sábado, 28 de março de 2015

O beijo

Segurou-me o braço, olhou-me com desejo.
Aquiesci, o quis.
Vasculhei seu rosto,
a boca, o nariz, o furinho no queixo.
Do peito, fugiam-lhe pêlos,
escapavam camisa à fora.
Meu corpo tremeu.
Contive-me, segurei minha mão.
Mas não a boca.
Chamou-me de linda.
Hoje não, respondi.
Nem batom nos lábios tenho.
E com os dedos, os lábios esfreguei,
um beijo pedindo.
Ele entendeu:
Esta mulher instintivamente me quer.
Mas o beijo não deu.
E isso faz com que eu o peça,
com palavras,
a cada vez,
todo dia:
Dá-me um beijo.





sábado, 21 de março de 2015

O que falamos quando falamos de amor? Um elogio ao teatro




       Essa pergunta, título de um livro de Raymond Carver Jr, é o norte do filme Birdman, a inesperada virtude da ignorância. Michael Keaton é Riggan Thomson, ator, diretor e roteirista de uma peça que vai estrear na Broadway em um teatro de frente ao famoso musical “O fantasma da Ópera”. Necessitando de sucesso, temendo a avaliação de uma crítica famosa, todos envolvidos na peça vivem assombrados pelo fracasso. Sobretudo Riggan, é seu o desejo de encenar a peça a partir da obra de Carver.
         O filme é um debate sobre o amor verdadeiro, um elogio ao teatro e uma constatação da tristeza que é a velhice. Em todos esses debates o enfoque é sempre sobre o olhar. Sempre um olho absoluto que captura tudo e todos.
      Quando jovem, Riggan atuava em uma peça e Carver estava na plateia, o assistiu e lhe escreveu no guardanapo um recado: obrigado pela atuação honesta. A peça é, então, uma homenagem à interpretação honesta que o teatro propicia. No debate com seu alterego Birdman, Riggan se identifica a um ator honesto, é isso que ele busca. Birdman, o alterego que fala em sua cabeça o tempo todo, lhe responde que teatro é um palavrório filosófico, um nada. Cinema, e ainda mais Hollywood, é grandioso, é midiático, global, é Deus. É um momento de dilema de Riggan com Birdman. E o personagem sai voando, dizendo-se Ícaro, o mitológico Ícaro que voou, voou com suas asas de cera, que derreteram porque não escutou o conselho dado: quanto maior o voo em direção ao sol, maior o tombo. É a metáfora mais bonita do filme. Ícaro voa, o pôr do sol se reflete entre os prédios, ele desce e caminha. Tal como no preceito que Freud retira da Torá para nós: onde não podemos chegar voando, vamos mancando. E assim, o ator entra no teatro. Na batalha cinema versus teatro, um a zero para o teatro.
              Três cenas sobre a velhice. Riggan ainda é reconhecido pela série de filmes de Homem-pássaro que fez no passado. Uma mulher com certa idade pede autógrafo para ele, seu filho ao lado pergunta ‘mãe, quem é esse?’ mostrando que outrora ele foi famoso, agora um anônimo. Em outra cena, outro ator, interpretado por Edward Norton, conversando com a filha do personagem Riggan, em um jogo de verdade ou desafio, diz que teria medo de falhar se estivesse na cama com ela. Ela pergunta a ele: se você não tivesse medo de falhar, o que faria comigo? Ele responde: arrancaria seus olhos e colocaria em meu crânio para ver a rua com seus olhos, como eu fazia quando tinha sua idade. Ele nem é um homem velho, mas já vive em busca do tempo perdido, de uma juventude perdida.
               E aí estão esses olhos arrancados de uma jovem, soltos, expostos, no filme todo, a olhar a rua. Em vários momentos se fala em milhares de visualizações de facebooks, instagran e twitter.
               E mais um momento importante, onde a velhice do personagem Riggan é enfatizada: ele anda somente de cueca pela rua, pois seu roupão se trancou em uma porta, sai de um compartimento e contorna a rua, entrando pela porta da frente do teatro. As pessoas vão olhando aquele homem seminu andando pelas calçadas lotadas e os comentários não são sobre sua nudez e sim para sua idade: ‘nossa, como ele está velho!’. A verdadeira nudez é a da velhice.
              E chego à pergunta sobre o amor, que norteia o filme. O exemplo de amor verdadeiro é de um acidente em que um jovem bêbado, dirigindo o carro do pai, bate contra um trailer onde viviam dois idosos. O jovem morre – morrer jovem pode ser um destino bem pior que a velhice – os idosos não. O homem, todo enfaixado, engessado, fica sabendo que sua esposa não morreu. Mas ali no hospital, imobilizado, sua maior tristeza é não poder olhar para sua amada. Outra pergunta que surge: existe amor absoluto? Quem ama mata? E a cena final na cena dentro do filme responde sim. O amor verdadeiro é o exemplo do idoso acima. O outro amor que mata é a cena final: um homem entra no quarto, descobre a mulher na cama com outro, pergunta a ela se ainda o ama. Ela responde não, não mais. Ele dá as costas ao casal, Riggan interpretando o homem traído olha para a plateia e se dá um tiro na cabeça. Resposta de que só o amor faz uma pessoa existir. É a verdade poética de Goethe que Freud leva para sua obra: precisamos começar a amar para não adoecer. E podemos complementar com essa cena que, pelo inverso, mostra o poder do amor: sem o olhar de amor do outro, não há sentido na vida, desaparecemos.
               Riggan cai ferido na cena final da peça, pois no revólver tinha uma bala de verdade. Depois disso, é a cena final do filme. Sobreviveu a interpretação realística que faz juz a obra realística de Raymond Carver Jr. e aparece deitado na cama de um hospital. Seu advogado nos conta que ele é o sucesso do momento na cidade, no twitter, no facebook, a cidade só tem olhos para ele. E ele está lá, deitado na cama de hospital, com novo nariz, reconstituído pela cirurgia, pois o seu se perdeu com o tiro. Mascarado igual Birdman, igual o idoso que não conseguia ver sua amada, levanta da cama, tira a máscara e vai até a janela olhar o bando de pássaros ao longe, no céu. O que mostra que sua identidade-pássara não passou, abriu a janela e se juntou ao bando, passarinhando. E desapareceu.




