quarta-feira, 22 de abril de 2015

Rilke e Lou Andréas-Salomé

Ontem, feriado, estava com dois livros à mão: Correspondência amorosa, de Rainer Maria Rilke e Lou Andréas-Salomé, e Minha Vida, de Lou Andréas-Salomé.
Lendo a correspondência entre os dois e o que ela vai escrever sobre o que foi o amor deles, décadas depois.
No Livro das horas, ele dedica esse poema a ela:
"Apaga-me os olhos: ainda posso ver-te,
e sem pés posso ainda ir para ti,
e sem boca posso ainda invocar-te.
Quebra-me os braços, e posso apertar-te
com o coração como com a mão,
tapa-me o coração, e o cérebro baterá
e se me deitares fogo ao cérebro
hei de continuar a trazer-te em meu sangue".
E em uma carta, escreve para ela:
"Então tua carta me trouxe a suave benção,
e me convenci de que não há distância:
De toda a beleza me vens ao encontro,
tu, minha primaveril aragem, tu, minha chuva de verão,
tu, minha noite de junho e seus mil caminhos
que nenhum devoto percorreu antes de mim:
estou em ti."
E o que foi esse amor para ela, já que não tinha esse dom ímpar com as rimas, esse dom obscuro que viu nele, antes dele mesmo? Quando se encontraram, ele era um jovem de 21 anos, sentindo que tinha uma obra a construir, ela já era uma escritora e tinha 36.
Em seu livro de memórias há um capítulo em que fala dele: "Se fui durante anos tua mulher, assim o foi porque tu foste para mim pela primeira vez o real, corpo e homem uno, indiscernível, fato indubitável da vida mesma. Palavra por palavra eu tinha podido confessar-te o que me disseste como confissão de amor: "Somente tu és real". Foi assim que nos tornamos esposos ainda antes de nos tornarmos amigos, e tornamo-nos amigos mais por bodas igualmente subterrâneas do que pela escolha. Em nós não havia duas metades que se buscavam: nossa totalidade reconheceu-se surpresa, fremente, em uma incrível totalidade. E assim fomos irmãos, mas como de tempos remotos, antes de o incesto tornar-se sacrilégio."
E qual o final da história? E foram infelizes para sempre.
Como vocês podem ver, ontem, no feriado, acordei para o amor.

