sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

O mestre e a Margarida


         



      O diabo chega a Moscou comunista de 1930 e começa seus intentos – que ninguém sabe bem qual é - destruindo primeiramente os escritores. Os dois primeiros comunistas poetas que descobrem que o estrangeiro Woland é o capeta perdem a cabeça, um literalmente, decepada por um bonde, e o outro, enlouquecendo. Ninguém acredita quando o poeta diz que conversou com o capeta e ele esteve presente quando Pôncio Pilatos deu sua sentença. O poeta fica confinado no manicômio e uma das coisas que descobre lá é que era mau poeta e deve parar de escrever.    
          E o diabo, que chama-se Woland, é um estrangeiro e não russo, chega a Moscou acompanhado de seus anjos decaídos e outras criaturas demoníacas: Behemot, Abaddon, Azazel, uma feiticeira ruiva, que sempre andava nua, de beleza perfeita se não fosse por uma cicatriz horrenda no pescoço, e outra figura patética, Korôviev, um baixinho, de óculos e terno xadrez, todo meticuloso. É a descrição perfeita de um burocrata. Este é o séquito infernal que bagunçará os alicerces de Moscou. Behemot é descrito no Livro de Jó como um monstro gigante ou como um leão monstruoso ou um grande touro. Segundo a tradição judaica, esse “animal” é o monstro da terra, em oposição a Leviatã, do mar. Pelo que eu pesquisei, não é um servo do diabo, mas no romance de Mikhail Bulgákhov assim o é, e mostra-se como um enorme gato. O enorme gato Behemot é um dos servos do satanás.
     Em “O mestre e a margarida”, Mikhail Bulgákov faz uma sátira do regime comunista, uma ferrenha crítica disfarçada, mas tão disfarçada, que o que ele denuncia está às claras: no seu show no teatro da cidade, Woland deu dinheiro estrangeiro para os “pobres” moscovitas, ofereceu novos vestidos e perfumes estrangeiros para as mulheres, que aceitaram imediatamente. Quando saem do espetáculo, na rua perto do teatro, os vestidos desaparecem e estão nuas – versão que Bulgákov dá para A nova roupa do rei – e o dinheiro era dinheiro de tolos, pois vira papel. E um dos ajudantes do diabo sai com essa pérola: os moscovitas continuam os mesmos. Forma que o autor usa para mostrar a hipocrisia: apoiam publicamente o comunismo com seu desprezo pelo dinheiro e consumismo dos “inimigos”, mas é disso que gostam. E nesse show todas as hipocrisias são reveladas, os corruptos, os que têm amantes, os que roubam o partido.  Depois, a investigação concluirá que foi uma hipnose de todos que estavam no teatro, mesmo quando tantos funcionários do teatro dizem que é coisa sobrenatural, do mal, não podem acreditar: não acreditam em Deus e nem em Diabo.
            Enfim, o diabo serve para mostrar as incongruências dos moscovitas, do comunismo, de Stalin. Fiquei pensando quem seria o diabo: o diabo é Stalin? O diabo foi o comunismo? É o ser humano com suas hipocrisias e falsidades? E gana de poder?
            Só quem não se corrompe pelos oferecimentos do diabo é Margarida, que sofre porque é casada com um homem a quem não ama, que lhe dá todos os bens materiais que ela precisa, perfumes e roupas, pois é um homem importante na hierarquia – mais uma vez Bulgákov mostra a hipocrisia do partido – e ama um escritor a quem não pode ter, pois está desaparecido. Ela vive um inferno, pois não esquece o Mestre um minuto. O escritor amado por Margarida é assim designado por ela. No romance, então, o mestre não é o diabo. Parece-me até mesmo, na segunda parte do livro, que o mestre é o amor. Margarida quer esquecer esse amor, se não pode reencontrar o Mestre, que o esqueça, que volte a pensar em outras coisas, a encontrar alegrias em outras coisas na vida. Margarida queria o dom do esquecimento da dor de um amor. O diabo envia Azazel para lhe oferecer um pacto. Ela aceita, mas ao invés de esquecer o Mestre, o diabo lhe oferece uma nova tentativa de fazer dar certo o amor, com a condição de que ela ocupe por uma noite o lugar de acompanhante dele no baile anual do Inferno. Essa parte é hilária. Margarida vira Rainha Margot, a recepcionar todos os moradores do Inferno.
E depois Margarida e o Mestre se reencontram e podem ser felizes juntos. Mas nem assim eles conseguem o céu. A partir daqui não conto mais. Para não tirar a graça de vocês lerem a parte final, não conto mais nada.Sim, porque vocês têm de ler esse livro. Ele tem quase um século que foi escrito, mas não perdeu o humor. Eu ficava rindo sozinha em minha sacada no final de semana passado enquanto o lia. Recomendo muito a leitura.




Lacan debatendo com as damas inglesas: da contratransferência ao pior

XVII ENCONTRO NACIONAL DA EPFCL-BRASIL
12 A 14 DE NOVEMBRO DE 2016
 SÃO PAULO\SP



No Seminário X, dando aula sobre a angústia e o objeto a, Lacan apresenta três artigos de autoras de língua inglesa: de Margareth Litlle, de Bárbara Low e de Lucy Tower. Nos três teoriza-se sobre a contratransferência como um manejo importante para a condução das análises. Nos capítulos 11 e 12 desse seminário sobre a angústia, o viés do comentário de Lacan é de que essa teoria coloca obstáculo ao desejo do analista. Mas adiante nesse mesmo seminário, quase nos capítulos finais, retoma o artigo de Lucy Tower, mais precisamente um de seus casos clínicos para diferenciar o homem e a mulher diante do desejo do Outro. Mas há um ponto que Lacan já tinha debatido no capítulo nove: o acting-out e a passagem ao ato. O artigo de Bárbara Low não nos mostra a clínica, mas das outras duas autoras sim. E temos também o livro de Litlle sobre sua análise com Winnicott. E em todos esses casos clínicos, abundam acting-outs. De um lado a saída de cena (passagem ao ato), do outro a mostração de que o analista passou ao largo.
Acreditamos que esse estudo traz questões cruciais à psicanálise: o manejo da transferência, a análise do analista e a interpretação. Lacan mostra, com os artigos dessas três autoras, como a teorização da contratransferência leva ao acting-out. Esse é o primeiro objetivo desse trabalho. O segundo é mostrar como faz falta a essas autoras uma teoria sobre a fantasia e o objeto a. E o terceiro é mostrar como Lacan traz esse tema no Seminário 10 e une sua construção do objeto a e da causa do desejo com o desejo do analista.

