segunda-feira, 3 de outubro de 2016

Dos dois lados da Baía de Guanabara, os museus futuristas de Oscar Niemeyer e Santiago Calatrava



No final de semana passado, fui a Niterói para dar uma conferência de psicanálise e aproveitei para ir aos museus. Em dois dias, três museus, um em Niterói e dois no Rio de Janeiro. Sexta-feira e sábado passados estavam lindos dias de sol, dias perfeitos para ir a museus.
 No mirante de Boa Viagem, em Niterói, O Museu de Arte Contemporânea, o MAC, essa construção circular, como um disco voador, é por si só uma obra de arte de Oscar Niemeyer. Inaugurado em setembro de 1996, nesse mês fez exatamente vinte anos que está lá, redondo, com todas suas janelas a contemplar a Baía de Guanabara. A exposição Ephemera, com peças do colecionador João Sattamini estão lá para lembrar-nos que “a arte é o espelho das ilusões”. A arte mostra os enigmas, os medos, o poder e o narcisismo dos homens. Assim está inscrito na parede. Cito apenas duas que me tocaram muito: de Waltércio Caldas (1946), uma caixa de couro e veludo com uma coroa de metal e strass, para mostrar a ilusão do poder. Um homem que se sente um rei, seja um ou não, está sempre nu, como no conto de Handersen, a Roupa nova do rei. Uma coroa mostra exatamente isso, como o poder sobe à cabeça. E a segunda obra que gostei muito é intitulada “Na estrada da vida”. Sobre um pedaço de lona de caminhão, estão bordadas as frases que lemos nos para-choques de caminhões: nas curvas de teu corpo, capotei meu coração; só Jesus Cristo salva; viúva é como grama verde, chora, mas pega fogo, dentre outras. Essa coleção de ilusões, espelhos da arte e da alma, enche de beleza essa construção sobre o mar.
No sábado de manhã, fui ao Parque da Cidade. Dizem que é a vista mais linda do Rio de Janeiro. Do alto do morro, os corajosos pulam de parapente se enfiando no meio dessa paisagem espetacular. Tirei umas quantas fotos, mas já vou avisando que não pulei.
E depois atravessei a Baía de Guanabara de barca e fui caminhando até o Museu do Amanhã. Outro museu às margens da baía, em que a própria construção já é uma obra de arte. Inaugurado no final do ano passado, é obra do renomado arquiteto espanhol Santiago Calatrava. O prédio parece uma nave espacial. Um museu que começa perguntando a todos seus frequentadores que amanhã estamos construindo com nosso desmazelo com a terra. Com fotos espetaculares da terra vista do espaço.  “O futuro não está pronto e acabado. A cada dia, a cada escolha, o rio do Tempo se abre em um delta de Amanhãs.” Depois da pergunta acima, está lá, impressa na parede, essa explicação tão poética de que ainda há tempo.  E também impressa está a poesia de Vinicius de Moraes, Rosa de Hiroshima, para lembrar-nos da tragédia atômica: não se esqueçam da rosa de Hiroshima, radioativa, atômica, sem perfume, sem cor, sem rosa, sem nada. E também tem uma exposição temporária sobre Santos Dumont, intitulada “O poeta voador”. É um museu imperdível, se não puderem ir hoje, vão amanhã ao Museu do Amanhã. Filas para entrar – mesmo tendo comprado o ingresso online – filas para entrar na lojinha do museu – souvenirs caríssimos, exorbitantes – filas até para sair do museu. E carregando minha mochila, atravessei a Praça Mauá e fui ao MAR (Museu de Arte do Rio). A praça estava cheia de gente, revitalizada e prestigiada pelos cariocas e turistas. Bem policiada, limpa, organizada. No MAR estava tendo várias exposições. A que mais gostei foi sobre Dona Leopoldina, princesa da independência, das artes e das ciências. A bela princesa austríaca, que veio ao Brasil com uma bagagem gigantesca e um séquito de criados, para se casar com D. Pedro I. No último andar do museu, uma bela vista da Baía de Guanabara.

