vou fazer um resumo do resumo do que nos conta sobre a Indonésia, depois de andar por Jacarta e suas aldeias no interior, de conversar com pessoas, saber suas histórias e de seus antepassados. O islamismo que floresceu depois da década de 60 do Século XX, um islamismo imperialista, que tenta negar a história anterior do povo, um islamismo político, é fruto de uma história de colonização que começa no Século XVI e que tem nos holandeses sua primeira opressão. O islamismo entra no país quase no mesmo período que os holandeses, mas estes últimos foram tão tiranos, que os seguidores da religião árabe, dos ensinamentos do profeta, sentiram-se também dominados.
E foram os holandeses que levaram o cristianismo, religião dos imperialistas, e tentaram com ele apagar o passado budista, hinduísta, animista dos indonésios. Em 1942 os japoneses dominaram o país com fúria e violência; muita gente foi para a prisão por se opor ao regime. Os japoneses mandaram destruir os monumentos que lembravam o domínio holandês.
Mas o Japão perde a guerra e é afastado do país pelo poderio militar, tendo à frente Sukarno. E até 1965 ele conduz o país e cada vez mais o islamismo se fortalece. Sobretudo entre os jovens. Na ânsia por liberdade, os jovens vivem cada vez mais a fé pura, de um islamismo Estado, político. O islamismo surge como uma mudança. Grande paradoxo.
Naipaul encontra nas pequenas cidades e aldeias do interior, uma religião compósita, feita de budismo, animismo, hinduísmo, cristianismo e islamismo. O islamismo não conseguiu entrar com força entre o povo simples, os camponeses. Eles continuam adorando seus antigos deuses, seguindo suas tradições. Dizemos em psicanálise que eles mantêm seus ideais do Eu.
Querem saber o que os EUA fizeram com um homem à espera de receber a injeção letal e que estava em franco surto psicótico? Tentaram dar a ele antipsicóticos, como o fizeram durante o julgamento, para que ele entendesse o contexto em que estava sendo incriminado. Só não puderam executá-lo delirante porque os direitos humanos não o permitiram.
Qual a diferença entre a Indonésia e os EUA quanto à pena de morte? Na essência, nenhuma: de um lado injeção letal, com uma morte mais asséptica, e na Indonésia, 12 tiros. Não concordo com pena de morte. Seja no tiro ou na injeção. Assim como não concordo com presos em condições sub-humanas como vivem no Brasil. Se a meta é resgatar a humanidade, é preciso tratar com humanidade. Isso não é condescendência, é responder com respeito a quem precisa saber que não se age com barbárie. Aliás, saber que todo ser humano deveria carregar consigo, já que ninguém é uma ilha.
Só para terminar, sugiro ler os dois livros de Naipaul. São formidáveis.

E fiquei com uma pergunta que não terá resposta: se alguém quer fazer tráfico de drogas, por que logo na Indonésia? Que desígnio a escrever para a própria vida! Há sempre uma história por trás desse ato. Também nisso seria preciso compreender a história.