1.       As damas da contratransferência
O artigo de Margareth Litlle “A resposta total do analista às necessidades do seu paciente” foi apresentado na Sociedade Britânica de Psicanálise, em janeiro de 1956.1 Começa definindo o símbolo R: atitude inconsciente do analista em relação a seu paciente; elementos recalcados e ainda não analisados do próprio analista; algumas atitudes e mecanismo específicos com os quais o analista vai ao encontro da transferência do paciente; totalidade das atitudes e do comportamento do analista em relação ao seu paciente. E cita Humpty-Dumpty: “Quando eu uso uma palavra, ela significa apenas o que eu escolhi que ela significasse – nem mais nem menos do que isso. Quando Alice questionou se seria possível fazer com que as palavras significassem muitas coisas diferentes, ele respondeu: “A questão é, o que é ser um Mestre, isso é tudo.” Essa referência a Alice no país das maravilhas, faz-me pensar que a personagem Alice é um tanto lacaniana. Lacan também aelga em A Terceira que um significante pode estar aberto a todos os sentidos. 
Afirma Litlle: “Nossa dificuldade aqui é conseguir que uma palavra não signifique uma coisa diferente para cada pessoa que usa essa palavra”. Essa uniformização que ela quer é a respeito da contratransferência e assim chega a uma letra para conseguir essa  palavra que não resvale para a equivocação: o Símbolo R. “É a resposta total do analista às necessidades de seu paciente, qualquer que sejam as necessidades e qualquer que seja a resposta.”2 Nele está incluída a escuta, o silêncio do analista, sua forma de reagir ou não reagir. A contratransferência é apenas uma parte do que está incluído no Símbolo R.. Lacan faz uma troça: “não sou só eu que uso uma letra como símbolo”.
Fala de um paciente que ela teve de comparecer em uma audiência, e sob juramento, dar avaliação desse conflito com o mundo exterior que o paciente tinha, e que ocasionou seu acting-out. Ela crê que o analista é responsável por tudo, que é muito mais poderoso do que é. É claro que um analista deve conduzir o tratamento, mas não o paciente. Pelo que ela descreve, parece que o analista conduz o paciente. Escreve coisas como “ele [o analista] tem que ser capaz de fazer todo tipo de identificações com o seu paciente, aceitando a fusão com ele, o que com frequência implica envolver-se ele mesmo em algo realmente maluco, e, ao mesmo tempo, tem que ser capaz de permanecer inteiro e separado”. E essa teoria de fusão, eu, não-eu, seria a Influência de sua análise com Donald Winnicott?
Refere-se ao acting-out como um limite atingido e o paciente não pode tolerar a separação, quando a exigência ao ego for grande demais pode surgir um acting-out violento. Em nenhum momento relaciona os acting-out de sua paciente Frieda, relato clínico desse artigo, como um erro no seu manejo da transferência ou da interpretação. Ela escreve:  “Em todo caso, quando uma análise está andando velozmente e as ideias seguem umas as outras em rápida sucessão, ou os mecanismos estão mudando, é impossível estar sempre um passo a frente do paciente, ou pensar sempre antes de falar ou agir. A gente só percebe que falou alguma coisa depois que falou. Se o contato inconsciente com o paciente é bom, o que é dito no impulso usualmente acaba resultando correto.”3
Quanto fala da técnica, Litlle relata que, com frequência o surgimento de acting-out tem sido normalmente atribuído a insuficiências no analista, insuficiência na análise. Em seguida, ela diz: “Quando consideramos pacientes como essa que citei, vemos que os pacientes cujo sentido da realidade foi seriamente prejudicado, e que não podem distinguir o delírio ou a alucinação da realidade, não podem usar interpretações transferenciais, porque a transferência em si mesma é de natureza delirante. As interpretações transferenciais exigem o uso do pensamento dedutivo, da simbolização, e da aceitação de substitutos. Não é possível transferir o que não está aí para ser transferido, e nesses pacientes as experiências primordiais não lhes permitiram construir o que é preciso para ser transferido, nem a figura de uma pessoa sobre a qual a transferência seja possível. Eles ainda vivem no mundo primitivo da sua primeira infância – a posição do fantasma isso, para todos – e suas necessidades têm que ser consideradas nesse nível, no nível do narcisismo primário e do delírio.”4 Ou seja, tudo é “culpa” do paciente se ele não entender as interpretações. Falta a Litlle saber que lugar ocupa na transferência, construir o caso clínico, ter uma teoria sobre a fantasia e o objeto a.
Agora vamos a outra das autoras inglesas da contratransferência. O artigo “Contratransferência”, de Lucy Tower, também foi escrito em 1956 e foi o único artigo escrito por ela em toda sua prática como psicanalista.5 Começa alegando que “Não se supõe existirem analistas tão perfeitamente analisados a ponto de não terem mais um inconsciente, ou serem imunes ao revés de impulsos instintivos e de defesas contra esses impulsos. O próprio linguajar de nossas práticas no treinamento, desmentem essa máscara de analista perfeito.”6
A autora relaciona a contratransferência com o acting-out. “Episódios de acting-out contratransferenciais, por exemplo, confrontam o analista com uma situação surpreendente, que exige rápida ação e bom senso. Ele deve se concentrar em manter a situação analítica sob controle e frequentemente a surpresa e o choque apagam da memória os processos que conduzem até o incidente, provavelmente devido à repressão do desconforto então experimentado”. (p. 132) Dá um exemplo de um candidato a analista que conduzia um caso que caminhava para um final próspero. Ele sentia por sua paciente muito atraente uma forte contratransferência sexual. Contou ao Dr X (o analista prévio, no contexto da formação. Não sei o que é) e ele perguntou: como você pode ser isso por uma paciente? A partir disso ela relata que uma vez sentiu atração por um paciente. Continuando no relato desse “excelente terapeuta, sustenta que ele não era propenso ao acting-out. Com isso ela institui o acting-out do analista. O que seria isso? Um analista que saiu do lugar de objeto a e de causa de desejo para assumir-se desejante? Dá um exemplo dela também. Esquece o horário de uma paciente. Era uma paciente com reação próxima da psicose (sabe-se lá o que isso quer dizer), suportava as crises de ira da paciente, semana após semana, até quando esquece seu horário de sessão. Quando chega no consultório fica sabendo que ela já se fora, extremamente brava. A partir disso pode perceber o ódio que estava sentindo da paciente. Ela chegou na sessão seguinte já perguntando “onde você estava ontem?” Tower apenas responde “desculpe-me, me esqueci”. A paciente responde “não a culpo”. E abriu a guarda em sua “resistência obstinada”.
Ela dá dois exemplos de pacientes homens que ela está conduzindo. Lacan comenta um dos casos, o mais difícil, com “muitos sentimentos sádicos e agressivos”.  Atormentada com esse caso, com o ódio desse paciente com relação a ela, com receio de atendê-lo mais, tarde, quando o consultório estava mais vazio. Mas daí sai de férias e em algumas horas esquece completamente do caso. Sua explicação é que seu inconsciente se sintonizou com o dele, mas depois se desligou.
Esse paciente descarregou seu sadismo nela, voltou a situação edípica na transferência, rivalizando com os homens da vida da analista. “Curiosamente, foi só com o surgimento e a solução da minha resposta contratransferencial à situação matrimonial, e a superação da resistência do paciente contra a comunicação, com o extravasamento de um grande peso afetivo, que comecei a ter sentimentos de admiração por esse homem como pessoa.”7 Ela entende que só depois o inconsciente de seu paciente perceber que a havia forçado a se dobrar, a ser dominada por ele, que ele reexperimentou a situação edipiana. Ele a dobrou. E decorrente disso, experimentou uma confiança interna, superando seu sadismo.
Como Lacan chega a Lucy Tower nesse seminário em que está falando sobre a angústia? A partir de sua paciente telecomandada8, que pode abdicar de seu próprio olhar para que Lacan olhe por ela, que contou a Lacan uma história romanesca em que foi para um homem o que ele desejava. Lacan tinha dado o exemplo do homem com seu mito de que faz a mulher a partir de uma de suas costelas. O homem faz seu objeto de desejo a partir do objeto perdido, “a mulher, para o homem é um objeto feito disso”.9 E continua, sustentando que o que importa é apreender a ligação da mulher “com as possibilidades infinitas, ou melhor, indeterminadas do desejo, no campo que se estende ao redor dela”.10 Assim, maçã é para fisgar o desejo do Outro. “É o desejo do Outro que lhe interessa”. É nesse sentido que Lacan diz, em seguida, que Don Juan é o sonho feminino: é um desejo volátil, Don Juan se prestou a ser o objeto de desejo do outro e depois caiu fora.
E daí entra na discussão dos casos clínicos de Tower: ela atrai para si uma tempestade. Ela suporta as consequências desse desejo. O desejo dela foi implicado.11 O paciente queria dobrá-la ao seu desejo, que essa mulher que era sua analista se curvasse: to stoops, “She stoops to conquer é uma comédia de Sheridan. Pelo menos é isso o que nos relata Lucy Tower em seus próprios termos, e só podemos ficar-nos nela.” Havendo procurado o desejo do homem, encontrou o objeto verdadeiro, a; “aquilo que se trata no desejo, que não é o Outro, mas esse resto, a”. Foi o que ela mesma chamou de “ter mais masoquismo do que eu supunha”.12
2.       Acting-out: quando o analista erra o alvo
No caso Clínico de Margareth Litlle, os acting-out de sua paciente era jogar-se à frente dos carros, realizar o a que ela é. Um dia foi atropelada seriamente, por um carro, ao sair da sessão, em frente de seu consultório. Como Litlle não pensou que esse acting-out poderia significar que foi um erro de interpretação dela? Outra vez foi atropelada perto da casa de Litlle, e na frente dela, a analista. Ela se colocou em perigo, “pulando de forma maluca entre os carros, em uma avenida movimentada.”13 Novamente estava mostrando que a analista passou ao largo.
Lucy Tower enxerga um pouco mais do que Litlle, relaciona a contratransferência com o acting-out. Mostra os acting-out dela, como no caso do esquecimento da sessão de uma paciente complicada, agressiva. Fala, inclusive, do acting-out do analista. E também alega que o paciente violento, sádico cometeu acting-outs. Mas não nos disse quais eram. E temos outros dois casos clínicos clássicos em que Lacan mostra o acting-out. No seminário três nos apresenta o Homem dos Miolos Frescos, de Ernet Kris, e no Seminário cinco, o Caso da perversão transitória, de Ruth Lebovici.
No Seminário X, Lacan está trabalhando com as categorias de Inibição, Sintoma e Angústia, de Freud, e coloca o impedimento e o acting-out na coluna do sintoma, e o embaraço e a passagem ao ato do lado da angústia. (89) Ele explica no capítulo  que é “a partir do Outro que o a assume seu isolamento, e é na relação do sujeito com o Outro que ele se constitui como resto”.13 O objeto a está ligado à função de resto, largar de mão, deixar cair (laisser tomber) é o niderkommen lassen, da jovem homossexual. Esse largar de mão é o correlato essencial da passagem ao ato, é o momento de embaraço maior do sujeito, com o acréscimo comportamental da emoção como distúrbio do movimento. “É então que, do lugar em que se encontra – ou seja, do lugar da cena em que, como sujeito fundamentalmente historizado, só ele pode manter-se em seu status de sujeito – ele se precipita e despenca fora da cena”. Na jovem homossexual, a função de a foi tão prevalente, afirma Lacan, que a análise com Freud também termina assim: ele a deixa cair. Estar nesse lugar é a função de resto, de ser deixado cair, de largar de mão.
Essa saída de cena, Lacan chama de “partida errante para o mundo puro”. É a passagem da cena para o mundo. E Lacan relembra que aquilo que Electra não perdoa em sua mãe Clitemnestra é “que um dia ela a deixou escorregar de seus braços”.14 (p. 137).
A tentativa de suicídio da Jovem homossexual foi uma passagem ao ato, afirma Lacan, mas toda sua aventura com a dama de reputação duvidosa foi acting-out. Se a bofetada de Dora foi uma passagem ao ato, todo seu comportamento paradoxal na casa dos K. foi um acting-out. O acting-out é orientado para o Outro. Lacan o comparar com a libra de carne que, no balanço de contas, é o pagamento do empréstimo para tapar os furos do desejo.
Nos casos de Ernest Kris e de Rute Lebovici, e sobretudo nos de Litlle e Lucy Tower, que estamos tratando aqui, os acting-outs foram as libras de carne que os pacientes pagaram para mostrar a seus analistas qual era o objeto causa do desejo. “Com os miolos frescos, o paciente simplesmente faz um sinal para Ernest Kris: tudo o que o senhor diz é verdade, mas simplesmente não toda a questão; restam os miolos frescos.”15 Em todos eles trata-se de erros do manejo da transferência e da interpretação do analista.
Diferente do sintoma, ele é a transferência selvagem – ou transferência atuada, ele pede a interpretação.16 Ele é como o elefante selvagem, como fazê-lo entrar no cercado? Como por o cavalo na roda para fazê-lo girar no carrossel? Todos eles são para se oferecer à interpretação do analista. São essas as metáforas que Lacan usa para mostrar que esses analistas não colocaram o objeto a para circular no tratamento.
Lacan marca que no que diz respeito à contratransferência, as mulheres pareciam deslocar-se nela com mais facilidade. “Se as mulheres se movem com mais facilidade nela, em seus escritos teóricos, é porque, presumo eu, também não se movem nada mal na prática mesmo que não vejam seu móbil – ou melhor, não o articulem, pois por que não lhes dar crédito por um tantinho de restrição mental? – de maneira perfeitamente clara.”17
Lucy Tower mostra o desejo do analista, com um tanto de restrição mental, pois não se dá conta. Mas se presta a ser esse objeto. Talvez a diferença dos outros analistas, inclusive de Freud com a Jovem Homosexual, é que ela faz semblante de a para seu paciente sádico, se “abaixa” condescendente para ser o a na encenação dessa “peça” fantasmática.
E depois Lacan vai dizer que o a se intromete em cena, seja na tragédia ou na comédia (melhor na comédia, já dizia isso no Seminário V). E da história de Ajax desonrado, chega à pata do bode, começo da verdadeira história do desejo. É uma referência a Pã, ou se preferirem, em grego Dioniso. O bode, o sátiro, sobe ao palco. “O bode que salta no palco é o acting-out.” E continua: “O acting-out de que falo é o movimento daquele a que aspira o teatro moderno, ou seja, que os atores desçam até a plateia e os expectadores subam ao palco e digam o que têm a dizer.”18
E com isso, a seguir, Lacan começa a construir o que é o objeto a. Uma boca, um olho, os seios de Ágatha na bandeja, as línguas dardejantes que aparecem em “A Naúsea”, os miolos frescos, a pata de bode; enfim esses objetos que caem e que são negativizados, então, pela presença do significante. Fica stolen glances - o resto do olhar que fez sintoma no caso da paciente Frieda, de Margareth Litlle - por exemplo, e com isso se faz a ligação entre o significante e a, ou dizendo de outra forma, a cooptação entre o desejo e o fantasma. Enfim, a partir desse Seminário X, um desejo não se concebe sem a relação com o real.