Depois de tudo isso, de dois dias em que fui a Niterói para falar de psicanálise e o que mais fiz foi visitar museus, e viajar pela beleza das construções, pelas imagens, pelos enigmas e pelas ilusões que a arte propicia, pude fazer a viagem de volta. Um belo dia de sol não serve apenas para ir à praia, serve para ir ao Museu do Amanhã. E a praia? Deixei para o domingo. Mas domingo choveu. Então tive que deixar as praias para um amanhã, em futuro próximo, pois o Rio continua lá. E continua lindo. E com o novo museu, mais lindo ainda. 
Eu, à frente do MAC

Bonito, um milagre da natureza bem perto de nós


Bonito é um milagre da natureza. Muitas cidades do mundo têm como um de seus atrativos a beleza da natureza; em Bonito não, a natureza é a personagem principal. Ela tem muitos rios, cachoeiras, aquários naturais, cavernas, bosques, animais. Ela tem peixes e pássaros, ventos e pastos, e mergulhos em rios de águas transparentes, com os peixes se esfregando em suas pernas – para quem gosta – e uma arara vem pousar no braço de sua cadeira, e os rebanhos de gado, no caminho para os passeios, andam ao seu lado (do outro lado da cerca, claro) e você coloca os pés na terra vermelha e não no cimento duro ou no asfalto construído pela mão humana. Eu não reclamo de um bom asfalto, mas em Bonito, por alguns dias, você pode ser transportado para uma vida mais rural, mais campestre, mais natural. Nem que seja por um final de semana.
Mas Bonito, em nosso Estado, tem uma configuração ímpar, além da natureza. É uma cidade internacional. Não apenas porque nela você topa com turistas do mundo inteiro e escuta muitas línguas – nenhuma outra cidade do Estado tem isso – mas porque as pessoas que a escolheram para viver e trabalhar são de vários lugares do mundo. O atendente na pousada em que ficamos era de Assunção; o dono de uma pousada na qual fiquei hospedada em outras vezes era argentino. Veio para passear com a mulher e resolveu viver sua vida de aposentado ali. Priscila, uma psicóloga que conheci porque veio estudar no instituto de psicanálise que participo, depois de uma temporada estudando em São Paulo, construiu uma pousada em terras familiares e está lá, vivendo e trabalhando em Bonito. Minha amiga Graça, pedagoga, com a qual trabalhei na Secretaria de Educação, em séculos passados, tem uma loja de artesanato em que aplicou toda sua finesse, seu estilo, sua delicadeza para transformá-la num mimo que se destaca de todas as demais lojas.
E também conheci uma mulher que abriu um museu de contação de histórias. Em quarenta minutos, ela conta a história da cidade, mostra as fotografias na parede e os objetos da cultura Kadwéu, e conta a história do bandoleiro Silvino Jacques. E na avenida Pillad Rebuá – que na semana passada estava sendo organizada para se transformar em mão única – encontra-se sorveterias com sorvetes de frutas típicas, que só tem aqui em nosso Estado. E vou confessar: experimentei uma das melhores tortas da vida em uma doceria que tem a palavra gula no nome do estabelecimento. Para os viciados em doces, faz jus ao nome. E, entre todas as lojas que vendem camisetas típicas, uma delas conseguiu estampar nas camisetas as fotos mais lindas dos passeios de Bonito. Assim, mais do que a riqueza da natureza, tecida em milhões de anos, a riqueza das boas ideias humanas também está lá. 
Para quem mora em Campo Grande, é relativamente perto. Só dirigir um pouco, nem precisa passar por aeroportos. Saí com uma amiga no sábado de manhã e voltamos domingo final da tarde. Os problemas de Bonito: na agência onde fomos marcar o passeio foi demoradíssimo, pois a atendente falava um perfeito português com um grupo de argentinas (deduzi que eram argentinas pelo acento do castelhano falado) que queriam entender os atrativos. Como pode a agência não ter funcionários que falem espanhol? Depois dessa espera, eu e Silvana decidimos conhecer a caverna São Mateus. É um atrativo relativamente novo, funciona há cerca de três anos. Já conhecíamos as outras duas cavernas, do Lago Azul e São Miguel, pedimos ao funcionário da agência se ele conhecia, se sabia se era bonita. Não conhecia, não tinha ido lá. E outra coisa que todo mundo comenta: os preços dos passeios são caríssimos. Mesmo para quem paga em dólar ou euros, para esses menos, mas mesmo assim são caros. Para fazer jus a esses preços, os serviços em Bonito precisam melhorar muito.
Ficamos em uma nova pousada, distante da cidade. Na agência nos explicaram como chegar de um jeito muito complicado, como não tinha uma placa até a pousada, deve ter sido por milagre que conseguimos chegar até lá. Mas valeu a pena, pois era linda, verde, cheia de coqueiros, com chalés muito confortáveis, e piscinas e café-da-manhã excelente.
E o principal: a gruta São Mateus. Impressionante, difícil de entrar, um buraco pequeno de entrada – se eu engordasse mais um pouco, o que não é nada difícil, não passava na abertura – e lá dentro se descortinam formações rochosas que a natureza demorou milênios para construir. É escura, lisa, é um passeio um pouco aventureiro, mas para quem já chegou até Bonito, aventura faz parte do pacote. Vale a pena também por causa de seu guia, que explica tudo sobre a caverna e a conhece em minúcias. Enfim, alguém que faz seu trabalho do melhor jeito possível.

