terça-feira, 17 de janeiro de 2017

Amanhã, com a chuva, será outro dia



Os Tambores da chuva, de Ismail Kadaré, é um livro para mostrar que um poderoso exército pode fracassar diante da determinação do inimigo. É para mostrar que toda dominação tem seus limites e, creio eu, que numa guerra o ser humano mostra o seu pior, sua crueldade, sua barbárie, seu desprezo pelo próximo e, mais ainda, para o estranho, estrangeiro, cristão, muçulmano, outro, héteros, o diferente. E para qualificar essa baixeza do ser humano-guerreiro não serve nem ao menos dizer que vira animalesco, pois os animais não mostram vingança, crueldade, vaidade. Numa guerra intestina, o ser humano é humano e não animalesco. E sempre perde, todos perdem. Assim entendi o romance. Se é que se pode tirar uma moral da guerra.
Na segunda metade do século XV, o exército otomano faz um cerco a uma fortaleza cristã na Albânia, pequeno país dos Balcãs. É a cidadela do herói nacional albanês Gjergi Kastriot Skënderbeu. Sei pela história que essa fortaleza cristã defendida por Skënderbeu foi atacada quatro vezes, no período de vinte e cinco anos, e só sucumbiu na quarta vez. O cerco contado no livro ocorreu depois da tomada de Trebizonda e antes da de Constantinopla pelos turcos. Então, no começo do livro, quem sabe um pouco da história da Albânia, já sabe que esse cerco será fracassado e que os turcos, ao final, recuarão derrotados.
O paxá Tursum, comandante-chefe do cerco, posto como um general para o ocidente, precisa conquistar a cidadela para não cair em desgraça junto ao sultão. Estão mais de três meses nesse cerco, já tentaram quase tudo. Um novo e moderno canhão que iria derrubar os muros. Não derrubou. Várias tentativas de soldados invadirem subindo pelos muros; bolas de piche catapultadas para dentro da cidadela. Os turcos constroem um túnel, os albaneses percebem e o afundam com todos os soldados que estavam nele sendo soterrados. Nada funcionou. Então a cúpula dos assessores do paxá, junto com o próprio, decide o próximo passo: infectar animais com doenças e jogarem para dentro da cidadela. O risco é que uma peste negra – outra, pois tinham vivido recentemente uma – espalhe-se pelo mundo. Mesmo assim, tentam: ratos contaminados por doenças são jogados para dentro da cidadela. Não se sabe exatamente como, mas os sitiados conseguiram debelar a ameaça. Os ataques são ferozes, porque o paxá é um homem encurralado. A gente se pergunta quem está mais encurralado, os que estão nas trincheiras ou os que estão presos na cidadela. Kadaré escreve: “não há ataque mais feroz do que aquele desferido por um homem encurralado”.
E assim se passaram mais de três meses, o verão está terminando, o calor atroz começa a ceder e a cidadela continua impenetrável. A última tentativa é descobrir o aqueduto e cortar a água para a cidadela. Depois de muito tentar, cavando, conseguem e cortam a água. Passam-se alguns dias. Abrem a barriga dos soldados capturados nas torres da cidadela e o médico turco já percebe a falta da água. Se chover, os albaneses se fortalecem novamente e eles, turcos, terão de recuar. Isso justifica o nome do livro: os tambores, numa madrugada, anunciam a chuva. Tursum sabe que acabou, acabou o cerco e acabou sua vida. Sua desonra é tanta que antes de se matar, chama uma das mulheres de seu harém, grávida dele, e pede que coloque no filho que terá seu nome e conte a ele a história de quem ele foi. E se mata. Nem essa glória seu nome terá, pois no difícil trajeto de volta para casa, no chacoalhar das carroças, a jovem perde o bebê. Nessa parte, o autor foi bem cruel com seu personagem: não sobrou a ele nada, nem descendência, nem nome, nada.
Dois pontos principais que gostaria de marcar. O primeiro é uma pergunta que o intendente-chefe turco faz ao cronista da guerra: O projeto de extermínio de um povo é realizável? E ele mesmo, intendente, responde: mais do que destruir fortalezas, é preciso desnacionalizar os povos e fazer sua língua e religião desaparecerem. Qual é mais importante tentar apagar, a língua ou a religião? Conclui que é a língua e para exterminar um povo, sua língua deve ser proibida de ser escrita. É difícil proibir de ser falada, mas de ser escrita é possível. Essa é a verdadeira dominação que o Império Otomano sempre tentou em todos os povos conquistados: apagar a língua. Skënderbeu, o herói albanês é um exemplo disso: ele e os três irmãos, filhos de um nobre albanês, foram raptados ainda garotos e obrigados a se aculturarem. Um se matou, outro se tornou eremita e Skënderbeu torna-se soldado do exército turco. Começa a construir a fama de excelente soldado nos campos de batalha. Falava perfeitamente a língua turca, já era um oficial até conseguir uma chance de fugir e voltar ao seu povo. Creio que essa é a discussão que Ismail Kadaré traz e que responde mais ou menos assim: não se apaga a língua materna, não se extermina o passado, as raízes de um sujeito.
E o segundo ponto que quero marcar é como as mulheres são objetos a serem consumidos em todas as guerras. Enquanto esperavam a conquista da cidadela, os soldados turcos saqueavam as vilas vizinhas e as mulheres eram capturadas para o gozo sexual desses tensos soldados no campo de batalha. Eram tão continuamente estupradas que raramente duravam mais do que dois dias. Quando o vencedor invade, as mulheres do povo subjugado são estupradas. Essa história acontece em todas as guerras, em todos os séculos. Mês passado, no facebook estavam todos se escandalizando porque os familiares com jovens pediram permissão para sacrificá-las antes que os soldados sírios rompessem o cerco em Aleppo. Por que isso não muda através dos séculos?

Com esses comentários nem preciso dizer o quanto o livro é bom, e se vocês me acompanharam na leitura até aqui, não podem deixar de ler Os tambores da chuva. Torço muito para que Ismail Kadaré ganhe o Prêmio Nobel de Literatura desse ano.