3.       Concluindo
No Discurso à EFP (dezembro de 1967), quatro anos depois desse seminário sobre a angústia, Lacan escreveu que o desejo do analista é de obter a diferença absoluta, no qual o desejo do analista é o ponto absoluto.19
No artigo de Luis Izcovich “o desejo do analista e a diferença absoluta”20, o autor mostra muito bem que o desejo do analista é o desejo de que o sujeito alcance sua diferença absoluta. E que uma análise deve propiciar que ele saiba o que ele é. Podemos chamar sua identidade de gozo, o objeto a. O desejo do analista é fazer semblante de a para que o paciente possa encenar, não no palco, mas abaixo dele, na plateia sua cena. Dizendo de outra forma, savoir y faire com seu sinthoma.
Todas essas questões cruciais para a clínica, Lacan as construiu a partir de seu seminário sobre a angústia. A psicanálise é uma aposta ética de que os sujeitos possam ir até esse ponto. Mas não irão sem o desejo do analista, não irão com teorias sobre contratransferência, não irão com encurtamento de tratamentos para se adequar ao discurso capitalista, não irão com casamento da psicanálise com a medicalização. O desejo do analista é sua oferta, o palco está aí. O analista faz semblante de objeto para o sujeito do inconsciente, não para o mercado, não para a psiquiatria. Não fazendo a psicanálise perderá pacientes? Fracassará? Talvez, mas será esse o seu êxito.[1]

Referências bibliográficas
ALLOUCH, Jean. Psychanalyse et écriture: Lucia Tower. Conférence du salon Oedipe. Livrarie Le divan. Paris, 7 de outubro de 2001.
LACAN, Jacques. O Seminário, livro 10, angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004.
Lacan, Jacques. Discurso na Escola Freudiana de Paris. Outros Escritos, 2003.
LITLLE, Margareth. A resposta total do analista às necessidades do seu paciente. Revista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre. Porto Alegre, n. 32, páginas 82-112, janeiro\junho 2007.
TOWER, Lucy. Contratransferência. Revista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre. Porto Alegre, n. 33, páginas 127-152, julho\dezembro 2007.
LOW, Barbara. As compensações psicológicas do analista. Revista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre. Porto Alegre, n. 34, páginas 166-174, janeiro\julho 2008.





1 LITLLE, Margareth. A resposta total do analista às necessidades do seu paciente. Revista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre. Porto Alegre, n. 32, páginas 82-112, janeiro\junho 2007.
2 Ibid, p. 85.
3 Ibid.
4 Ibid, p. 108.
5 Segundo Jean Allouch.
6  TOWER, Lucy. Contratransferência. Revista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre. Porto Alegre, n. 33, p. 129.
7 Ibid, p. 147.
8 LACAN, Jaques. O Seminário, livro 10, angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, p. 209.
9 Ibid., p. 209.
10 Ibidem, ibid.
11 Ibid., p. 215-16.
12 Ibid., p. 219.
13 LITLLE, Margareth. A resposta total do analista às necessidades do seu paciente. Revista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre. Porto Alegre.
13 Lacan, p.128.
14 Lacan, p.137.
15 Ibid., p. 139.
16 Ibid., p. 140.
17 Ibid., p. 127.
18 Ibid., p. 155.
19 Lacan, Jacques. Discurso na Escola Freudiana de Paris. Outros Escritos, 2003.
20 Heteridade 11.
[1] A terceira.