Bonito é esse milagre, como disse acima, bem perto da gente. Como muitas coisas na vida, a gente vai longe, mas por vezes o que precisamos está bem perto.
 

Florença, a capital da Toscana, cidade das artes e do amor



Quase na virada do Século XX, Rainer Maria Rilke chegou a Florença. Ainda não era o gigante da poesia que viria a se tornar, era um jovem poeta apaixonado por uma mulher mais velha, comprometida e já uma escritora renomada. Nessa cidade, campo das artes, começa a escrever um diário para contar a ela - a amada, a amante, a confidente e interlocutora fundamental com a qual foi construindo sua obra -  sobre a viagem, para que ela pudesse acompanhar o que ele via. Assim nasceu o Diário de Florença. O que pretendo é mais ou menos isso: que vocês vejam Florença a partir de meus olhos.
Estive em Florença duas vezes, uma no verão e outra na primavera. Sempre ela é lotada de gente, com grandes filas para entrar nos museus, restaurantes, igrejas, trens. Mesmo com todas essas dificuldades, uma pessoa não pode ir à Itália sem ir a Florença. Na primeira vez que fui, acordei às cinco da manhã para andar pela cidade vazia, tirar fotos do rio Arno,  ficar na fila para entrar na Galeria Uffizi e ver, dentre centenas de quadros importantes, o Nascimento de Vênus, de Sandro Botticelli.
Nessa primeira vez fui em um verão, fiquei mais de uma hora em uma fila que contornava quarteirões, para entrar na Galeria da Academia de Belas Artes e ver a estátua de Davi, de Michelangelo. Desisti antes de chegar lá, sabendo que voltaria em breve para vê-la. Voltei. Contentei-me em contemplar a réplica da estátua original na Praça della Signoria. Nessa praça há réplicas de três estátuas belíssimas: o Davi, de Michelangelo, o Rapto das sabinas, de Giambologna e Netuno, de Bartolomeo Ammannati. É uma praça das artes. Nela escutei um concerto de um músico polaco que tocava lindamente violino. Comprei seus CDs. De vez em quando, quando sinto saudades da cidade, coloco suas músicas e lembro-me de Florença e da Praça della Signoria.
O poder da Família Médici, durante trezentos anos, transformou Florença em um resplendor do renascimento. É a cidade de Bruneleschi, Michelangelo, Dante Alighieri, Giorgio Vasari, Giambologna, Leonardo Da Vinci (que nasceu numa cidade vizinha), Sandro Botticelli, Ghirlandaio. São tantos os nomes de artistas que deixaram sua marca para a história, praticamente todos os nomes do renascimento que estudei na escola, estão inscritos na história da cidade, em sua arquitetura, museus, igrejas e praças.
Rilke escreve que “a cidade espraia-se na harmonia dos tons marrons e cinza, e as cores da noite já atingem as montanhas de Fiesole.” Nesse Diário de Florença, diz que a poesia deve ser lida à beira de um caminho, com um pouco de floresta e à luz do sol de um verão. Assim, cada poema conserva seu significado: o frescor, o perfume e o brilho. Mas lembra que em Florença não têm florestas, então as igrejas são como florestas. E em Florença tem muitas, e são lindas e cheias de obras de arte. Na Santa Maria Novella está o quadro O nascimento de Maria, de Ghirlandaio.
Foi com esse Diário de Florença, de Rilke, que cheguei à cidade. Com o olhar romântico, artístico, e apaixonado, escreveu esse diário que foi para mim um guia de viagem. Mas se vocês preferirem outra referência sobre a cidade, sugiro assistirem ao filme “Uma janela pra o amor”, do diretor James Ivory. Nele, os atores Julian Sands e Helena Bonhan Carter se olham, apaixonadamente, de uma janela de um andar alto e, além dos dois, vemos a cúpula da Catedral Santa Maria del Fiore. No filme, a beleza de Florença é evidente e a cidade é a protagonista.
A cidade é um palco para o amor. Há uma igreja em Florença, a Chiesa di Dante, onde se diz que Dante viu pela primeira vez Beatrice e se apaixonou por ela. Robert e Elisabeth Barret Browning, os poetas ingleses, para viver mais livremente seu amor, foram se refugiar em Florença. Para mim, Florença é a cidade onde se pode viver o amor. Muito mais romântica do que a suja e confusa Veneza.
Mas se vocês preferirem outros motivos para ir lá, sem tanto amor, ei-los: é a capital da Toscana, uma província linda, acolhedora, terra de muitas vinícolas, de vilarejos antiquíssimos, escondidos nas montanhas, repletos de ruínas dos etruscos, povo que antecedeu aos romanos. Por motivos históricos, para os amantes do vinho, para andar pelo Rio Arno e pela Ponte Vecchio, se pode ir a Florença. Para contemplar seus telhados vermelhos, sua arte, seus corredores amplos, vale à pena ir a Florença. Pelo exagero de tanta beleza junta, de tantos artistas. Tudo está lá, para todos os gostos. Com amor ou sem amor. Mas com amor é sempre melhor, tem mais brilho, tem mais arte. Tudo se pode encontrar lá, tantos foram viver seu amor lá, por que não eu? Por que não você?