domingo, 19 de abril de 2015

A história que o pai calou

Um filho, um dia qualquer, folheando um livro do pai, descobre uma carta e nela, que ele teve um filho com uma alemã, antes de se casar com sua mãe. Nunca soube dessa história, nunca foi falada na família. A partir dessa descoberta, mexendo nos livros e nas gavetas do pai e da mãe, descobre outros capítulos da história pregressa do pai: em 1931, jovem jornalista, é enviado a Berlim, fica lá um ano e meio e conhece Anne. Andam pelas ruas de Berlim, se apaixonam, ela engravida. Quando ela está com alguns meses de gravidez, ele é chamado de volta ao Brasil. Deixa-a, promete voltar, mas embarca no navio sem nem ao menos olhar para trás e acenar para ela. Essa cena é imaginada mais de trinta anos depois por esse filho do jornalista, que tenta entender porque o pai fez o que fez. De factual há uma carta de Anne no ano seguinte perguntando se ele voltará, que quer saber, pois o bebê nasceu, é um menino e precisa ser registrado. Ela agora tem um pretendente que se propõe a ficar com ela e a registrar a criança.
O filho também descobre que o governo alemão escreveu ao pai dele para averiguar se ele não tem sangue judeu, precisam averiguar se a criança não tem antepassados judeus a fim de definir seu destino, pedem certidões até dos avós desse homem. Ele só consegue as suas e de seus pais. O governo alemão não acha suficiente e escreve novamente. Pede que o pai brasileiro, que não registrou a criança, envie ajuda financeira para sustenta-la, que está sob a responsabilidade do governo alemão. Anos difíceis, às vésperas de começar a Segunda Guerra Mundial. Essas cartas todas estão impressas nas páginas do livro que acabei de ler.
Esse filho, um dia, na mesa de almoço familiar, solta essa frase: eu não teria vergonha de ter um filho alemão. O pai para, com o garfo cheio de comida, suspenso entre o prato e a boca, olha-o e não diz uma palavra. Nada. Dessa história o pai nunca falará nada com ele. E, pelo visto, com ninguém, pois o filho sente que também sua mãe gostaria de ter uma ideia do que foi essa história. Mas nada, nenhuma palavra.
O filho que faz essa investigação sobre a história do filho alemão do pai, filho que o pai não registrou, não criou, não foi atrás dele na Alemanha – no romance, o narrador-filho com irmão alemão, cria uma cena em que o pai vai à Alemanha atrás do filho – é Chico Buarque de Holanda. O pai se chama Sérgio Buarque de Holanda, o grande historiador que escreveu Raízes do Brasil. O filho alemão de Sérgio Buarque de Holanda foi chamado Sérgio Ernst, ficando só com o sobrenome da mãe, Anne Ernst. Quando ela o deu para adoção – eu acho que essa criança pode ter sido tomada dela, já que o governo alemão tinha a suspeita que ele tivesse sangue judeu – seu nome e sobrenome foram mudados. Mas assim que ele descobriu sua história, retornou ao nome Sérgio, dado por sua mãe.
Em 2013, Chico Buarque com quase setenta anos, foi a Berlim resgatar a história de seu pai. Com a ajuda de seu editor e de um historiador, com a ajuda de sua filha Silvia Buarque na tradução, conheceu a família e a história de seu irmão alemão Sérgio Gunter. Ele manteve o sobrenome da família que o adotou. Chico encontrou-se com sua ex-mulher, sua filha, neta, amigos e assim, soube quem foi Sérgio, seu irmão alemão, que tinha morrido de câncer aos 51 anos, na década de 80. 
Desse drama que parece ter assombrado sua história e a de seu pai, Chico escreveu seu melhor romance, este que está nas livrarias agora, O irmão alemão.
Agora um impressão minha: sonhei essa noite com Sérgio Günter e queria ter sabido o que foi a vida dele, nascido no pré-guerra, pesando sobre sua cabeça a suspeita do "crime" de ter sangue judeu, vindo de um pai que não foi pai, que não o registrou, "dado" para adoção, tendo o nome mudado, depois retornado ao nome Sérgio, vivido sua juventude na Berlim Oriental, morrido de câncer tão jovem. Creio que vou pensar em Sérgio Günter por vários dias ainda.




segunda-feira, 6 de abril de 2015

AS MÁSCARAS DO AMOR


XV ENCONTRO NACIONAL DA ESCOLA DE PSICANÁLISE DOS FÓRUNS DO CAMPO LACANIANO NO BRASIL
AMOR E SEXOS
Campo Grande, 13 a 16 de novembro de 2014

