segunda-feira, 11 de setembro de 2017

Julian Barnes, um escritor transgênero

                Ano passado conheci um homem que aprecia música clássica e é um grande conhecedor dela. Eu, que no máximo gosto de algumas sinfonias de Mahler, Wagner e as estações de Vivaldi, escutei tudo o que ele me sugeriu. Paramos de nos falar ano passado e voltamos somente mês passado. Ele me indicou alguns vídeos no YouTube de um compositor que adora: Chostakovich. Inclusive assisti a abertura do filme De olhos bem fechados, de Kubrick, com música de Chostakovich.
Peguei para ler o livro O Ruído do Tempo, de Julian Barnes, e seu personagem é Dmitri Dmitrievich Chostakovich. Descubro que ele foi o mais celebrado compositor da União Soviética e também o mais coagido e intimado pelo Estado. Em janeiro de 1936, Stalin assistiu a apresentação da sua aclamada ópera Lady Mcbeth de Mtsensk, em Moscou, e saiu intempestivamente da apresentação antes do final. Dias depois apareceu uma crítica no jornal Pravda chamando a obra de Chostakovich de chinfrim, escrita provavelmente pelo próprio Stalin.
O Ruído do Tempo é um livro que mostra perfeitamente como a arte colide com o poder. Um episódio dentre muitos contados nesse romance. Em 1950, quando Chostakovich foi a Nova York, como enviado russo para um congresso sobre a paz, chegou a cogitar em se jogar da janela de seu quarto de hotel. Um ano antes, um russo em busca de asilo o tinha feito. Ele, Chostakovich, cogita a possibilidade, mas não o faz também porque sabe que o Estado destruiria sua obra e teria seu nome colado a alguma história deturpada que construiriam. Tentou viver e construir uma obra em um regime que não permitia os amores, a liberdade, em que dizer a verdade se tornou impossível.
Em um evento promovido pelo jornal Guardian, a propósito da publicação de O Ruído do Tempo, Julian Barnes questionou porque o designaram como “romance biográfico”. Segundo ele, todos os romances o são, são o estudo de uma vida, seja de Anna Karenina, de Madame Bovary ou de uma pessoa real como Chostakovich. E também sustentou que trabalhava de maneira instintiva, que não lhe interessavam os gêneros literários, que ele era um “escritor transgênero”.
O Ruído do Tempo é um livro maravilhoso, instrutivo de como as tiranias destroem a verdade, o amor, a liberdade. Barnes escreve que seu personagem esperava que a música o libertasse, e em determinado momento, que a morte o libertasse. Há um questionamento de a quem pertence a arte. Lenin escreveu que a arte pertencia ao povo. Barnes escreve sua tese sobre a quem pertence a arte e coloca na boca de seu personagem. A arte não pertence ao povo e ao Partido. “A arte é o murmúrio da História, ouvido sobre o ruído do tempo.”

Escrevo essa pequena resenha para todos, mas em primeiro lugar para meu quase amigo que me apresentou Chostakovich. Para retribuir a gentileza, apresento-lhe esse Ruído do Tempo, de Julian Barnes.