Nápoles, a impressionante e caótica cidade que cresceu à beira de um vulcão.


Viagens pela Itália. Parte II

Cerca de dez séculos A.C., os gregos navegaram pelo Mar Jônico e foram procurar novas terras. Encontraram. E ali construíram vários povoados. Aos pés de um vulcão cresceu um deles - um dentre tantos, dessa região que foi conhecida como Magna Grécia – chamado Pompéia. Em 79 D.C., uma irrupção do vulcão destruiu a cidade toda. A fumaça tóxica acabou com toda vida humana e animal por quilômetros. Um cachorro correndo, um homem abaixado, outro deitado, uma mulher com uma criança, petrificados pela fumaça vulcânica, conservados assim pela eternidade. Como em um museu de cera - esse é de pedra - eles estão lá, nesse museu a céu aberto: as ruínas de Pompéia, a cidade destruída pelo Vesúvio. Pompéia fica mais ao sul que Nápoles, mais perto da Costa Amalfitana. As duas cidades são separadas pelo vulcão.
Nápoles é uma grande cidade, litorânea, banhada pelo Mar Tirreno. Fui até ela com três amigas e por três motivos: conhecer Pompéia, ir à ilha de Capri e ver a estátua de Hércules no Museu Arqueológico Nacional. Mesmo sabendo de antemão que era caótica, desorganizada, perigosa, sob o controle da máfia, fiz questão de ir e ainda levei minhas amigas. Ficamos em um hotel lindo e chique, no porto, mas com entorno péssimo. Já sabíamos que ela era perigosa, por isso só chegamos nela com uma sacola com poucas roupas, para o final de semana. Inês já chegou sem bagagem nenhuma, pois a companhia aérea tinha extraviado sua mala.
Stendhal, o famoso escritor francês, escreveu um livro sobre Nápoles, Roma e Florença, as cidades italianas de que mais gostava. Em 1816, escreveu que era difícil assistir à queda de um império – o império napoleônico tinha acabado há dois anos – e ele foi se refugiar da França em ruínas de um império, em Nápoles. Àquela época, Nápoles não era caótica, pelo contrário, ela era uma cidade chique, repleta de nobreza, todas as noites, portas abertas do teatro para grandes óperas. Dizia que não era possível ser feliz em Paris, somente na Itália podia-se viver dia-a-dia, sem planos para o futuro, renunciando às ambições. Andava pelas ruas de Nápoles, sob um sol ardente e aspirava às emoções radicais e apaixonadas dos napolitanos: “um homem nórdico sempre achará absurdo esse jeito de ser dos italianos”. Mas ele lembrava que não eram paixões profundas e sim voláteis, pois os napolitanos viviam o momento. Eu soube disso, pois em duas situações diferentes, dois homens se apaixonaram perdidamente por mim, por uns quinze minutos ou um pouco mais: ao sair de uma padaria com minhas amigas, ele pegou o carro e foi atrás de mim porque não poderia esquecer-me nem viver mais sem saber quem eu era. Ao dizer que meu marido me esperava no hotel, pediu desculpas e voltou. E o outro que se apaixonou foi um marinheiro lindo no barco indo para Capri. A paixão durou o trajeto de uma travessia.