Andréa Brunetto

Há tantas máscaras quantas insatisfações, afirma Lacan em sua aula de 16 de abril de 1958. Essa aula do Seminário V, As formações do Inconsciente, em que Lacan falará sobre as máscaras do sintoma e ainda um episódio da epopeia romântica Jerusalém Libertada, de Torquato Tasso, deram-me a inspiração do que falar para vocês, aqui, nesse encontro sobre Amor e Sexos.
Nessa aula de seu seminário, Lacan sustenta que o desejo está ligado a alguma coisa que é sua aparência, a máscara1. É uma questão essencial que temos na experiência analítica, diz Lacan, essa relação entre o desejo e aquilo que ele se reveste.  E vai dizer que também o sintoma se apresenta sob uma máscara paradoxal. Ele retoma o Caso de Elizabeth von R., descrito por Freud nos Estudos sobre a Histeria, para dizer que seu sintoma é uma máscara de dupla identificação: com a irmã e com o cunhado.
A ideia da máscara significa que o sintoma se apresenta de forma ambígua. “A questão é a da ligação que permanece como um ponto de interrogação, um x, um enigma, com o sintoma do qual ele se reveste, ou seja, com a máscara”.2 A máscara é essa coisa fechada que permite o reconhecimento do desejo. Identificar a máscara com o desejo freudiano é algo diferente do que se dirigir a um objeto.
A análise serve para comprovar esse caráter vagabundo, fugidio e inapreensível do desejo, alega Lacan. É o que faz com que ele diga: o desejo é mascarado. Podemos desmascará-lo algum dia? É uma pergunta que faz no Seminário 10.
Uma máscara é um revestimento, diz Lacan. Acompanhando seu ensino, também podemos chamá-la de vestimenta, vestido. Um muro. Uma vestimenta que faz com que a periquita de Picasso só se enamore dele quando estiver vestido. Sem a máscara, a vestimenta, o muro, a armadura, é o gozar de um corpo. E isso não deixa claro o que é o amor.
Vou chamar a máscara de um destino pulsional. Assim Freud dá o exemplo de um destino, o de Tancredo e Clorinda. Jerusalém Libertada foi citada por Freud em Além do Princípio do Prazer. Escrita em 1581, ambientada no tempo das cruzadas, da guerra entre pagãos e cristãos, assim vista pelo seu autor Torquato Tasso, italiano, cristão, que a escreveu morrendo de medo que algo desgostasse a inquisição e que ele próprio fosse considerado pagão.
Em Jerusalém Libertada, a máscara é uma armadura. Clorinda, a pagã, que usa uma armadura para ficar forte e “poder no perigo aventurar-se”, consegue energia e amor ardente quando a usa. Tancredo mata Clorinda em um duelo, ela disfarçada de cavaleiro. Tirando a armadura do suposto cavaleiro que ferira, vê o corpo casto da donzela – terá daqui saído a inspiração para Diadorim? – e com ela morta nos braços, sente-se condenado a um indigno existir, a viver em memória dos amores infelizes. No canto seguinte da epopeia, abre caminho numa estranha floresta mágica que aterroriza o exército dos cruzados. Com a espada faz um talho em um cipreste e ouve lamentar-se a voz de Clorinda: novamente me mataste! Na árvore estava aprisionada a alma de sua amada. E o narrador nos diz: hábil guerreiro, só débil para o amor foi. Deixa-se iludir por falsas imagens. No aspecto amoroso, Tancredo é como todos, embora nem todos sejam hábeis guerreiros. A isso, Freud chama um destino, “a perpétua recorrência da mesma coisa”.3
Lacan afirma no Seminário 20: mais, ainda, que o amor baseia-se numa certa relação entre dois saberes inconscientes, apontando que o sujeito aproxima-se de seu objeto na condição de que não o saiba, que esse saber é do inconsciente. “No baile dos incoerentes do amor, é preciso uma máscara para apreender o objeto. Ele se refere a comédia de Alphonse Allais, em que Raul e Marguerite, em um casamento de cinco meses, feito de muitas brigas, fazem um reconciliação no baile de máscaras em que cada um foi mascarado para, desmascarar a suposta infidelidade do outro.”4 A relação entre a orientação da libido e o desconhecimento fica evidente tanto no Banquete como na tragédia de Édipo. Sócrates só pôde colocar seu saber sobre o amor demonstrando que não sabia e que o que descobriu lhe foi contado por uma mulher, Diotima. O que Lacan marca é que só pode existir discurso amoroso a partir do ponto onde ele não sabia. E não só no discurso. O amor é concebido sem que Poros o soubesse.5
Esse desconhecimento sobre o objeto que causa o sujeito, que para além das vestimentas que o mascaram e fazem um happy end vitoriano, Lacan encontrou no romance de Marguerite Duras, O Deslumbramento de Lol Stein. Um vestido que deixado cair, evidenciava, para além da fantasia, o objeto a. Um vestido presta-se muito bem a ser uma máscara. As mulheres bem o sabem. Não apenas dos vestidos, da mascarada para o outro.