As Máscaras do Amor

XV ENCONTRO NACIONAL DA ESCOLA DE PSICANÁLISE DOS FÓRUNS DO CAMPO LACANIANO NO BRASIL
AMOR E SEXOS
Campo Grande, 13 a 16 de novembro de 2014

Há tantas máscaras quantas insatisfações, afirma Lacan em sua aula de 16 de abril de 1958. Essa aula do Seminário V, As formações do Inconsciente, em que Lacan falará sobre as máscaras do sintoma e ainda um episódio da epopeia romântica Jerusalém Libertada, de Torquato Tasso, deram-me a inspiração do que falar para vocês, aqui, nesse encontro sobre Amor e Sexos.
Nessa aula de seu seminário, Lacan sustenta que o desejo está ligado a alguma coisa que é sua aparência, a máscara1. É uma questão essencial que temos na experiência analítica, diz Lacan, essa relação entre o desejo e aquilo que ele se reveste.  E vai dizer que também o sintoma se apresenta sob uma máscara paradoxal. Ele retoma o Caso de Elizabeth von R., descrito por Freud nos Estudos sobre a Histeria, para dizer que seu sintoma é uma máscara de dupla identificação: com a irmã e com o cunhado.
A ideia da máscara significa que o sintoma se apresenta de forma ambígua. “A questão é a da ligação que permanece como um ponto de interrogação, um x, um enigma, com o sintoma do qual ele se reveste, ou seja, com a máscara”.2 A máscara é essa coisa fechada que permite o reconhecimento do desejo. Identificar a máscara com o desejo freudiano é algo diferente do que se dirigir a um objeto.
A análise serve para comprovar esse caráter vagabundo, fugidio e inapreensível do desejo, alega Lacan. É o que faz com que ele diga: o desejo é mascarado. Podemos desmascará-lo algum dia? É uma pergunta que faz no Seminário 10.
Uma máscara é um revestimento, diz Lacan. Acompanhando seu ensino, também podemos chamá-la de vestimenta, vestido. Um muro. Uma vestimenta que faz com que a periquita de Picasso só se enamore dele quando estiver vestido. Sem a máscara, a vestimenta, o muro, a armadura, é o gozar de um corpo. E isso não deixa claro o que é o amor.
Vou chamar a máscara de um destino pulsional. Assim Freud dá o exemplo de um destino, o de Tancredo e Clorinda. Jerusalém Libertada foi citada por Freud em Além do Princípio do Prazer. Escrita em 1581, ambientada no tempo das cruzadas, da guerra entre pagãos e cristãos, assim vista pelo seu autor Torquato Tasso, italiano, cristão, que a escreveu morrendo de medo que algo desgostasse a inquisição e que ele próprio fosse considerado pagão.
Em Jerusalém Libertada, a máscara é uma armadura. Clorinda, a pagã, que usa uma armadura para ficar forte e “poder no perigo aventurar-se”, consegue energia e amor ardente quando a usa. Tancredo mata Clorinda em um duelo, ela disfarçada de cavaleiro. Tirando a armadura do suposto cavaleiro que ferira, vê o corpo casto da donzela – terá daqui saído a inspiração para Diadorim? – e com ela morta nos braços, sente-se condenado a um indigno existir, a viver em memória dos amores infelizes. No canto seguinte da epopeia, abre caminho numa estranha floresta mágica que aterroriza o exército dos cruzados. Com a espada faz um talho em um cipreste e ouve lamentar-se a voz de Clorinda: novamente me mataste! Na árvore estava aprisionada a alma de sua amada. E o narrador nos diz: hábil guerreiro, só débil para o amor foi. Deixa-se iludir por falsas imagens. No aspecto amoroso, Tancredo é como todos, embora nem todos sejam hábeis guerreiros. A isso, Freud chama um destino, “a perpétua recorrência da mesma coisa”.3
Lacan afirma no Seminário 20: mais, ainda, que o amor baseia-se numa certa relação entre dois saberes inconscientes, apontando que o sujeito aproxima-se de seu objeto na condição de que não o saiba, que esse saber é do inconsciente. “No baile dos incoerentes do amor, é preciso uma máscara para apreender o objeto. Ele se refere a comédia de Alphonse Allais, em que Raul e Marguerite, em um casamento de cinco meses, feito de muitas brigas, fazem um reconciliação no baile de máscaras em que cada um foi mascarado para, desmascarar a suposta infidelidade do outro.”4 A relação entre a orientação da libido e o desconhecimento fica evidente tanto no Banquete como na tragédia de Édipo. Sócrates só pôde colocar seu saber sobre o amor demonstrando que não sabia e que o que descobriu lhe foi contado por uma mulher, Diotima. O que Lacan marca é que só pode existir discurso amoroso a partir do ponto onde ele não sabia. E não só no discurso. O amor é concebido sem que Poros o soubesse.5
Esse desconhecimento sobre o objeto que causa o sujeito, que para além das vestimentas que o mascaram e fazem um happy end vitoriano, Lacan encontrou no romance de Marguerite Duras, O Deslumbramento de Lol Stein. Um vestido que deixado cair, evidenciava, para além da fantasia, o objeto a. Um vestido presta-se muito bem a ser uma máscara. As mulheres bem o sabem. Não apenas dos vestidos, da mascarada para o outro.
Em O Seminário 11: os conceitos fundamentais da psicanálise, diz: “Se há algum domínio em que a tapeação tem chance de ter sucesso é certamente no amor que encontramos seu modelo”.6 E no capítulo seguinte desse seminário, Lacan vai chamar o amor de uma falsidade essencial. Para depois afirmar: “enquanto miragem e especular, o amor tem essência de tapeação, Mas nessa tapeação, algo é paradoxal: o objeto a. “Eu te amo, mas porque, inexplicavelmente, amo em ti algo que é mais que tu – o objeto a, eu te mutilo.”7

