domingo, 26 de junho de 2011

Sobre amores e exílios: na fronteira da psicanálise com a literatura

Terminei há 5 minutos de escrever esse livro que parecia um trabalho de Sísifo. Terminei, terminei. Nem acredito, grande alegria.
O livro "As cidades de Freud" que Alba me sugeriu comprar me ajudou bastante. E o seminário que dei em Fortaleza semana passada foi fundamental. Falando para meus colegas da conferência de Freud intitulada "A terapia analítica" todo o final do último capítulo e a conclusão me veio à cabeça. No retorno para Campo Grande voltei com o livro organizado mentalmente. Agora terminei de pôr o ponto final.
É "só" procurar uma editora. Se alguma aceitar.....
Mas o importante foi ter terminado, concluído essas frases que insistiam em vir à tona e que não conseguia organizá-las.
Alegria e alívio.
Freud diz em uma carta que estar alegre é tudo.
Escuto esses fogos nesse domingo de tarde, deve ser de um jogo de futebol. Um pouco deles são meus (brincadeira, mas poderiam ser).

terça-feira, 7 de junho de 2011

Exílio de um amor, de um país, de uma vida

“Ó casa, ó pátria nossa! Que possamos não conhecer
nunca o exílio nem arrastar na miséria uma penosa existência,
de todas as dores a mais digna de piedade! Ah! Que a morte, sim,
a morte nos golpeie antes de vermos tal dia.
Não existe maior desgraça do que a de sermos
privados da terra natal.
Medéia, Eurípedes



As personagens de Salman Rushdie, qualquer obra que escolhamos para debater, são sempre homens “sem lar, em busca de um lugar no mundo”. Poderíamos encontrar nisso um desterro de seu autor? Não podemos interpretar a obra pela vida do autor. Só ele próprio tem o direito de fazê-lo. E o faz no início de seu livro Pátrias Imaginárias: “Talvez seja verdade que os escritores na minha posição, exilados, emigrantes ou expatriados vivam obcecados por um sentimento de perda, uma necessidade de recuperar o passado, de olhar para trás, mesmo correndo o risco de se transformarem em estátuas de sal”.

Comentarei o romance O chão que ela pisa. Nele, o personagem faz o caminho do oriente para o ocidente, mas também é um deslocado. “Não passa um dia em que eu não pense na Índia, que eu não relembre cenas da minha infância”.

Toda a trama do romance é tecida em analogia com a lenda do Orfeu. Ormus Cama, o cantor das harmonias, é um Orfeu à procura de sua Eurídice. Ele perde sua amada Vina durante um terremoto. Nele, ela submerge às profundezas da terra. E a partir de então, sem sua Eurídice, o Ocidente é insuportável para viver. Rushdie usa uma fala de Medéia, na peça de Eurípedes – citada na epígrafe desse capítulo – para mostrar ao leitor como é preferível a morte a viver no exílio. E nessa obra se misturam os exílios: de viver sem o objeto amado sem a pátria e sem a vida. Enfim, viver sem o objeto amado é a morte.

Ao mesmo tempo em que Ormus é Orfeu, procurando sua Vina/Eurídice, é alguém que submergiu nessa “América-Orpheum”, “que olha para ele e o deixa para trás, para morrer”. Vivendo nessa “boa vida de green card” é uma Eurídice que saiu de sua terra e queria ser amado pelos gringos. Mas isso não lhe adiantou muito: “Transformei-me num estrangeiro. Apesar de todas as minhas vantagens e privilégios de nascimento, de toda a minha aptidão profissional, em virtude de haver abandonado meu lugar de origem transformei-me em membro honorário das hordas de desprotegidos da Terra”.

O narrador de O chão que ela pisa se identifica e se funde ao personagem Ormus: os dois anseiam pela ressurreição, pela volta da amada do mundo dos mortos. Vina, a Eurídice de Ormus, engolida pela primeira vez por uma força sísmica: “essa força sísmica também atende pelo nome de amor”. Nesse terremoto, força sísmica, chão do romance de Salman Rushdie, o amor e a morte estão fundidos, como duas faces de uma mesma moeda. E as duas portam a face do exílio de sua Índia amada, a terra da infância.