Em O Seminário 11: os conceitos fundamentais da psicanálise, diz: “Se há algum domínio em que a tapeação tem chance de ter sucesso é certamente no amor que encontramos seu modelo”.6 E no capítulo seguinte desse seminário, Lacan vai chamar o amor de uma falsidade essencial. Para depois afirmar: “enquanto miragem e especular, o amor tem essência de tapeação, Mas nessa tapeação, algo é paradoxal: o objeto a. “Eu te amo, mas porque, inexplicavelmente, amo em ti algo que é mais que tu – o objeto a, eu te mutilo.”7
A máscara, a vestimenta, a armadura, ou o muro, que Lacan equivoca com amor, mostram que o amor é a máscara. O amor é a tapeação não apenas necessária, mas essencial.
Mais dois exemplos mascarados. Um da literatura e outro da clínica. O da literatura é um pouco mais atual que Jerusalém Libertada. É do Século XIX, uma comédia de Max Beerbohm, inglês, contemporâneo e conterrâneo de Oscar Wilde, participava do mesmo grupo de escritores que seu colega mais famoso, e tão ácido na crítica quanto aquele. O farsante feliz conta a história de Lord George Hell, nobre hedonista, rico, perverso, jogador, voraz, destrutivo, rebelde, covarde, cínico, antipático, odioso, insolente. Vou parar por aqui na lista de adjetivos com que o autor caracteriza seu personagem. Nunca se preocupou em dissimular sua perfídia, cheio de amantes, madrugadas na luxúria e nas mesas de jogo, fugindo de uma amante italiana que o perseguia. Uma noite vê uma jovem dançarina um pouco desajeitada em um clube e se apaixona à primeira vista. Ajoelha-se diante da jovem Jenny Mere e a pede em casamento. Ela responde que não, “jamais poderá ser esposa de alguém cujo rosto não seja de um santo”. “Talvez Millord, seu rosto reflita um amor por mim, mas reflete muito da vaidade do mundo. Só a um homem cujo rosto seja tão maravilhoso como o dos santos, só a este poderei entregar meu verdadeiro amor”.
Para ir aos finalmente, Lord George vai a um famoso fabricante de máscaras, pede uma que represente o verdadeiro amor e a face de um santo. O fabricante procura em seu depósito de máscaras e encontra uma que confeccionou para um homem usar em suas bodas de prata e depois lhe devolveu. Lord George a quer e diz que vai usá-la para sempre. Com ela conquista Jenny Mere, vão se casar, compra uma casa rústica, no bosque; devolve os bens que ganhou ilicitamente, nas mesas de jogos. O único problema era que os beijos de máscara ficavam um tanto insípidos, se perdia o gosto da boca do outro. Às vezes pensava em tirar a máscara e beijá-la, não queria essa barreira entre ele e sua jovem esposa. Mas depois retomava o bom senso e sabia que teria que usar a máscara para sempre. Apesar do material duro com que era feita, ela representava o verdadeiro amor.
Há uma cena final em que a amante italiana os desmascara. Diz a Lord George que a máscara campestre de sua jovem esposa é melhor que a dele. Avança sobre a dele, arranca e a joga no chão. E aí vem a surpresa para ele e a ex amante italiana: por trás da máscara seu rosto tinha se tornado igual à máscara. Ele olhou sua amada nos olhos e viu isso refletido nos olhos dela. E foram felizes para sempre. Mascarados. Ele de santo, ela de jovem campestre.
Agora o exemplo da clínica. Um homem jovem procura a analista porque comentaram que ela era intelectual. É esse o significante qualquer com o qual começa sua análise. Nela fala de suas dificuldades nos estudos, que tem desde criança. E, sobretudo, de um relacionamento amoroso fracassado dois anos antes. Nesse momento já está namorando outra pessoa, mas fala daquela namorada, que vivia lendo, estudando, só tinha papo cabeça, conversa intelectual e que isso o entendiava. Sempre que dizia sobre a ex, terminava assim “e aí eu me entediei e terminei”. E nessa vez em que a palavra vacila, como um tropeço, diz “e aí me apaixonei”.
O significante pode ser uma máscara? Para esse homem que se sente deslocado, fora do mercado de trabalho, do negócio familiar – é uma das queixas: ele é out da empresa familiar – e da relação de amor que deixou perder porque não enxergou que estava apaixonado, o intelectual o interessa muito, e ele achava que isso o entediava. Esse in que ele esperava alcançar para deixar de ser out é uma sílaba de seu sobrenome. Trata-se aqui da construção de um nome próprio. Um sinthoma. Isso é mais do que uma máscara-semblante identificatória?  






1 Lacan, J. O Seminário, livro 5, As formações do inconsciente. RJ: Jorge Zahar Editor, p. 331.
2 Ibid, p. 338.
3 FREUD. Standard Obras Completas. Além do princípio do prazer.
4 Brunetto, A. Sobre amores e exílios: na fronteira da psicanálise e da literatura. SP: Editora Escuta.
5 Ibid.
6 LACAN. J. O Seminário, livro 11: os conceitos fundamentais da psicanálise. RJ: JZEditor, p. 128.
7 Ibid, p. 253.