sexta-feira, 20 de julho de 2012

A Lebre da Patagônia

A Lebre da Patagônia é um livro imprescindível para se compreender o que foi o século XX. Escrito pelo jornalista francês Claude Lanzmann, da revista Les Temps Modernes, nascido em 1925 e vivo até hoje, ele traça um panorama da Segunda Guerra Mundial, do Holocausto, da revolução de 68. O autor visitou a China e a Coréia do Norte, para conhecer os regimes comunistas que se instalavam ali; militou a favor da liberação da Argélia pelo regime francês; relata as impressões que teve em diferentes momentos que visitou Israel.


Viveu durante sete anos com Simone de Beauvoir, em uma relação a três – eles dividiam um apartamento e Beauvoir continuava com Sartre, que morava em outro apartamento, nas arredondezas. Com Simone de Beauvoir, nesses anos que viveram juntos, correram o mundo, por seus vários continentes. Por vezes com Sartre, outras vezes só os dois. No começo do livro conta sobre sua judeidade, a condição de ser judeu nos colégios franceses, o antissemitismo nos anos antes da guerra, de como ele, o pai e os irmãos sobreviveram porque tinham passaportes falsos, com sobrenomes não-judeus. Enfim, reafirmo sua importância: é uma aula de história.

Para contar sobre o Holocausto dirigiu um filme sobre ele, intitulado em hebraico, Shoah, que demorou mais de 10 anos para finalizar e que tem quase oito horas de duração. Nos últimos capítulos do livro conta-nos detalhes sobre a produção do filme, sua obstinação em convencer alguns membros da SS a lhe dar testemunho sobre como operacionalizavam a Solução Final; as filmagens nos Campos de Extermínio da Polônia, o antissemitismo que ainda grassava por lá, entre os camponeses das cidades pequenas, nos arredores dos Campos; os problemas políticos que teve com o lançamento do filme. Em 1985 ele ficou pronto, quando ninguém mais acreditava que ele fosse finalizá-lo. Nessa questão judaica só há uma coisa que não gostei: quando ele chega ao nome de Ariel Sharon. Ele, um autor que é veemente em sua opinião e denúncia dos erros/crimes de todos, cita Sharon e nada. Nem uma palavra, nenhuma crítica. Nada. Nessa parte decepcionei-me com o autor.

Perguntei-me porque o livro assim se intitulava. Na epígrafe, o autor cita um trecho de um livro: A lebre dourada, de Silvina Ocampo e mesmo lendo essa epígrafe fica o enigma a ser solucionado, no final. Eis um resumo da epígrafe: em um campo, uma lebre corre, atenta a tudo, aos menores ruídos. Um dia, como outro qualquer, escuta muitos latidos. Começa a correr. Grita para os cachorros uma pergunta, “aonde vamos?”. E os cachorros respondem: “Até o fim de sua vida!”. E a lebre aparece novamente em uma cena que o autor não esquece e nos conta em dois momentos do livro: ele e Simone de Beauvoir, viajando à noite, pela Sérvia, dirigindo um carro velho, atropelam muitas lebres. Ficara muito angustiado, desviava o carro sempre que possível, queria salvá-las da morte. Quando visitou a Patagônia, algo parecido aconteceu: quase matou uma. Por estas situações podemos entender que as lebres são os seres para a morte. Em seu filme queria captar, a partir dos depoimentos, todos os detalhes de como foi o momento final dos milhões de judeus, enquanto marchavam para morrerem na câmara de gás (Não sei como ele escreveu em francês, mas em português isso foi traduzido simplesmente como “gazeados”. Achei horrível escrever ou traduzir assim: dizer gazeado retira o caráter de assassinato do ato). Ele queria captar algo ainda não dito que pudesse entender o momento final. Reprisa a pergunta: por que não fugiram? Por que não correram? Mas não colocada por ele, por outros historiadores. Não quer dizer que tenha validade para ele a pergunta, porém há uma relação entre correr e mesmo assim morrer, na lebre e não correr, não fugir e mesmo assim morrer, nos judeus. Posteriormente descobriu, durante as pesquisas para seu filme, relatos de que muitas lebres freqüentavam o Campo de Concentração de Birkenau, e contorciam-se entre as cercas e saíam do campo quando queriam. Assim, a lebre é, também, uma sobrevivente, a que escapa, faz um malabarismo, corre, foge e então, símbolo da vida.

Tem uma coisa que não gostei em tudo que ele relata, não tem relação com essa densa e importante história de vida e de forma alguma com sua visão sobre o Holocausto. Fiquei meio enojada de seu jeito de escolher as mulheres. Fiquei pensando uns dois dias nisso, fazendo a pergunta freudiana, ao inverso, o que quer o homem? É claro que só pode ser respondida na singularidade do caso a caso. Ele se orgulha de ter vivido com Simone de Beauvoir, depois se casou com uma atriz famosa de teatro, filha de industriais em que fica nos relatando o alpinismo nas montanhas chiques que fazia com o sogro. Depois nova esposa, uma escritora alemã, segundo ele a “mulher mais linda da Alemanha”. Fiquei curiosa e digitei no Google o nome dela. Nada de linda, mas para ele ficar com uma mulher tem que dizer que é muito linda, muito rica, muito conhecida, muito, muito, muito. Mas se apaixonou por uma mulher da Coréia do Norte, uma enfermeira que cuidou dele por alguns dias, uma mulher calada, da qual não entendia uma palavra da língua, que se comunicavam por desenhos, que mostrou a ele seu seio queimado por gás, com a qual só pôde ter um beijo, escondido em um canto do hospital. Quando ele retorna à Paris, ela manda uma carta para ele. Ele não responde, não faz nada. Volta cinqüenta anos depois à Coréia do Norte, com quase oitenta anos, atrás dela, fica andando a esmo pela cidade, não investiga nada, nem para saber se ela estaria viva ou morta, não pergunta sobre ela e volta para casa. Volta para suas mulheres, ricas, “lindas” e famosas.