Um homem que mantêm a memória do amor

Sofia, personagem de O passado, romance de Alan Pauls, comanda o grupo das mulheres que amam demais – e Alan Pauls mostra, a partir dela, que a religião das mulheres é o amor – e empreende sua tentativa de fazer uma memória nos homens. Com Orfeu é o contrário: ele mantém a memória e a desmemoriada é ela, Eurídice, que habita o “mundo do declínio”. Nesse mito, a morte e o apagamento do amor são o mesmo. Por isso, creio, Orfeu é o sonho de toda mulher: ele não esquece sua amada, não a substitui. Ela lhe é única. Depois que a perdeu, não quis nenhuma outra e suportou ser morto, desmembrado por todas as outras mulheres, que vieram depois dela e que ele não as quis. Nenhuma era ela: “Pisa de leve essa estrada sombria, desce ao fundo devagar, que vou te seguir daqui a um dia, e não descanso até te encontrar.”

Diferente de Don Juan, que procura A Mulher em todas as mulheres. Ainda que seja uma a uma, apenas durante um tempo cada uma é única, mas só durante um curto tempo, pois nenhuma é A Mulher. E depois de curto tempo, em que a imagem de felicidade foi desfeita – um tempo feliz é sempre curto para o amante que fica a esperar que o outro volte - D. Juan retorna suas buscas. Orfeu a encontrou em Euridice. Seu esforço de trazer à vida essa mulher o coloca como um ser para a morte e nos mostra que um dos nomes da Mulher é a morte.

O amor é elogio ao ser

Eurídice, à medida que desliza cada vez mais fundo no abismo, esquece de Orfeu, relembra Rushdie em seu romance. E traz os Sonetos a Orfeu, de Rainer Maria Rilke para nos mostrar isso. “..ao penetrar o reino do nada, rapidamente se esquece da luz. A escuridão mancha seus olhos, seu coração. Quando Hermes fala de Orfeu, essa Eurídice responde, terrível: Quem?”

Matar é um aspecto de nossa dor errante, escreve Rilke em um de seus Sonetos a Orfeu. Neles, Orfeu é a memória, é uma vida que anseia pela mudança, pela transformação, mas que sabe que todo tempo feliz é “filho ou neto da separação” e que toda mudança acarreta perda.

Orfeu é aquele que sabe da condição do não-ser. É esse seu “íntimo poder”. Eurídice já se foi, apagou-se, perdeu a memória. E o que é o amor sem memória? Resto obscuro, que perdeu suas marcas pelo caminho. Um Nada. Assim, resta a Orfeu dizer do indizível: “Mas dizer o indizível só é possível ao cantor, num nível que só aos Deuses é audível”. Aqui tenho que discordar de Rilke: também o poeta diz desse indizível. E no caso dele próprio, beirando a perfeição. E assim, ele próprio, Rilke/poeta/Orfeu, traça suas lembranças de um amor: uma primavera na Rússia, uma viagem do passado, da qual nunca esqueceu. Ele não diz o nome, mas sabemos bem quem foi sua Eurídice.

No amor de Orfeu por Eurídice, mesmo nesse amor de um homem para quem ela é única, não uma mulher entre outras, mas A Mulher, tudo termina mal. Sem sua amada, que habita o esquecimento – morte para o amor - “tudo é distância. Não se fecha a circunferência”.

Rilke/Rushdie, Orfeus a manterem a memória de um desterrado amor do passado, conduzem suas obras para o exílio que é viver sem a infância: lembrar todos os dias da infância na Índia, no caso de Rushdie. E Rilke escreve em seus sonetos: “Somos mesmo de fraqueza aterradora, como o destino quer nos fazer crer? Será que a infância, intensa e promissora, mais tarde, na raiz, vai fenecer?”

E termino com outro poeta, esse brasileiro, que também se encantou com o mito de Orfeu, e escreveu sua versão dele, Vinícius de Moraes: “Ah, minha Eurídice. Meu verso, meu silêncio, minha música. Nunca fujas de mim. Sem ti, sou nada. Sou coisa sem razão, jogada, sou pedra rolada. Orfeu menos Eurídice: coisa incompreensível! A existência sem ti é como olhar para um relógio. Só com o ponteiro dos minutos. Tu és a hora, és o que dá sentido. E direção ao tempo, minha amiga mais querida!”