A máscara, a vestimenta, a armadura, ou o muro, que Lacan equivoca com amor, mostram que o amor é a máscara. O amor é a tapeação não apenas necessária, mas essencial.
Mais dois exemplos mascarados. Um da literatura e outro da clínica. O da literatura é um pouco mais atual que Jerusalém Libertada. É do Século XIX, uma comédia de Max Beerbohm, inglês, contemporâneo e conterrâneo de Oscar Wilde, participava do mesmo grupo de escritores que seu colega mais famoso, e tão ácido na crítica quanto aquele. O farsante feliz conta a história de Lord George Hell, nobre hedonista, rico, perverso, jogador, voraz, destrutivo, rebelde, covarde, cínico, antipático, odioso, insolente. Vou parar por aqui na lista de adjetivos com que o autor caracteriza seu personagem. Nunca se preocupou em dissimular sua perfídia, cheio de amantes, madrugadas na luxúria e nas mesas de jogo, fugindo de uma amante italiana que o perseguia. Uma noite vê uma jovem dançarina um pouco desajeitada em um clube e se apaixona à primeira vista. Ajoelha-se diante da jovem Jenny Mere e a pede em casamento. Ela responde que não, “jamais poderá ser esposa de alguém cujo rosto não seja de um santo”. “Talvez Millord, seu rosto reflita um amor por mim, mas reflete muito da vaidade do mundo. Só a um homem cujo rosto seja tão maravilhoso como o dos santos, só a este poderei entregar meu verdadeiro amor”.
Para ir aos finalmente, Lord George vai a um famoso fabricante de máscaras, pede uma que represente o verdadeiro amor e a face de um santo. O fabricante procura em seu depósito de máscaras e encontra uma que confeccionou para um homem usar em suas bodas de prata e depois lhe devolveu. Lord George a quer e diz que vai usá-la para sempre. Com ela conquista Jenny Mere, vão se casar, compra uma casa rústica, no bosque; devolve os bens que ganhou ilicitamente, nas mesas de jogos. O único problema era que os beijos de máscara ficavam um tanto insípidos, se perdia o gosto da boca do outro. Às vezes pensava em tirar a máscara e beijá-la, não queria essa barreira entre ele e sua jovem esposa. Mas depois retomava o bom senso e sabia que teria que usar a máscara para sempre. Apesar do material duro com que era feita, ela representava o verdadeiro amor.
Há uma cena final em que a amante italiana os desmascara. Diz a Lord George que a máscara campestre de sua jovem esposa é melhor que a dele. Avança sobre a dele, arranca e a joga no chão. E aí vem a surpresa para ele e a ex amante italiana: por trás da máscara seu rosto tinha se tornado igual à máscara. Ele olhou sua amada nos olhos e viu isso refletido nos olhos dela. E foram felizes para sempre. Mascarados. Ele de santo, ela de jovem campestre.
Agora o exemplo da clínica. Um homem jovem procura a analista porque comentaram que ela era intelectual. É esse o significante qualquer com o qual começa sua análise. Nela fala de Das dificuldades nos estudos que tem desde criança. E, sobretudo, de um relacionamento amoroso fracassado dois anos antes. Nesse momento já está namorando outra pessoa, mas fala daquela namorada, que vivia lendo, estudando, só tinha papo cabeça, conversa intelectual e que isso o entediava. Sempre que dizia sobre a ex, terminava assim “e aí eu me intediei e terminei”. E nessa vez em que a palavra vacila, como um tropeço, diz “e aí me apaixonei”.
O significante pode ser uma máscara? Para esse homem que se sente deslocado, fora do mercado de trabalho, do negócio familiar – é uma das queixas: ele é out da empresa familiar – e da relação de amor que deixou perder porque não enxergou que estava apaixonado, o intelectual o interessa muito, e ele achava que isso o intediava. Esse in que ele esperava alcançar para deixar de ser out é uma sílaba de seu sobrenome. Trata-se aqui da construção de um nome próprio. Um sinthoma. Isso é mais do que uma máscara-semblante identificatória.





1 Lacan, J. O Seminário, livro 5, As formações do inconsciente. RJ: Jorge Zahar Editor, p. 331.
2 Ibid, p. 338.
3 FREUD. Standard Obras Completas. Além do princípio do prazer.
4 Brunetto, A. Sobre amores e exílios: na fronteira da psicanálise e da literatura. SP: Editora Escuta.
5 Ibid.
6 LACAN. J. O Seminário, livro 11: os conceitos fundamentais da psicanálise. RJ: JZEditor, p. 128.
7 Ibid, p. 253. 

Paris não se acaba nunca



Já estive em Paris em todas as estações, com todos os estados de ânimo, alegre, triste, para passear, para ir a congressos, e sempre prefiro a primavera. No verão é quente demais, tem gente demais, horas em filas para tudo e sinto, ao final do dia, que desperdicei o tempo. E o tempo em Paris corre rápido. Porém, no verão, já lavei os degraus da Catedral de Montmartre, em comemoração ao ano do Brasil na França, já fiz piquenique em um domingo à tarde, na Ponte das Artes, já andei a pé por toda a cidade. No verão isso é possível, no inverno não, pois o vento é tão cortante que temos de ir de um lugar a outro de metrô. E Paris tem muitíssimas linhas de metrô, se pode com ele ir a todos os lugares.
Mas prefiro a primavera. Paris fica mais bonita com suas ruas floridas, seus parques verdes, com os ventos frescos. Até a água do rio Sena fica com uma cor mais bonita. Turistas alegres na rua, menos do que no verão - em Paris sempre tem turistas - os parisienses mais contentes e simpáticos. Meu conselho aos que me leem: se vocês forem a Paris pela primeira vez, escolham a primavera.
Já cheguei a Paris no inverno, de trem, indo de Bruxelas para lá. Triste por ter perdido um amor. E passei uma semana triste, inverno nas ruas, inverno na alma. E passei meu réveillon assim, lá: triste, despenteada, sem batom, desalentada. Encontrei em uma noite, com minhas amigas, andando pelas ruas, um casal de sul-mato-grossenses e ao me apresentar, ela me contou que tinha sido indicada para fazer análise comigo, que iria ligar para mim quando voltasse das férias. E viramos amigas nessa semana em Paris. E ela teve que procurar outra analista. Agora, anos depois, quando vejo as fotos dessa viagem, nem parece que estava triste e desalentada. O tempo corre rápido na vida. Não só em Paris. 
Em “O eremita em Paris”, Ítalo Calvino escreveu que o lugar ideal para se viver é aquele em que é mais natural viver como estrangeiro, por isso Paris é a cidade em que se casou, montou uma casa, teve uma filha. Sua mulher era estrangeira também, ele italiano e, nessa casa, cada um falava uma língua, ou seja, a filha deles devia falar francês. E conclui: “Tudo pode mudar, mas não a língua que carregamos por dentro, aliás, que nos contém dentro de si como um mundo mais exclusivo e definitivo que o ventre materno.”
Depois de Ítalo Calvino, muita coisa mudou. E Paris não é mais tão amistosa. E menos ainda dependendo de quem são os estrangeiros, de qual religião eles têm. Ser africano, árabe, não falar francês não é nada fácil em Paris. Mas talvez o problema não esteja só em Paris, os nacionalismos com seus muros separatistas andam florescendo no mundo todo.
Paris foi o berço das revoluções, nas artes, inclusive. Para os artistas, todos os caminhos vão dar em Paris. Creio que até hoje. Poderia desfiar aqui uma listagem de escritores e pintores que se sentem mais criativos e livres vivendo em Paris, mas citarei só um: Ernest Hemingway que foi viver sua liberdade, suas farras boêmias em Paris. E nela escreveu muito, brigou, se embebedou. Anos depois, antes de se matar, escreveu um livro sobre esse período de liberdade em Paris: “Paris é uma festa”.
A comida em Paris é muito boa, mas os restaurantes servem porções ínfimas. Por isso eles são magros. Depois de dias sem comer uma boa carne, vou aos restaurantes árabes e peço um Kebab. Não tem cidade do mundo em que eu me sinta tão gorda quanto em Paris, olhando as francesas magras, mignons, bem vestidas e comendo igual passarinho.
Enrique Vila-Matas, o escritor barcelonês, escreveu um livro que se chama “Paris não se acaba nunca” – copiei dele o título para essa crônica – em que ele mede seu período de juventude em Paris com o de Hemingway, de “Paris é uma festa”.  O protagonista da novela de Enrique Vila-matas não está à altura da estadia de Hemingway em Paris: este foi muito pobre em seu período parisiense, mas muito feliz, já o protagonista de “Paris no se acaba nunca” passou um horror de infelicidade em seus anos parisienses. Foi em comparação a esses dois livros que comecei dizendo: já estive alegre e triste em Paris. E de todos os jeitos sempre é bom ir a Paris.

Escrevendo sobre essa cidade que não se acaba, palco de tantas histórias alegres e tristes, em que foram escritos e vividos muitos romances, criadas muitas obras de arte, dou meu segundo conselho aos leitores: depois de verem a Torre Eiffel, é urgente ir ao Museu do Louvre. E assim, com Paris que não se acaba, me despeço de minhas crônicas às quartas-feiras. Talvez no futuro, com outra bagagem, com outras viagens, eu volte. Obrigada a todos que me acompanharam. 