Uma coisa em comum com Stendhal: ele ficou impressionado com os afrescos de Pompéia. Eu também.  Atualmente, eles estão no Museu Arqueológico Nacional. E a herança grega de Pompéia está representada nesses quadros todos: os deuses gregos estão lá.
Quis ir a Nápoles depois que assisti ao filme “Viaggio in Itália”. Filme dirigido por Roberto Rosselini. Em uma Europa se reconstruindo da Segunda Guerra, um casal vai a Nápoles para vender uma casa. Um casal em crise. A casa a ser vendida ficava próxima do Vesúvio. Ele é onipresente no cenário do filme. A mulher é interpretada por Ingrid Bergman. Está belíssima. Em uma das cenas ela vai ao Museu Arqueológico Nacional e fica parada, impressionada, contemplando a estátua de três metros de altura de Hércules. Vemos no filme uma Nápoles já caótica, uma Europa destruída e o desabar de uma relação, sendo vivida pouco a pouco em uma casa diante de um vulcão. Katherine, a personagem de Bergman, vai a Pompéia ver os restos da irrupção do Vesúvio, as pessoas petrificadas. Esse filme é o melhor guia do que se ver na cidade. Fui até Nápoles por causa dele.
Eu, como Bergman, fiquei impressionada com a estátua de Hércules.  Imponente, com um corpo perfeito, cansado, encostado em seu bastão, depois de ter executado todas as provas que lhe foram impostas pelos deuses. Dizem os boatos que depois que Napoleão deixou Nápoles - sim porque Napoleão também conquistou o reino de Nápoles - a única coisa de que se arrependeu foi de não ter carregado essa estátua com ele para Paris. Eu também não pude trazer a estátua comigo, contentei-me com umas fotos, de uma delas, fiz um quadro e está pendurado em uma parede de minha casa. Mas não tem só essa estátua, no Museu Arqueológico Nacional estão todos os afrescos de Pompéia, muitas estátuas lindas. Também gostei demais da estátua de Atlas, envergado, carregando o globo terrestre nas costas. Alba tirou belas fotos dessa estátua, fez-me fechar uma grande porta do andar de cima do museu para não refletir na estátua e tirar a foto perfeita. Morrendo de medo de ser descoberta, mas pensando na foto, fiz. E também há no museu uma coleção de bustos dos imperadores romanos. Está lá a Coleção Farnese, uma extensa coleção de arte da antiguidade. É um dos mais importantes museus da Europa.
E também fomos a Capri, uma ilha linda, pequena, uma montanha em que se sobe em círculos, para contemplar do alto os dois rochedos pontudos fincados em um mar azul anil.
Apesar do lixo nas ruas, das casas depredadas, feias e sujas, da pobreza, das ruelas inseguras, Nápoles tem Pompéia, Capri e esse museu. Nela, em séculos passados, Stendhal foi se refugiar de um império em ruínas. E hoje é ela a lembrança de um reinado que ruiu. E avalio que se não tivesse ido lá, minha visão da Itália não seria a mesma. Fico tão contente de ter me apaixonado por esse filme e ter tido a coragem de ir lá. E que minhas amigas me acompanharam. Quanto a Nápoles, só desejo duas coisas: que vocês também tenham coragem de ir lá, porque quanto a mim, vou arranjar coragem para voltar. Quem se habilita a voltar lá comigo?







