sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

París no se acaba nunca

“.... creo que tengo derecho a poder verme de forma diferente de como me ven los demás, verme como me da gana verme y no que me obliguen a ser esa persona que los otros han decidido. Somos como los demás nos vem, de acuerdo. Pero yo me resisto a aceptar tamaña injusticia. Llevo años intentando ser lo más misterioso, impredecible y reservado posible. Llevo años intentando ser un enigma para todos. Para ello, con cada persona adopto una actitud diferente, busco que no haya dos personas que me vean de igual forma. Sin embargo, esta esforzada tarea se me está revelando inútil. Sigo siendo como los demás quieren verme. Y por lo visto todos me ven igual, como a ellos les da la gana. Si al menos alguien, ya no digo mucha gente sino alguien, supiera verme idêntico fisicamente a Hemingway...”


Assim, querendo ser parecido fisicamente com Hemingway e medindo seu período de juventude em Paris com o dele, o protagonista de “Paris no se acaba nunca” escreve sua novela comparando-se com a novela de Hemingway, “Paris é uma festa”. Só que já vejo de começo – estou nas primeiras páginas do livro – que o protagonista da novela de Enrique Vila-matas não está à altura da estadia de Hemingway em Paris: este foi muito pobre em seu período parisiense, mas muito feliz, já o protagonista de “París no se acaba nunca” passou um horror de infelicidade em seus anos parisienses.

Mesmo assim, alega que tudo se acaba menos Paris. Paris o acompanha sempre, foi sua juventude. Viaje onde viaje, ela nunca vai se acabar para ele. “Ya puede acabarse este verano, que se acabará. Ya puede hundirse el mundo, que se hundirá. Pero mi juventud, pero París no ha de acabarse nunca. Qué horror!”

sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Feliz Natal

Hoje está tão quente, mas tão quente, que só consigo me abanar. Meu cérebro está fritando. Não consigo ter inspiração para desejar a todos feliz natal, não consigo dizer com belas palavras que se reunir com a familia e os amigos, dividir a esperança é o fundamental. A alegria é o fundamental na vida. Alegria, saúde e amor.


E um clima temperado.....urgente um ventinho, um sopro de vento calmo que ...acalme a agitação, permita dormir, pensar e continuar lendo meu livro. Estou lendo um livro excelente chamado "Sardenha como uma infância". Elio Vittorini começa o livro assim: "Eu sei o que é ser feliz na vida - e a dádiva da existência, o gosto da hora que passa e das coisas que estão em torno, ainda que imóveis, a dádiva de amá-las, as coisas, fumando, e uma mulher dentro delas. Conheço a alegria de uma tarde de verão, lendo um livro de aventuras canibalescas, seminu em uma chaise longue, na frente de uma casa de colina com vista para o mar."

Ele escreveu isso aos 24 anos de idade. Como alguém pode escrever tão bem, começar um livro de forma belíssima, aos 24 anos???

Estou aqui cozinhando de inveja por ele escrever tão bem, pela tarde de verão, pela casa de colina com vista para o mar. E de aos 24 anos já ter sabido o que é ser tão feliz na vida.

Com muito calor, e um tanto de inveja que esse livro e essa escrita me suscitou, eu desejo feliz natal para todos vocês. E também desejo a dádiva da existência, o gosto da hora que passa, a alegria do natal do verão - Meus Deus, tempera ele um pouco, please - se for na casa com vista para o mar é melhor ainda. Mas isso é um pequeno luxo. O verdadeiro luxo é amar a vida. É esse que desejo a todos vocês. E alegria, muita alegria.

domingo, 23 de outubro de 2011

Uma música para a lagoa

Domingo lindo, Lagoa do Itatiaia repleta de pássaros, gente e cachorros. Os cachorros nadam, as pessoas fazem pequenique e caminham e os pássaros fazem o que querem. Garças, bem-te-vis e quero-queros por tudo. Os nomes desses últimos pássaros se prestam bem para a poesia. Celito Espíndola caminha sempre na Lagoa. Hoje passou olhando para tudo que é lugar, com seu ponto de música no ouvido e o escutei dizer "domingo lindo". E eu me intrometi: faz uma música então Celito! Ele respondeu: vou fazer. Já digo para vocês todos que fiquem sabendo da dívida de Celito. Não comigo, mas com a Lagoa do Itatiaia.

domingo, 9 de outubro de 2011

Todo o mundo

Escrevendo um livro - ou qualquer coisa parecida, talvez um conto, ou só um pequeno texto. Ainda não sei - sobre minhas viagens.
Eis um trecho abaixo......


