domingo, 13 de setembro de 2015

Tchekhov em Sacalina


Aos trinta anos, médico e já escritor conhecido, Tchekhov vai até a Ilha de Sacalina, onde estava instalado o temível presídio czarista.
Desaconselhado por todos, que achavam uma loucura, ele foi. 
Em 1890 parte para Sacalina, atravessa a Rússia toda, antes de haver a Transiberiana, parte em abril e só chega em julho a esse ponto extremo da Rússia, já no Oceano Pacífico, quase Japão. 
Sua descrição da vida dos presos, e da família dos mesmos que vivem nessa ilha e em outras ao redor, é já uma amostra do escritor genial.
A descrição da miséria humana em um lugar da terra em que o frio torna quase impossível viver é impressionante. 
Tem frases como essa: "aqui, de qualquer forma, o clima é mais ameno, os matizes da natureza são mais suaves e um homem esfomeado e transido de frio encontra condições naturais menos adversas do que no curso médio ou inferior do rio."
Encontrar essa obra de Tchekhov foi um presente.



sexta-feira, 11 de setembro de 2015

Josefina é que era mulher de verdade

A doutora em filosofia por Oxford, Kate Williams, escreveu um livro excelente. JOSEFINA, lançado no Brasil ano passado, pela Editora LeYa, é um retrato do Século XVII na Europa, da Era Napoleônica, contado a partir de uma personagem principal, a imperatriz da França, Josefina, coroada pelo próprio Napoleão, depois de colocar a coroa em si próprio.
Há dois anos li parte da obra de René de Chateaubriand, literato e embaixador francês durante o império napoleônico, e os desvarios de Napoleão estão retratados ali. Mas Napoleão só veio a me interessar mesmo depois de julho, quando estive na Córsega, sua terra; estive na cidade onde nasceu, Ajaccio. Visitei a casa de sua família, onde viveu toda sua infância e parte da juventude, até se alistar no exército e deixar a ilha. Veio de uma família de comerciantes, gente simples, casa relativamente simples.  O que mais me impressionou na sua casa-museu foi um detalhe que pode ter passado em branco para tantos, mas não para uma psicanalista: aos nove anos, quando ganhou um cachorro, colocou o nome dele de Nero. E quando começou sua ascensão em Paris, depois de adquirir fama na guerra, massacrando austríacos, italianos, alemães, dizia aos quatro ventos que queria ser para os franceses o que Cézar tinha sido para o Império Romano. Arrisco a dizer que desde os nove anos a ambição dele já estava lá, de ser um imperador.
Só nisso ele tem em comum com Freud. Perdoem-me por comparar Freud com esse sanguinário e cruel homem. Também Freud veio de uma família de comerciantes, queria deixar seu nome na história e sonhava com a Itália. Mas Freud não se identificava com Nero e sim com Aníbal, que conquistava Roma e subjugava os romanos. Quase. Mas há uma diferença fundamental: Freud o fez com as palavras, com a escrita, com uma nova concepção sobre o sujeito. Ele, com seus estudos sobre a histeria, criou a psicanálise e mostrou ao mundo quem é o homem: senhor de nada, nem de sua mente, nem de suas emoções, nem de sua infância. O homem, um reizinho destronado. Napoleão, ao contrário, acreditava em seu poder de vida e morte sobre quase todos. Só não sobre Josefina.
Josefina nasceu na Martinica, uma crioula, como todos faziam questão de marcar. Chega a Paris com um casamento arranjado, tem com esse homem dois filhos. Come o pão que o diabo amassou: seu marido a desprezava, a achava uma cafona estrangeira, uma crioula da colônia. Sem beleza. O marido morre, ela fica pobre, sem condições de sustentar os filhos. Mas é jovem, bem arrumada, já se refinou um pouco e vira uma cocote. Vamos dizer assim, ela tinha uns amantes ricos que a sustentavam. Isso tem outro nome, mas o livro não o coloca em nenhum momento e nem eu vou dizer aqui.
Ela tem amigos na revolução - Luis XVI e Maria Antonieta tinham sido degolados há alguns anos. Ela é presa e sai da cadeia como uma revolucionária, com a moral em alta. Napoleão não tinha ainda trinta anos – ela era três ou quatro anos mais velha que ele – volta da guerra famoso. Não tinha tido ainda um relacionamento significativo.  Feio, baixinho, com sentimento de inferioridade, era tímido com as mulheres na mesma proporção em que era cruel nos campos de batalha. E essa mulher famosa, fina, que se tornou Josefina, deu atenção para ele, conversou com ele em uma festa, não o tratou como um corso caipira. Isso os dois tinham em comum: os caipiras, os rústicos das colônias, buscando aceitação na corte.
O livro de Kate Williams copia trecho de várias cartas que Napoleão escreve para ela. Ele foi louco de paixão por essa mulher. E só a largou porque ela não conseguiu lhe dar um filho. Ele teve um filho com uma amante, que não reconheceu, e depois que se divorciou de Josefina para casar com uma princesa, teve seu filho de sangue real. Mas seus súditos se viraram contra ele quando o sonho dourado da França começou a ruir. Foi preso e exilado. Nesse momento em que o império napoleônico vira bolha de sabão, Josefina sai de cena, morrendo aos 51 anos, deprimida e chorando todo dia por ter sido abandonada por Napoleão.
 Napoleão escreve a esse filho que teve com a princesa da Áustria, Maria Luisa, desejando a ele um futuro de glória, que representasse seu nome, Napoleão. O jovem, que ainda em vida Napoleão Bonaparte deu o título de ‘O Rei de Roma’, vive em Viena, com a família da mãe e morre aos 21 anos, de tuberculose.
De tudo o que mais me impressionou foi a história de Josefina. Era uma crioula da Martinica, uma mulher sem cultura (detestava estudar, ler), sem beleza, com os dentes estragados pelo excesso de açúcar nos seus tempos de infância na fazenda (não mostrava os dentes em público, pois eram pretos) e se tornou a mulher mais cobiçada, invejada, copiada, da Europa. Inclusive pela paixão louca que Napoleão lhe devotava.
Era uma perdulária, vivia endividada, por mais dinheiro que tivesse, sempre gastava mais. Comprava 900 vestidos por ano, 50 pares de luvas em um mês. Tinha três vezes mais joias que Maria Antonieta teve. E depois que virou divorciada passou a se interessar por arte e paisagismo. Encomendou ao escultor Canova a escultura das Três Graças. Essa obra, que ficou tão famosa, foi muito cobiçada logo após sua morte e, comprada pelo Czar da Rússia, hoje está no Hermitage. Tive oportunidade de ver a obra em 2013, quando estive em S. Petersburgo.
Eu queria saber por que os tiranos, quando saqueiam cidades, uma das primeiras coisas que querem fazer é confiscar as obras de arte. Só pelo símbolo de poder mesmo, porque Napoleão era um grosseirão e não estava nem aí para arte. Dava tudo de presente para Josefina, que soube guardar e cuidar dos quadros caros em sua casa de Malmaison. Depois do divórcio, uma parte desses quadros ela doou a um museu de Paris e a outra parte manteve consigo mesma.
Para mim ficou como um exemplo: uma mulher que superou sua própria história, fez-se de chique sem o ser, de bonita sem o ser, de culta sem o ser. Um engodo? Uma farsante? De forma nenhuma. Do nada, de tudo o que lhe faltava, construiu seu nome. É a história de toda mulher.