F de falcão, de Helen Macdonald

O livro F de Falcão, de Helen Macdonald foi lançado em 2014 e já premiado na Inglaterra. Nesse ano foi lançado no Brasil e sua autora esteve para autografá-lo e participar da Flip. O romance é claramente autobiográfico e conta a estória de uma mulher que acabou de perder o pai de um enfarto fulminante e se refugia em seu luto treinando um açor, ave de rapina parente do falcão. Com a presença de Mabel, sua ave de rapina, a protagonista vai para lugares ermos, e outros nem tanto, da Escócia, praticar a arte da falconaria. Esse esporte tão famoso à época dos reis, da Velha Inglaterra. Convivendo com a natureza selvagem de Mabel, a personagem sem nome, vai resgatando sua infância e muitas lembranças do pai, um fotógrafo famoso. Ela sabe que os açores são seres da morte, caçadores sem humanidade nenhuma, mas tem mesmo assim um alívio: o que ele faz não tem nada a ver comigo.
Ela, como o pai, era uma voyeur. O pai se tornou famoso fotografando cenas políticas do mundo, e modelos famosos. Já ela, a filha, lembra-se da infância olhando para os animais, o céu, as florestas, enfim, a natureza. A sem nome cresceu numa floresta de pinheiros, com campos formados por formigas-de-madeira-vermelha, salamandras, carvalhos que eram casa de vespas, bétulas próximas da cerca da rodovia, mariposa vermelha que morava atrás da caixa da eletricidade, uma coruja empoleirada na árvore, uma cobra-d´água que o pai trouxe do rio. Assim como Mabel, a ave de rapina selvagem, também a protagonista teve uma infância selvagem. E construiu uma paisagem infantil de um lugar maravilhoso. É por isso que em seu romance o personagem principal, mais até do que Mabel e o pai, é T. H. White, o escritor britânico famoso por escrever os contos sobre o Rei Arthur e sua távola redonda. Era também ele um falcoeiro e escreveu um livro contando sua tentativa de domesticar um falcão. Tentativa fracassada, pois o falcão o abandona, desaparece mesmo com as travas nas patas. A narradora sem nome de F de falcão é obcecada por White, sabe toda sua história, leu seu livros, quer refazer seus passos, desse homem solitário, com dificuldades de aceitar sua homossexualidade, construindo com seus contos arthurianos um período mágico da Inglaterra que só existia em sua imaginação. Tem capítulos que começam assim: Em um dia de brisa soprando em agosto de 1939, White está na Irlanda, escondido da guerra. Pois tem isso também: White é um desertor que tem mais o que fazer do que guerrear, pelo menos essa, atual: “precisa concluir seu épico sobre a Grã-Bretanha medieval, que, afinal, resolverá o mistério de por que os seres humanos lutam.”
Ela, a narradora sem nome, tem uma profunda admiração pela escrita de White. Eis um exemplo: “Ele falava do tempo como um renascimento: escreveu que a vida “parecia estar se criando, parecia que estava nas paredes vazias do caos descobrindo uma abertura ou uma partícula de luz”. Para ela é como se ele fosse um homem vivendo de trás para a frente no tempo: “eu costumava pensar em Merlin como uma magnífica criação literária, mas agora penso nele como uma invenção muito mais peculiar: o futuro ego imaginado por White. Merlin “nasceu na época errada do tempo”.
Esse livro de Helen Macdonald é assim: um livro dentro de um livro. E o livro dentro do dela é “O único e eterno rei”, de T. H. White. Com ele, White, o criador das histórias de Merlin e do Rei Arthur, de um tempo passado mítico, melhor que o presente e com a natureza selvagem de sua infância e de Mabel, a narradora vai fazendo o luto de um pai, que em sua vida foi o único e eterno rei, o rei dessa menina campestre de memórias de florestas, e bichos e aves de rapinas do interior da Inglaterra até as Terras Altas da Escócia.
Já que ela fala tanto de White, ele já comprei também o livro dele e comecei a ler.