“Batendo pernas/correr mundo afora/ Vitrine do mundo/ lugares à mão”. Assim começa a letra da música Coração de todo mundo, de Oswaldo Montenegro e Raimundo Costa. Escutei esta música pela primeira vez no disco ainda de vinil, na casa de C.. E gostei tanto que, naquele momento, ele me deu seu disco. Esse forasteiro, em minha vida e na cidade, já gostava mais de Montenegro do que eu. Pelo menos até eu ter escutado esta música pela primeira vez.


À época ainda não tinha corrido o mundo, não conhecia as jóias de Itália, os mares de Espanha, os becos escuros da velha Paris. O mundo para mim era menor, mais familiar. Mais de duas décadas se passaram, fiz muitas viagens, estudei algumas línguas e conversei com pessoas. Fiz amigos em terras longínquas e aprendi que o mais importante em uma viagem são as pessoas que conhecemos, o que conhecemos sobre suas histórias. As pessoas e a história fazem um país.

Nessa música, Coração de todo mundo, que escutei pela primeira vez na casa desse homem, encontrei um desejo que determinou meus caminhos. E encontrei-me com a estrangeira que era para mim mesma. C. apresentou-me isso e também me apresentou essa música.

Agora, mais de vinte anos depois, conto histórias que vivi em lugares distantes de casa. Mais, ainda: fiz do mundo minha casa e fui estrangeira em todos os lugares.

Perdi-me em ruelas do Complexo do Castelo, na Cidade Velha, em Praga; visitei Campos de Concentração; levantei de madrugada, andando pelas ruas de Granada para comprar ingressos para entrar em Alhambra; amei a Cracóvia e sua gente. Odiei Viena e sua gente. Quase apanhei de uma velhinha alemã que achou que seu marido queria me seguir. Em Sevilha comprei tantos souvenirs. Guardo fotografias, desenhos antigos e reproduções da Torre do Ouro pela casa. Tudo para trazer um pouco da cidade comigo, cidade amada de Garcia Lorca, que também trago até hoje em meu coração. Entre Gand e Bruxelas, passei uma primavera. Nela, na passagem de um dia para outro, foram se esvaindo alguns dos dias mais felizes de minha vida. E amei Paris à primeira vista. E a segunda também. E toda vez. Cada vez mais.

Todo o mundo é o que o artista consegue alcançar. Uma bela música que vai da Itália a Xangai, dos mares de Espanha a Paris e a todo lugar. Só um poeta pode cobrir esse infindável território e colocá-lo na palma de sua mão. Para uma viajante, todo o mundo é uma ilusão, pois a cada passo que dá o mundo fica maior, as distâncias maiores e os lugares a conhecer infindáveis. Só pela poesia conhecer todo o mundo é possível, mas mantenho para este livro este título ambicioso, para marcar a ilusão da viajante que espera encontrar um lugar, estrangeiro e familiar onde possa viver. Enquanto esse lugar não chega – se ele chegar - mantêm-se em sua condição errática.