Acho meio desprezível um homem que precisa se afirmar ficando com mulheres ricas, famosas, estilo celebridades. Isso é coisa de coluna social. Ele não precisava, com tudo que viveu, com tanto que escreveu, dirigiu, com seu papel de testemunha dos principais acontecimentos do mundo, com todas as viagens que fez por esse mundo enorme de meu Deus – eu gosto de gente que corre o mundo – não precisava disso. E além de tudo, na foto da capa do livro, tirado no Egito, com Beauvoir e Sartre, ele com cerca de uns 35 anos, era um homem bonitíssimo. Precisava disso? Precisava. Resta saber o por quê. Só ele pode respondê-lo.

O livro é ótimo, a história de vida e do século é ótima, só o homem é que é decepcionante. Mas leiam, vale a pena.

sexta-feira, 13 de julho de 2012

Abre-me e eu te devoro

A peça de Antonio Quinet, “Abrem-se os histéricos”, é um balé sincronizado de quatro histéricas mais uma, retratando os impasses de uma época que, de certa forma, ainda é hoje.

No final do Século XIX, Charcot encontrou na histeria uma doença verdadeira e não uma simulação ou degeneração. Uma doença encenada no corpo. E Charcot tornou-se à época, uma celebridade em Paris, um médico e mestre construindo um saber encenado no palco por suas pacientes histéricas. Era assistido por muitos, jovens cientistas como Babinski, que não acreditava na histeria – achava que as histéricas eram umas falsificadoras de sintomas, por isso propôs para a histeria um novo nome, pitiatismo, piti – e Freud, que apostava em outra cena como a causa da doença, uma outra cena, infantil e traumática, explicava esse teatro no corpo; bem como era assistido por literatos como Leon Daudet e Maupassant. Esse momento histórico é o eixo da peça do psicanalista e dramaturgo Antonio Quinet.

Em “Abrem-se os histéricos”, Babinski, Freud e mesmo Charcot são um tanto apagados, ficando em segundo plano. Não sei se foi intencional ou se os atores ainda estão meio deslocados diante do balé das histéricas – e como dançam bem! Não apenas Sarah Bernhardt, todas.

Quando as histéricas estão na primeira cena, os homens/doutores desaparecem e ficamos encantados com a dança/doença delas, com seu sofrimento, suas contrações, seus desmaios, suas contraturas. O que reina é o corpo, palco de uma verdade que denuncia uma mentira. Quinet contrapõe a histeria ao teatro, que encena uma mentira para dizer uma verdade.

E a histeria reinava na Salpetrière, no Século XIX, como reinará no século seguinte. Tanto que Freud a elegerá como a neurose de base, sendo a outra apenas seu dialeto. E Lacan a elevará a categoria de um discurso. Hoje os sintomas podem estar um pouco diferentes – embora ainda encontremos na clínica alguns casos como as pacientes de Charcot – porém o sofrimento no corpo continua o mesmo, com as fibromialgias, anorexias, LER e outros tantos que evidenciam que as mulheres – não somente elas, mas sobretudo elas – continuam sofrendo com seus corpos.

Os homens da ciência de hoje, como os da época de Charcot, continuam querendo abrir o cérebro e o corpo das histéricas, para decifrá-las, inventando remédios e terapêuticas e se irritando porque essas histéricas, ah, elas insistem. E continuam fechadas, enigmáticas, não querendo seu ser reduzido a uma compreensão débil.

A peça de Quinet mostra que a histérica encena o desejo sempre um tanto inominável, apreendido por um desvio, inassimilável a não ser pela palavra. Mesmo Freud se enganou em vários de seus casos sobre o que queriam suas pacientes histéricas nesse caminho em que acreditava decifrá-las, até se perguntar “mas o que quer uma mulher?” Para ele também a histeria ficou sempre sendo uma esfinge, mesmo com toda sua descoberta do inconsciente e do desejo.

A iluminação, o figurino e a música da peça são um primor. E a disposição do palco, com duas cenas, em que podemos ver a outra cena, através do vidro, foi uma estratégia excelente do diretor.

O dramaturgo nos mostra que as histéricas se furtam à decifração, se furtam a se abrirem, escapam de serem devoradas, classificadas, compreendidas e continuam a encenar no palco de seu corpo a verdade do desejo. Seu e do Outro. As quatro assim o fazem e também Madame Charcot, presa ao desejo do marido, correndo de um canto ao outro, despenteada e desgrenhada, atrás das histéricas, as outras mulheres para quem seu marido só tinha olhos.

Ao sair da peça, pensei: “se demorasse mais cinco minutos, iria sair daqui com o braço torto”. O engraçado foi que duas amigas, uma logo na saída, e outra no dia seguinte, disseram-me quase o mesmo. A histeria é contagiosa e quer continuar fechada – a despeito que tantas histéricas queiram se analisar – tal como uma esfinge. Na peça, os devorados somos nós. E também os atores masculinos, um pouco. Somos nós os devorados que saímos quase meio tortos.

Aliás, conclamo vocês a assistirem a peça e saírem dela sem entortar nem um dedinho sequer.