sexta-feira, 6 de março de 2015

O Lírio Vermelho, de Anatole France

                                                                     

Antes de contar sobre o livro, uma história que explica como ele chegou a mim. Ano passado organizei três bazares de livros, muitos foram para levar e trocar seus livros, uma senhora bastante idosa veio até mim, estava com o porta-malas de seu carro lotado de livros. Muitos e muito antigos. Separei vários para ficar comigo. E os coloquei na pilha a serem lidos. Mês passado peguei esse romance de Anatole France, uma edição velhinha, de 1955, empoeirado, sujo, amassado, mas de capa dura e folhas grossas. Fui folhando e descobri dentro dele notas e mais notas de dinheiro. O dono do livro tinha o hábito de guardar dinheiro dentro de livros, imagino. Guardou e esqueceu 18 notas distribuídas entre as páginas do livro todo. Notas de cinco cruzeiros, que não valem mais nada, com a cara do Barão do Rio Branco e no verso um quadro retratando a conquista do Amazonas.  Esse “O Lírio Vermelho”, de Anatole France, começou para mim desse jeito.
É um grande livro de um escritor magistral. Já tinha lido dele “As sete mulheres do Barba Azul” mas este é melhor. Prêmio Nobel da Literatura de 1921, Anatole France escreveu esse romance em 1894. Consegue defender muitas ideias sobre a política, Napoleão, a Revolução Francesa e sobre a Europa e ainda contar uma história de amor em um livro com umas duzentas páginas. É por isso que não gosto mais de ler romances com 600 páginas. Conseguir dizer muito com certa redução só um escritor formidável como esse, um dos últimos clássicos, que influenciou, posteriormente, Marcel Proust, consegue.
Cito aqui dois trechos: “Toda ideia falsa é perigosa. Quem pensa que os utópicos não são prejudiciais, engana-se, pois fazem-no e muito. As utopias mais inofensivas na aparência, exercem uma realidade, uma influência prejudicial! Tendem a inspirar o desprezo da realidade”. E o seguinte serve bem para relativizarmos com esse momento de recrudecimento de fanatismos: “Sem os árabes e judeus, a Europa estaria ainda mais mergulhada na barbárie, no tempo das cruzadas, na ignorância, na miséria e na crueldade”.
O lírio que dá nome ao livro é a flor típica da Toscana, onde se passa uma parte da estória. A outra parte se passa nos salões de festa de Paris, onde a jovem, bela e entediada Teresa vive sua vida entre um marido nobre e um amante jovem a quem ama.  Para a sociedade do século XVIII e XIX era uma coisa normal. Teresa é casada com um homem mais velho e de família tradicional, pois seu pai é um nouveau riche sem entrada nos círculos aristocráticos da cidade. Um integrante desse acordo entra com a nobreza e Teresa com o dinheiro paterno. E marido, amante, amigos, todos ceiam juntos, debatem sobre a personalidade de Napoleão, escutam música e vivem sua vida em que nada precisa mudar. Ela não tinha arranjado amante nenhum até tempos atrás, pois não queria entrar nessa frivolidade, somente se entrega a esse primeiro amante ao perceber que ele a ama, fica nervoso quando ela está por perto. Mas um dia, ele que era tão dedicado a ela, tudo conversava e decidia com ela, resolve uma viagem e ela só fica sabendo de sua decisão por terceiros. É por isso que termina o romance, sem ao menos dizer adeus. Sai do apartamento onde se encontravam e sabe que foi a última vez que esteve lá. Um homem marca de ir à caça e tudo já terminou. Parece banal, só um ato, mas para ela é só um sinal de que nada é mais o mesmo.
Sai de Paris, vai passar os meses do verão em Fiesole, cidadezinha nos arredores de Florença, e lá se apaixona novamente por um jovem que também se apaixonou por ela. É ele o utópico, sonhador, que motiva a frase que escrevi acima. Um ciumento possessivo que não aceita seu passado com o outro amante. Quanto ao marido, esse não conta nada, tudo pode continuar como esta. O livro começa com ela deixando o primeiro amante e termina quando deixa o segundo. O romance é a história desse segundo amor que se passa na Toscana. É ele, o jovem sonhador, que lhe dá o lírio que ferirá seu coração.

Assim, já conto o final: todas as histórias de amor terminam não dando certo e é ela que vai embora com uma determinação não muito comum nas mulheres. Anatole France criou uma personagem feminina que não tenta até o fim fazer o amor dar certo, que sabe muito bem o momento de parar. E sem se afundar na dor. Gostei, embora seja um ideal não muito fácil de manter.