Cracóvia




Foto: Alba Abreu Lima

Na Cracóvia, tudo lembra João Paulo II. E para os psicanalistas, lembra a piada judaica contada por Freud. Um sujeito diz que vai a uma cidade e vai mesmo para ela, mas o outro lhe atribui uma má fé, que ele está escondendo que irá a Cracóvia. Cracóvia, bela, medieval, preservada dos bombardeios. Linda, linda. De todos os ângulos, dentro do Castelo de Wawel, um espetáculo de vista. Que saudade!

domingo, 25 de setembro de 2011

Vagas estrelas da Ursa

Em Volterra foi ambientado a saga Crepúsculo – descubro isso agora - mas também nela, Luchino Visconti filmou em 1965, Vagas estrelas da Ursa. Belíssimo filme de Visconti. Nele, Claudia Cardinale é Sandra, casada com um americano, vivendo em Genebra, está de volta a seu país, a Itália, a essa pequena cidade, província de Pisa, na Toscana, para uma homenagem a seu pai, que foi morto no Campo de Concentração de Auschwitz e, também, para reviver a infância e a adolescência – incestuosa? – com o irmão Gianni.


É um filme sobre a memória, sobre o inconsciente, o que há por baixo do aparente, um passado enterrado que vem à tona. Por isso Volterra serve bem como metáfora, pois ela está desmoronando e, atrás das marcas do Império Romano, aparece o período etrusco. Na entrada da cidade, Sandra conta a seu marido Andrew que as marcas dos etruscos, esse povo que estava antes, estão por tudo. Na casa-castelo onde chegam, em que Sandra e seu irmão Gianni viveram uma infância tão densa, repleta de mistérios, os vasos etruscos estão pela casa. Assim, Visconti usa Volterra como Freud usa Pompéia, para dizer que por trás do esquecido, estão as ruínas do passado, prontas para serem resgatadas. Pompéia e Volterra são o passado, o inconsciente, o infantil. Tanto é o infantil que o nome do filme é o começo do poema I racconti (As lembranças) de Giuseppe Lampedusa: Vagas estrelas da Ursa, eu não contava/Voltar ao hábito de vos olhar/Sobre o pátrio jardim esplendoroso/E conversar convosco das janelas/ Deste refúgio onde morei menino/E vi o fim das minhas alegrias.

O filme é sobre isso: o fim das alegrias da infância. O exílio da infância. Assim Freud escreve em A Interpretação dos Sonhos: tantas histórias de sujeitos exilados – ele comenta Ulisses – refletem esse exílio que é o da infância. A felicidade que se sentiu quando criança nunca mais se encontra. É esse o verdadeiro paraíso perdido do humano: seu infantil. Esse é o discurso de Gianni, que escreveu um romance para falar de sua infância, ele e a irmã Sandra, da alegria que sentia e perdeu. Nesse romance escreve uma cena incestuosa com a irmã, do desejo, da sede que sentia pelo corpo dela. Ela não aceita que ele publique o livro, pois as pessoas da cidade já achavam que eles tinham uma ligação muito forte e lendo o livro vão achar que realmente isso aconteceu e não foi apenas ficção. Parece pelo diálogo dos dois que essa é a ficção de Gianni com relação a Sandra, mas não a dela com ele. Depois da conversa com a irmã, Gianni encontra um título para seu livro: o poema de Giacomo Leopardi, Vagas estrelas da Ursa. Por que Visconti deixa esse lapso no filme? Não é de Leopardi e sim de Lampedusa. E ele devia saber muito bem isso, pois dois anos antes já tinha filmado um livro de Lampedusa, e exatamente com Claudia Cardinale como atriz: O Leopardo.

O drama de Sandra é outro: ela não perdoou a mãe e o amante, e todos da cidade, pois acha que todos podem ter sido os delatores de seu pai, que entregaram seu pai para os nazistas. Reencontrar seu passado em Volterra é reencontrar-se com sua raça, com seu sangue judeu, com seu pai.

Seu marido, que não gostou nada dessa vida da esposa, de tudo isso de seu passado, que ele não faz parte, quer tirá-la de Volterra o quanto antes, e que ela esqueça tudo, apague essas histórias. Ela diz: não esqueço e não perdôo ninguém.