Ida e seu sacrifício cristão



Ida, filme polonês de 2013, dirigido por Pawel Pawlikowski, ganhou o Oscar de Filme estrangeiro desse ano. Já tinha ganhado ano passado dois prêmios, mas teve sua fama estendida após o Oscar e suscitou acaloradas polêmicas em seu país. Os poloneses não gostaram muito de se ver nele, e que seu país fosse exposto no mundo inteiro pela questão judaica. Nele, cristãos mostram-se indiferentes ao destino dos judeus e um deles mata a machadadas uma mulher e uma criança judias só para ficar com a casa delas. Essa cena não é mostrada, ela faz parte da história a ser resgatada no tempo atual em que a ação se desenrola. O filme se passa na década de 60 do século XX, mais de uma década depois de terminada a II Guerra Mundial.
Antes de entrar no debate sobre o filme, faço algumas considerações sobre o país. Uma cena sobre a Polônia que li e me marcou: o jornalista polonês Ryszard Kapuscinski, que viveu décadas de sua vida como correspondente na África, conta em seu livro “Ébano, minha vida na África” que uma vez um africano disse para ele que ele, homem branco, não sabe o que é ser escravizado por outro povo. Ele respondeu: sei sim, meu povo já foi oprimido por três outros povos. O africano teve descrédito e desconfiança com o que ele tinha dito, não achava que um povo branco pudesse ser tão oprimido. Mas podem, e esses são os poloneses, que já estiveram sob o jugo dos austro-húngaros, dos russos e dos alemães; que já tiveram seu território retalhado e distribuído a bel prazer dos conquistadores algumas vezes; que após o fim da Segunda Guerra estiveram sob o domínio da Rússia por muito tempo. E que tiveram uma posição estratégica bem ruim durante a guerra, no meio do fogo cruzado entre russos e alemães. E eles têm tragédias muito grandes durante essa guerra, como o massacre de Katyn, por exemplo.
Então, não se prestam muito bem a serem considerados pró-nazistas ou algozes. Mas que os cristãos lá, bem como em outros países europeus, fizeram vista grossa ao que acontecia aos seus vizinhos judeus, fizeram. Há relatos em vários livros que li sobre a conivência dos cristãos poloneses com o destino dos judeus. O livro de Claude Lanzman dá vários exemplos. Esse autor fez uma grande pesquisa nas pequenas cidades polonesas para seu filme Shoah. Boa parte dessas histórias de segregações dos cristãos poloneses eu li antes de estar na Polônia. E foi muito chocante quando estive lá - andei pelo país em 2011, fui a Auschwitz - pois em contraposição a isso, nunca conheci um povo tão acolhedor, tão simples, tão simpático como esse. E tão cristão. Sobretudo na Cracóvia, de João Paulo II.  Deixando essa questão de lado, entro no filme.
Anna, uma jovem às vésperas de fazer seus votos e tornar-se freira, é instada pela madre superiora a procurar sua tia, única parente viva, a conversar com ela e só depois, confirmar sua vocação. Sai à procura da tia e com isso descobre que seu nome é Ida Lebenstein, uma judia, filha da irmã dessa tia, Wanda. A tia é uma magistrada, alcóolatra, aparentemente faz parte do partido comunista que conduz o país após o final da Segunda Guerra. Essa camarada está desiludida com os rumos do país, e culpada por ter deixado seu filho com a irmã e sua própria filha ainda bebê, para lutar na resistência. O filho de Wanda e a irmã foram mortos a machadadas pelos vizinhos cristãos que ficaram com a casa deles. Quando o homem que os matou, mostra onde estão as ossadas, ele dentro da cova que abriu, Ida pergunta a ele: por que eu não estou aí com eles? Ele responde: você era tão pequena, passava bem por cristã. O menino não, era moreno e circuncidado. Ser branca a salvou da morte. Assim Ida sobreviveu, porque passaria por cristã. É isso Anna\Ida: uma judia que se passa por cristã, uma indiferente a tudo o que vê, que não se envolve, se passando por doce e bondosa.
Wanda e Anna\Ida viajam ao interior, a cidade onde tudo isso se passou, conversam com as pessoas. Todos os cristãos tem um segredo a esconder, são resistentes, não querem tocar nessa história do extermínio dos judeus; estão bem acomodados na casa que agora é deles, que foi tomada com sangue e assassinato. Quando Wanda investiga, quando é dura com os assassinos cristãos, Ida se afasta, não quer ouvir, sai da casa. Ida não quer participar do resgate dessa história. Ela está bem certa de que é cristã, que será freira. Sua tia culpada, atormentada, deprimida, ensaiando uma posição de objeto a ser descartado, caminha para um suicídio que se concretizará ao final do filme, jogando-se pela janela, e Anna\Ida não diz nada, não ora por ela, não a acalma. Ela está sempre numa vacuidade. Nunca está onde aparentemente está. Ela parece indiferente a tudo. Por isso tenho dificuldade em dizer que ela é Ida. Ela renega suas raízes judias, ela é Anna. Ela só sai da indiferença quando surge o desejo por um homem.
No começo da busca delas pela verdade, Wanda dirigindo, diz a Anna que ela vai deixar os homens loucos e pergunta se ela tem maus pensamentos com os homens. Ela responde que não. Pois devia, senão que sacrifício terá nesses  votos que vai fazer? Mas depois darão carona a um músico, um belo rapaz, que vai despertar-lhe o desejo, e aí os “maus pensamentos” vem. Ele lhe diz: você não tem ideia do efeito que causa. Ela não diz nada, mas vai para o quarto e tira o véu, fica se olhando. A partir do desejo dele, que a torna desejável, vê-se como uma mulher no espelho. E após o suicídio da tia, liga para ele, encontram-se, vão para cama e ela descobre o sexo. Acordam, ele faz planos, terão uma casa, um casamento, viagens a trabalho para ele tocar e ela o acompanhando. Ela volta a sua indiferença de antes, não diz nada. Ele dorme, ela faz a mala e volta para o convento.
O filme tem cenas belíssimas, com neve que não acaba mais, e estradas brancas e árvores secas. E é esta a cena final: ela chegando, à pé no meio da neve, sozinha, para seu sacrifício dos votos. Viveu o desejo que sentiu, virou as costas sem dizer nada ao homem. Ele fica lá, dormindo ainda, sem saber que foi usado como objeto sexual. Nenhuma palavra lhe será dita para explicar nada, sem a casa, sem o casamento. Sem nada. Ele e Wanda são os objetos a serem defenestrados. Assim como em outro tempo foram Roza e o menino. Os cristãos, sejam aqueles durante a guerra, seja Anna, são indiferentes à dor do outro. O retrato que o filme traça dos cristãos é bem triste. Retrato ruim de ver, e creio que foi isso que esse país tão cristão não gostou de ver.
A grande personagem do filme é Wanda. Ética, culpada, buscando a verdade, desorientada, pois perdeu seus ideais. A que se sacrifica é ela. Anna só se sacrifica por si mesma. Anna é uma raposa-indiferente em pele de cordeiro. Sua pele\pêlo é a beleza branquinha. Ouvi dias atrás um ditado pela primeira vez: uma raposa perde o pêlo, mas não perde o vício. Anna é isso, uma raposa. No filme, todos os cristãos o são.