domingo, 20 de novembro de 2016

Na selva amazônica colombiana, um homem procura o amor



Arturo Cova é um homem que não se tornou o que poderia ter sido, descendia do infortúnio e o destino implacável lhe retirou a prosperidade, empurrou-o para os pampas. Começa sua estória nos contando que antes nunca foi apaixonado por mulher alguma, “jogou seu coração ao acaso e ganhou a violência”. Nada soube das “delícias embriagadoras, da confidência sentimental”, mas ambicionava “o dom divino de um amor ideal” que incendiaria sua alma e seu corpo como a chama na madeira. E eis que ele conhece Alícia.
“Quando os olhos de Alícia me trouxeram a desventura, havia já renunciado a esperança de sentir um afeto puro. Em vão meus braços – tediosos de liberdade – se estenderam para muitas mulheres, implorando por elas, sucessivamente. Ninguém adivinhava meu sonho. E seguia em silencio meu coração.”
Alícia chegou até ele fugindo de um casamento arranjado por sua família. E amava um primo com quem também não poderia ficar. E se entregou a Arturo facilmente: “se entregou sem vacilações, esperançada no amor que buscava em mim”.  Depois ele continuou querendo-a. Ela lhe respondeu: morrerei sozinha, minha desgraça se opõe a seu porvir. Mesmo assim, fugiu com ele para a floresta amazônica colombiana, para a vida dura dos colonos e indígenas escravizados pela febre da borracha.
Mesmo vivendo dia-a-dia com Alícia, olhava e seduzia as outras mulheres que iam aparecendo pelo caminho, seguindo sua vida de homem de coração endurecido, que compensa em fidalguia o que não pode dar em ternura, com a convicção íntima de que vive como enamorado sem o estar, e de que “essa idiossincrasia cavalheiresca o empurrará até o sacrifício” por uma dama que não é a dele, e por um amor que não conhece.
“A fama de galã ganhou no ânimo de muitas mulheres, graças ao costume de fingir, para que minha alma se sinta menos sozinha. Por toda parte fui buscando no que distrair minha inconformidade, e ia de boa fé, desejoso de renovar minha vida e me resgatar da perversão; porém em qualquer lugar onde pus minha esperança me encontrei lamentavelmente vazio, embelezado pela fantasia e repudiado pelo desencanto. E assim, enganando-me com minha própria verdade, consegui conhecer todas as paixões e sofro o fastio, e sigo desorientado, caricaturando o ideal para sugestionar-me com o pensamento de que estou próximo da redenção. A quimera que persigo é humana, e bem sei que dela partem os caminhos para o triunfo, para o bem-estar e para o amor. Mas se passaram os dias e se foi consumindo minha juventude sem que minha ilusão reconhecesse a derrota; e vivendo entre mulheres sensíveis, não encontrei a sensibilidade, nem entre as enamoradas, o amor, nem a fé entre as crentes. Meu coração é como uma rocha coberta de musgo, donde nunca falta uma lágrima. Hoje me viu chorar, não por fraqueza de ânimo, que bastante rancor o tenho na vida; chorei por minhas aspirações enganadas, por meus sonhos desvanecidos, pelo que não fui, pelo que jamais serei.”

E tudo isso só até a metade do livro. Continuo avidamente a segunda parte, que não pode descumprir a promessa dessa escrita formidável. La Vorágine é a única novela de José Eustasio Rivera e, também, uma obra clássica da literatura colombiana do começo do Século XX. Trouxe também, de minha viagem a Colômbia, em julho, seu livro de poesias Tierra de Promisíon y otros poemas. Em abril de 1928, voltando de Cuba, enviado para um congresso internacional sobre imigração, parou em Nova York, famoso como poeta, novelista, político e diplomata, sentiu-se mal, foi internado e morreu do que pareceu ser uma recidiva de malária.   

São Paulo, a acelerada cidade de tantos gostos e desgostos





Fui a São Paulo na terça-feira passada. Como era feriado aqui em nosso Estado, era uma manhã mais calma do que as outras, trânsito calmo, aeroporto tranquilo, e cheguei a São Paulo em uma terça-feira de dia útil – e os feriados seriam inúteis? – numa cidade gigantesca, acelerada e fervilhante. Fui com Fabiana e encontramos Márcia já no aeroporto, vinda de Aracaju, para assistirmos ao show de Andrea Bocelli. Não estávamos no ritmo acelerado, pois eram dois dias “inúteis”, para aproveitarmos as coisas “inúteis” da vida: o show de Andréa Bocelli, três museus e alguns restaurantes para mangiare bene. Escrevo assim, em italiano, para já entrar no clima do show. Fazer tudo isso em dois dias, só sendo paulistano: acelerando.
Eu e minhas amigas passamos dois dias andando de Uber em São Paulo. Fizemos muitas perguntas sobre o aplicativo. Vários dos motoristas começaram a trabalhar com o Uber depois de perderam seus empregos em fábricas, grandes magazines, shoppings, e estavam contentes de estar ganhando dinheiro com o novo trabalho. E, disseram, também os passageiros estavam contentes, pois as tarifas do Uber são bem mais acessíveis que o do taxi comum. Realmente, se nesses dois dias tivéssemos tomado taxis normais, simplesmente teríamos gasto uma fortuna. Disse-nos um deles que um dos candidatos não chegou ao segundo turno, que em determinado momento da eleição teve chances, porque sustentou que iria acabar com o Uber. Nem os motoristas, nem os passageiros queriam isso. E o outro candidato – isso foi conclusão minha e de minhas amigas – não permaneceu porque tentou desacelerar São Paulo. Todos os motoristas reclamaram de multas tomadas nas marginais por excesso de velocidade. Eu argumentei: mas não diminuíram os acidentes, sobretudo os com mortes? Nenhum dos motoristas com os quais conversamos aceitaram que a velocidade na Marginal precisava ser cinquenta quilômetros por hora, por exemplo. Eu repetia a pergunta: e as mortes? Não é bem assim, era sempre a resposta. Enfim, cada um conclua essa história que conto como achar melhor. Eu só posso entender uma coisa: São Paulo não aceita ser desacelerada.
Quanto aos motoristas de taxi e Uber que tomávamos, era entrar no carro e Márcia perguntava: você é de Recife, você é do Ceará? Você é de Alagoas? Márcia é nordestina – de nascimento é carioca – e sabe reconhecer todos os sotaques. Se um sujeito era do interior do Ceará e não de Fortaleza, por exemplo. Mas conto tudo isso só para mostrar que o Nordeste está em São Paulo. Então por que aquilo que se passou na última eleição, de os paulistanos acusarem os nordestinos de terem elegido uma presidente de esquerda? Nem sentido tem isso. A não ser o do preconceito. E para encerrar essa história de Uber e nordestinos, um último fato. Na quinta-feira, dia de ir embora, Carolina, uma jovem motorista do Uber, que estava em seu segundo dia de trabalho no aplicativo, veio nos buscar no hotel. Antes trabalhava como gerente de uma loja de eletrodomésticos, marca bem conhecida, e foi demitida depois de quase uma década. Perguntei se era paulistana. Sim, mas filha de nordestinos. Enfim, a impressão que tive é que a São Paulo que trabalha, que produz, que faz a cidade acontecer, é nordestina.
Fomos ao MASP, na Avenida Paulista. A coleção permanente do museu é um espetáculo: quadros importantíssimos. E muitos deles doados para o acervo do museu há décadas. Anotei algumas doações: Ovídio de Abreu doou um Van Dyck, pintor flamengo importantíssimo. Os quadros de Van Dyck valem milhões. Henryk Spitzman doou quadros de Cézanne e Gauguin para o museu. E também a Família Sotto Mayor doou vários quadros. E a Companhia Antártica. Todas essas doações são de pelo menos quarenta anos atrás. E doações recentes? Nenhuma. Os ricos de agora não doam para os museus? Parece que não. Nisso, talvez nossos milionários não querem parecer com os europeus e também, em menor grau, com os americanos. Na Avenida Paulista, onde os empresários de agora constroem patos gigantes, aliás plagiados de um artista norueguês, os do passado faziam doações para as artes.
Fiquei pensando isso depois do show de Andrea Bocelli e da posição dele, dos dividendos de sua riqueza. Antes dele entrar no palco, passou um filme no telão: mostrava o trabalho de um instituição que leva o seu nome, no Haiti. Uma instituição que ampara as crianças em suas necessidades de saúde, educação, moradia. Ficamos sabendo que ele faria um show em Aparecida, para todos, à frente da catedral. E alguns dias depois um show que ele estaria doando para a instituição Santa Marcelina. E ainda mais, ontem vi que ele foi escutar um coral em um presídio. Um homem engajado que paga bem o preço de sua fama e riqueza. Pessoal, inclusive. Com tudo isso, até o perdoei que ele tenha começado e terminado o show, diante de um estádio lotado, e não tenha dito nem Boa noite Brasil, Boa Noite São Paulo. Já o perdoei.
O que é imperdoável, no Brasil do momento, é que os milionários não paguem dividendos de suas grandes fortunas, como em quase todos os países da Europa se faz – e Bocelli deve pagar, e ainda investe um tanto dela no Haiti - que os políticos se aposentem com oito anos, que estes não diminuam suas regalias parlamentares, que os altos cargos da justiça ganhem tanto em proporção ao que ganha o povo, que os rentistas ganhem tanto com os juros altos. E, para terminar, diante da necessidade – que ninguém duvida – de que é preciso conter gastos, seja a saúde, a educação e a segurança pública que vão pagar o pato. Estamos caminhando para onde?
São Paulo, a capital da solidão, como Roberto Pompeu de Toledo a adjetiva em seu livro sobre essa cidade gigantesca, caminha aceleradamente para onde? Ela está uns passos mais acelerada que Campo Grande, mas diante do que o Brasil vive, estamos todos indo para o mesmo lugar. É uma pena, pois somos um país de tantas riquezas.
Andrea Bocelli já é um artista consagrado no mundo inteiro, com uma voz espetacular, um tenor com grande presença de palco. Isso tudo já era esperado. A surpresa: a jovem cantora Anitta, cantora de funk, entrou no palco e cantou Somewhere Over the rainbow. Lindamente vestida (vestido sóbrio e bonito) e maquiada, com uma voz linda cantou essa música ímpar. E sozinha. Recebeu um começo de vaias, mas o público foi escutando sua voz e abdicou de seu preconceito e a apladiu muito. Na segunda música, já cantou com o tenor, em português. E depois cantou Vivo per Lei, e sua voz acompanhou a do tenor. Uma diva.
Dois dias em São Paulo foi uma grande viagem, de grande aprendizado, de muitas artes. Por isso, a foto que mais gostei de todas que tirei foi esta à frente de um quadro de Portinari, com esse homem trabalhador, sabedor de sua força e de seu poder. Um homem altivo, que não abaixa a cabeça e segue adiante. Portinari tão bem retratou os trabalhadores da colheita do café, do milho, os retirantes. Esse povo explorado, o trabalhador. Eu, você, a maior parte desse país.