Gianni se afundou em seu desejo incestuoso pela irmã, pela infância que se foi; sua mãe enlouqueceu; o pai morreu em Auschwitz; o marido americano quer uma mulher toda dele, transparente, não aceita os meandros da vida de Sandra que ela quer manter guardados e, assim, vai embora. E fica ela lá, só, na colina de uma cidade que aos poucos desaba, enredada em sua solidão, a manter a ética da memória. Tal como uma Antígona.

domingo, 11 de setembro de 2011

O verão há de vir

Fui a Corumbá na quinta-feira para um evento do Protagonismo Juvenil, convidada pela psicóloga Anny Funes, organizado pela Secretaria de Assistência Social da cidade (Secretário Haroldo e Gerente de Políticas Públicas, Adelma Galeano) e apoiado pelo CRP 14.

Esperava um vôo tranqüilo – sempre esperamos – e não foi nada fácil enfrentar uma ventania insuportável em um avião pequeno. Fui preparada para 45 graus e fez 17, tinha na mala vestidos bonitos, mas só pude andar com a única calça jeans que levei. E a camiseta de manga comprida que tive que comprar, e também o xale boliviano que comprei na porta do hotel. E vestida assim para a conferência de abertura sobre a ética e a violência na juventude, falei para quase trezentos adolescentes.

E falando sobre a violência, disse aos jovens que menos violento é quem sabe quem é e o que quer para sua vida. Foi a forma, sem teorizar lacanianamente, que encontrei de dizer que o entusiasmo virá da relação com o desejo que os habita. E conclui com Cartas a um jovem poeta, de Rainer Maria Rilke - ando lendo e escrevendo sobre Rilke nestes meses. Preparando-me para falar para tantos jovens, muitos deles com medidas sócio-educativas, tendo já transgressões à lei em sua história, passei dias e dias sem uma idéia do que iria falar: o que dizer que pudesse tocá-los sem ser um discurso moralista, superegóico, coisa tão freqüente? Como encontrar uma saída para esse impasse? Achei quando reencontrei a adolescente que eu fui, que lia um pedacinho das cartas de Rilke a Franz Kappus todos os dias.

Para os que não sabem a história dessas cartas, conto-a, para os demais, relembro-a: Franz Kappus tinha 19 anos em 1903, estava estudando em uma escola militar, que ele não gostava e, sentado em um banco da escola, passa seu professor, pergunta o que ele está lendo e ao ver o livro de poemas de Rilke, conta que Rilke tinha sido aluno daquela escola e não gostava de estar lá, queria ser poeta. O professor fica contente de saber que o ex-aluno encontrou seu caminho. Assim, Kappus escreve ao poeta e pede conselhos. Procura algo, uma determinação, uma palavra de alguém que já deu um passo a mais em seu próprio destino para que ele encontre o seu, também na poesia. E Rilke lhe responde. Logo na primeira carta – trocarão várias durante cinco anos – escreve uma das partes mais bonitas. Nela, em meus 15 anos, sentia que Rilke também escrevia para mim, me dizendo para ter paciência, como a árvore que espera sua seiva amadurecer. "O verão há de vir, mas só vem para aqueles que sabem esperar, tão sossegados como se tivessem à frente a eternidade. Aprendo todos os dias, à custa de sofrimentos que abençôo: paciência é tudo".

Assim, fui a Corumbá para dizer aos jovens que tivessem paciência, e para escutá-los. E escutá-los dizer do que mais precisam: serem escutados. E que a paciência também esteja com o outro, adulto, tão apressado com tudo nesses tempos tão curtos. De idéias, de tempo, de esperanças.

E assim deixei Corumbá já com um convite para voltar em alguns meses. Mesmo mal vestida, tudo correu perfeitamente bem.

Andréa Brunetto/ Campo Grande, 11 de setembro de 2011

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Mais um pedacinho do livro....

Os personagens de Pamuk são Ulisses modernos que vivem errantes no estrangeiro até o retorno a sua Ítaca natal. O autor ambienta suas histórias no momento de retorno à pátria. Por exemplo Ka: em solo pátrio reencontra a inspiração, mas é tido como um estrangeiro por seus próprios compatriotas.


Ulisses, ou Odisseu em grego, aparece no final da Ilíada, mas é na Odisséia que é o herói principal. Entre a queda de Tróia e o retorno para Ítaca, sua pátria, passou vinte anos errante e viveu muitas aventuras. Escapando de um naufrágio, é salvo por Nausicaa, filha de Alcino, rei dos feácios. Andando pela cidade, a deusa Palas Atena, disfarçada de uma donzela diz-lhe como são os nativos do lugar: “Os moradores daqui não recebem nenhum forasteiro de boa mente, nem dão acolhida aos que vêm de fora”.

Ela pede para ele lembrar que é um estrangeiro, que ande sem olhar para nada, sem perguntar nada.

domingo, 26 de junho de 2011

Sobre amores e exílios: na fronteira da psicanálise com a literatura

Terminei há 5 minutos de escrever esse livro que parecia um trabalho de Sísifo. Terminei, terminei. Nem acredito, grande alegria.
O livro "As cidades de Freud" que Alba me sugeriu comprar me ajudou bastante. E o seminário que dei em Fortaleza semana passada foi fundamental. Falando para meus colegas da conferência de Freud intitulada "A terapia analítica" todo o final do último capítulo e a conclusão me veio à cabeça. No retorno para Campo Grande voltei com o livro organizado mentalmente. Agora terminei de pôr o ponto final.
É "só" procurar uma editora. Se alguma aceitar.....
Mas o importante foi ter terminado, concluído essas frases que insistiam em vir à tona e que não conseguia organizá-las.
Alegria e alívio.
Freud diz em uma carta que estar alegre é tudo.
Escuto esses fogos nesse domingo de tarde, deve ser de um jogo de futebol. Um pouco deles são meus (brincadeira, mas poderiam ser).

terça-feira, 7 de junho de 2011

Exílio de um amor, de um país, de uma vida

“Ó casa, ó pátria nossa! Que possamos não conhecer
nunca o exílio nem arrastar na miséria uma penosa existência,
de todas as dores a mais digna de piedade! Ah! Que a morte, sim,
a morte nos golpeie antes de vermos tal dia.
Não existe maior desgraça do que a de sermos
privados da terra natal.
Medéia, Eurípedes



As personagens de Salman Rushdie, qualquer obra que escolhamos para debater, são sempre homens “sem lar, em busca de um lugar no mundo”. Poderíamos encontrar nisso um desterro de seu autor? Não podemos interpretar a obra pela vida do autor. Só ele próprio tem o direito de fazê-lo. E o faz no início de seu livro Pátrias Imaginárias: “Talvez seja verdade que os escritores na minha posição, exilados, emigrantes ou expatriados vivam obcecados por um sentimento de perda, uma necessidade de recuperar o passado, de olhar para trás, mesmo correndo o risco de se transformarem em estátuas de sal”.

Comentarei o romance O chão que ela pisa. Nele, o personagem faz o caminho do oriente para o ocidente, mas também é um deslocado. “Não passa um dia em que eu não pense na Índia, que eu não relembre cenas da minha infância”.

Toda a trama do romance é tecida em analogia com a lenda do Orfeu. Ormus Cama, o cantor das harmonias, é um Orfeu à procura de sua Eurídice. Ele perde sua amada Vina durante um terremoto. Nele, ela submerge às profundezas da terra. E a partir de então, sem sua Eurídice, o Ocidente é insuportável para viver. Rushdie usa uma fala de Medéia, na peça de Eurípedes – citada na epígrafe desse capítulo – para mostrar ao leitor como é preferível a morte a viver no exílio. E nessa obra se misturam os exílios: de viver sem o objeto amado sem a pátria e sem a vida. Enfim, viver sem o objeto amado é a morte.

Ao mesmo tempo em que Ormus é Orfeu, procurando sua Vina/Eurídice, é alguém que submergiu nessa “América-Orpheum”, “que olha para ele e o deixa para trás, para morrer”. Vivendo nessa “boa vida de green card” é uma Eurídice que saiu de sua terra e queria ser amado pelos gringos. Mas isso não lhe adiantou muito: “Transformei-me num estrangeiro. Apesar de todas as minhas vantagens e privilégios de nascimento, de toda a minha aptidão profissional, em virtude de haver abandonado meu lugar de origem transformei-me em membro honorário das hordas de desprotegidos da Terra”.