São Petersburgo III - Uma nervosa aventura para deixar o país



São Petersburgo, apesar de ser uma cidade linda, possui muita pobreza e só agora está se abrindo para muitas coisas do mundo ocidental. Sua moeda estava bem desvalorizada perto do real e tudo era barato para nós. Foi um alívio, depois de passar pela Noruega, em que um prato de macarrão era uma pequena fortuna - não só o macarrão, tudo, até mesmo a comida no supermercado custava uma pequena fortuna - chegamos a uma cidade em que nosso dinheiro dava até para comprar souvenirs para os amigos.
É difícil se comunicar com eles. A maioria das pessoas não fala nem algumas palavras em inglês. Tivemos que resolver quase tudo na mímica. Quase perdemos o trem por conta dessa dificuldade do idioma. Eu e minhas amigas chegamos a São Petersburgo a partir de um voo de Estocolmo e sairíamos uma semana depois, de trem. Descobrimos que havia um novo trem de alta velocidade, saindo de lá e chegando a Helsinque. Foi construído pelo governo finlandês, pois muitos finlandeses trabalhavam na Rússia e assim faziam o trajeto com rapidez e conforto. Compramos o bilhete na Estação Central de São Petersburgo sem que a vendedora soubesse uma palavra do inglês. Colocamos no papel o dia da viagem, o horário, de onde e para onde iria – seguindo todas as informações pesquisadas na internet, pois lá na estação não tinha um folder que informasse sobre esse trem, o Allegro- e compramos. Mas a vendedora não disse que esse trem, que era finlandês, parava em outra estação, se disse, foi no perfeito russo e não entendemos. Depois fomos perceber que a estação era velha e antiga e os dormentes também, daqui não sairia um trem-bala de jeito nenhum.
 Tivemos a sorte de chegar à estação mais de uma hora antes e mostrávamos o bilhete para todo mundo, procurando a plataforma de saída, pois nada apontava para o trem Allegro. Um funcionário da estação viu que estávamos erradas, ele era faxineiro, estava varrendo o chão. Um homem determinado, pois dois ou três policiais estavam ali, explicando a nós, quatro mulheres, em russo, que o trem não saia daquela estação.

Esse homem chegou ao burburinho, pegou uma de nossas malas e fez sinal para segui-lo. Descemos um metrô tão fundo, abaixo do rio Neva, pegamos outro, e uma segunda baldeação e tudo o seguindo. Ele pagou até os bilhetes de metrô para a gente, para ser mais rápido, e nos deixou no outro canto da cidade, em outra estação ferroviária - essa maravilhosa, internacional, com o trem finlandês. Se ele não tivesse feito isso, o trem estaria perdido. Indo de taxi não iria dar tempo, e para entender todo esse trajeto teríamos demorado bem mais. Depois, olhamos pelo mapa e entendemos que atravessamos a cidade inteira.
Em poucos lugares do mundo, e poucas pessoas que conheço fariam isso para quatro mulheres desconhecidas, que não sabiam falar a língua dele. Poucas pessoas teriam tanta disponibilidade para fazer isso para pessoas estranhas. Léa é uma pessoa muito comunicativa e espiritualizada, teve a primeira conversa com esse homem – ela em português e ele em russo - e acreditou na boa energia e no bom caráter dele.
E demos um dinheiro para ele, pela gentileza, por ter pagado os bilhetes de metrô, embora saibamos que não há dinheiro que pague o que ele nos fez. Quando chegamos à outra estação, já mais aliviadas, fomos cumprimentá-lo estendendo a mão. Acho que, até no calor da emoção, devemos tê-lo abraçado. Ele era um homem bem sério e inibido e ficou muito envergonhado com nossa efusão. Não sei se entendeu que éramos brasileiras, mas se entendeu, deve ter nos achado um pouco loucas.  
Só não perdemos o trem pela rapidez de decisão desse homem, pela sua gentileza, sua decisão de ajudar naquela situação. Nenhum dos funcionários da estação nem os policiais que viram nossa aflição fizeram nada. Isso mostra que um homem decidido faz toda a diferença. De vez em quando lembro-me dele, até mesmo suas feições ficaram gravadas em minha memória.  
E no trem chique, moderno e todo tecnológico, passamos pelo carimbo de passaporte pelos russos e, depois, na fronteira, a polícia finlandesa pediu os passaportes. Estávamos novamente entrando na União Européia. Contei essa história para alguém de minhas relações, logo depois do ocorrido, e ele me escreveu: quatro mulheres com energia boa e mesmo sem entender uma palavra, esse homem percebeu isso.

Estou terminando de ler o livro de Iván Bunin, “Dias Malditos” e ele escreve “na Rússia, Deus e o diabo se sucedem um ao outro, constantemente”. Passei uma semana lá, e a sucessão não foi tão constante, pois do segundo nem tive notícias, só do primeiro. E lembro-me das feições dele até hoje. 

São Petersburgo II - Hermitage, um imperial palácio de inverno se transforma em museu




O Hermitage é o maior museu da Rússia e um dos maiores do mundo. Seu acervo tem mais de três milhões de peças. No site de divulgação do museu há a informação de que ele tem a maior coleção de quadros do mundo. Encontrei uma página na internet em que é feito um cálculo: se você parar alguns minutos diante de todas as obras, demorará quatro meses para visitá-lo inteiro. À beira do Rio Neva, em São Petersburgo, engloba dez edifícios completos. O principal é o Palácio de Inverno:  moradia dos Czares da Rússia. Tudo nele é grandioso: a quantidade de obras, de edifícios, de filas para entrar. E exagerado: ouro pelo teto, nas paredes, nas fechaduras, nas pias, nas janelas. Como já foi a moradia dos czares, tudo nesse palácio-casa-museu reflete a grandiosidade desse país.

Mesmo com filas grandiosas que contornavam todos os edifícios e continuavam pelo pátio em frente ao museu, eu e minhas amigas entramos pela lateral, pois já tínhamos comprado os ingressos pela internet. Então o segundo conselho é esse: ir a esse museu somente com os ingressos já comprados. O primeiro conselho: não é possível para alguém que gosta de arte não conhecer o Hermitage. É uma necessidade. E uma orgia visual, sai-se do museu até tonto. E mais outro conselho: se você não for sozinho, combine uma estratégia para reencontro em algum lugar fora dele para o caso de se perder de suas companhias. Eu e minhas amigas nos perdemos. Primeiro me perdi de Márcia e Léa, e horas depois, de Alba. Já de noite, depois do dia inteiro andando por esse museu – noite só pelo horário do relógio, pois lá, no verão, não escurece - saí e andando sozinha pela rua, escutei meu nome sendo gritado de um barco quase no meio do canal. Márcia e Léa saíram do museu minutos antes e pegaram um barco para andar pelos canais da cidade e passar de barco em frente ao museu. Com minha perfeita mímica, fiz sinal ao piloto, que já estava partindo, de que eu também queria ir. Ele, falando tudo em russo, entendeu tudo, e pude subir ao barco. Assim terminou meu passeio pelo Hermitage.
Enquanto andava pelos corredores, salas e escadas suntuosas, com exagero de ouro por tudo, lembrava-me das aulas de história e dos romances russos que já tinha lido. A miséria do povo, a fome, uma aristocracia que voltou suas costas a essa miséria, as condições climáticas adversas que aumentavam os problemas, tudo isso fez uma revolução, uma tomada de poder pelo povo que foi sanguinária. A última dinastia russa, os Romanov, foi assassinada: Nicolau, Alexandra, os filhos, os criados e o médico da família foram assassinados no ano seguinte à revolução.
 Nicolau II, o último czar da Rússia, vivendo suntuosamente nesse palácio, não enxergou a insatisfação do povo, fazia jantares exagerados, gastava demais, não coibiu o antissemitismo que proliferava no país e exigia do povo pagar altos impostos. Seu reinado luxuoso e insensível, cheio de decisões erradas, terminou com a revolução bolchevique. Com Lênin e Stalin, também sabemos como terminou décadas depois, esse governo que se disse do povo: em um totalitarismo que virou as costas a ele. A história sempre se repete? E o povo sempre fica no mesmo lugar?
Não é apenas pelo Hermitage que escrevo isso para vocês, nem pela votação de uma contenção de gastos que só atinge o povo - essa não na Rússia, mas no Brasil dos dias atuais – mas por um livro que estou lendo e do qual só consigo desgrudar de suas páginas para trabalhar. E depois volto para elas: Dias Malditos, de Iván Bunin. Foi o primeiro autor russo a ganhar um Prêmio Nobel da Literatura (em 1933). Esse livro tem como subtítulo “Um diário da revolução”, é um relato desesperado do dia-a-dia após a revolução de 1917. O desespero das pessoas nas ruas, os rostos atormentados, a fome. Os bombardeios à noite. O frio. Como ele se refugiava de todo esse horror? Tendo bons sonhos, construindo em seus sonhos um mundo que não existia durante o dia. Um exemplo: no dia 3 de abril escreve que o tempo está melhorando, não está mais tão frio e ele teve um sonho lindo, estava em um mar branco como o leite e tendo um céu azul estrelado. E dias depois outro sonho: vagões de trem, mares e países bonitos, vento fresco batendo no rosto. E mais um para finalizar, um sonho que veio depois de um dia em que publicaram grande lista de fuzilados: ao invés de paisagens, sonha com um poema em que um corcel corre livre pelos campos, livre.
Em uma coisa se assemelhavam seus sonhos e seus dias malditos: ânsia de liberdade. Queremos sempre o mesmo?


São Petersburgo I - A monárquica e chique cidade imperial russa



Quando o policial, na imigração, pediu-me de onde eu vinha, por estar distraída ou pelas minhas limitações do inglês, respondi “venho do Brasil”. Ele disse não. Pedi desculpas, disse que falava mal o inglês, não tinha entendido que queria saber de onde era meu voo. Respondi Estocolmo. Não sei se por isso ou por outro motivo, passei rapidamente pela polícia. São filas demoradas para entrar na Rússia, muitas perguntas. A mim, depois de pedir desculpas e dizer que não falo bem inglês, foi rápido. Fui dispensada bem antes do que minhas amigas.
E chegamos a São Petersburgo, cidade linda, de muitas cúpulas douradas, à beira do Rio Neva. Próxima do Golfo da Finlândia, no Mar Báltico. Já tinha lido tanto sobre ela, em tantos romances, tantos escritores. Ivan Turgueniev ambienta nela a maior parte de seus dramas políticos e amorosos. Nela, a aristocracia, que vivia de um jeito nababesco, com uma família real exageradamente rica e gastadora, ficou com os olhos fechados aos anseios do povo e foi o clima propício para a revolução bolchevista, que depois de um tempo, também virou às costas ao povo. Meu pai, que é um grande leitor da história russa, dos romances russos, tinha me dito, antes da viagem: você vai conhecer um povo que foi oprimido desde sempre, um povo muito sofrido.
 Encontrar nosso hotel foi difícil. Era em um andar de um prédio imponente, antigo, sem restauração. Entrando no prédio, as escadas eram depredadas, estragadas, um elevador velho que tive medo de subir. Chegando ao primeiro andar, em uma das portas, era nosso hotel. Dentro era totalmente reformado, moderno, bem decorado. Não acreditava que assim o seria. E assim foi quase tudo em São Petersburgo: uma mistura de novo e velho, de coisas depredadas, precisando de restauração, com preciosidades. Mesmo em sua rua principal, a Nevsky Prospekt, tudo é assim: algumas construções lindas e outras sem cor, sem cuidado, gastas pelo tempo. A Igreja do Sangue Derramado, situada à margem do canal Griboedov, foi construída onde o Czar Alexandre II foi assassinado e se tornou um armazém durante o período comunista. Ainda guarda marcas desse período de descaso.
Estive na cidade por uma semana durante o verão, e pude observar suas noites brancas, como Dostoievski descreve em sua novela. Escurecia – e mesmo assim, não completamente – às três horas da madrugada e às cinco horas já estava completamente claro. O jeito era passear pela cidade, andar de barco.
Não conseguíamos nem conversar com as pessoas. Mesmo em nosso hotel, só uma atendente falava inglês. Tivemos que resolver quase tudo na mímica. E além de tudo, eles têm outro alfabeto. Senti-me uma analfabeta absoluta. Só reconhecia as imagens. Saia entrando nas lojas, olhando dentro, para ver se encontrava um mercado. Nos passeios de barco, museus, enfim, em todos os passeios turísticos, só se falava em russo. A maioria dos turistas era do próprio país. Assim o percebi. Foram dias e dias tentando me comunicar na mímica. Para algumas coisas é bem difícil fazer mímica, porém as pessoas eram tão simpáticas, tão acolhedoras, sempre querendo ajudar, adivinhar o que você queria, que eu e minhas amigas, não tivemos problemas sérios. Um dia cheguei ao hotel comendo um chocolate, nos dias seguintes, ganhava das atendentes um chocolate. Não há marcas conhecidas nos supermercados, tudo é produção local.

Foram dias quentes, de muito sol e noites claras, de comida boa e pessoas simpáticas e acolhedoras. Gente simples, pobres, trabalhadores. Eu não precisava saber língua nenhuma para entender isso. Mas foi lá, nessa semana, que decidi que voltaria ao país falando o russo. Quero fazer, em viagem futura, o trajeto da ferrovia transiberiana – pelo menos um trecho, pois ela tem mais de nove mil quilômetros - conhecer o Lago Baikal, ler alguns romances russos no original e, sobretudo, conversar com as pessoas. Há mais de um ano sigo nesse empreendimento tão difícil: estudando russo. Já conheço o alfabeto, declino verbos, falo e compreendo frases curtas. Em poucas viagens em minha vida, aprendi tanto e saí tão determinada a aprender uma língua tão difícil. Um país gigantesco, com uma história tão complexa, de tantas batalhas, guerras, sofrimento do povo. Qual país do mundo tem tantos escritores geniais como a Rússia? Que cidade foi tão retratada em romances como São Petersburgo? Enquanto andava pela Nevsky Prospekt, estava no ambiente de Anna Karenina, o maior romance já escrito. E como a cidade, em parte, parou no tempo, eu estava naquele tempo. E não no meu. Voltarei a essa cidade imperial em alguns anos e falando a língua deles. Quem me acompanha?