O narrador de O chão que ela pisa se identifica e se funde ao personagem Ormus: os dois anseiam pela ressurreição, pela volta da amada do mundo dos mortos. Vina, a Eurídice de Ormus, engolida pela primeira vez por uma força sísmica: “essa força sísmica também atende pelo nome de amor”. Nesse terremoto, força sísmica, chão do romance de Salman Rushdie, o amor e a morte estão fundidos, como duas faces de uma mesma moeda. E as duas portam a face do exílio de sua Índia amada, a terra da infância.

Um homem que mantêm a memória do amor

Sofia, personagem de O passado, romance de Alan Pauls, comanda o grupo das mulheres que amam demais – e Alan Pauls mostra, a partir dela, que a religião das mulheres é o amor – e empreende sua tentativa de fazer uma memória nos homens. Com Orfeu é o contrário: ele mantém a memória e a desmemoriada é ela, Eurídice, que habita o “mundo do declínio”. Nesse mito, a morte e o apagamento do amor são o mesmo. Por isso, creio, Orfeu é o sonho de toda mulher: ele não esquece sua amada, não a substitui. Ela lhe é única. Depois que a perdeu, não quis nenhuma outra e suportou ser morto, desmembrado por todas as outras mulheres, que vieram depois dela e que ele não as quis. Nenhuma era ela: “Pisa de leve essa estrada sombria, desce ao fundo devagar, que vou te seguir daqui a um dia, e não descanso até te encontrar.”

Diferente de Don Juan, que procura A Mulher em todas as mulheres. Ainda que seja uma a uma, apenas durante um tempo cada uma é única, mas só durante um curto tempo, pois nenhuma é A Mulher. E depois de curto tempo, em que a imagem de felicidade foi desfeita – um tempo feliz é sempre curto para o amante que fica a esperar que o outro volte - D. Juan retorna suas buscas. Orfeu a encontrou em Euridice. Seu esforço de trazer à vida essa mulher o coloca como um ser para a morte e nos mostra que um dos nomes da Mulher é a morte.

O amor é elogio ao ser

Eurídice, à medida que desliza cada vez mais fundo no abismo, esquece de Orfeu, relembra Rushdie em seu romance. E traz os Sonetos a Orfeu, de Rainer Maria Rilke para nos mostrar isso. “..ao penetrar o reino do nada, rapidamente se esquece da luz. A escuridão mancha seus olhos, seu coração. Quando Hermes fala de Orfeu, essa Eurídice responde, terrível: Quem?”

Matar é um aspecto de nossa dor errante, escreve Rilke em um de seus Sonetos a Orfeu. Neles, Orfeu é a memória, é uma vida que anseia pela mudança, pela transformação, mas que sabe que todo tempo feliz é “filho ou neto da separação” e que toda mudança acarreta perda.

Orfeu é aquele que sabe da condição do não-ser. É esse seu “íntimo poder”. Eurídice já se foi, apagou-se, perdeu a memória. E o que é o amor sem memória? Resto obscuro, que perdeu suas marcas pelo caminho. Um Nada. Assim, resta a Orfeu dizer do indizível: “Mas dizer o indizível só é possível ao cantor, num nível que só aos Deuses é audível”. Aqui tenho que discordar de Rilke: também o poeta diz desse indizível. E no caso dele próprio, beirando a perfeição. E assim, ele próprio, Rilke/poeta/Orfeu, traça suas lembranças de um amor: uma primavera na Rússia, uma viagem do passado, da qual nunca esqueceu. Ele não diz o nome, mas sabemos bem quem foi sua Eurídice.

No amor de Orfeu por Eurídice, mesmo nesse amor de um homem para quem ela é única, não uma mulher entre outras, mas A Mulher, tudo termina mal. Sem sua amada, que habita o esquecimento – morte para o amor - “tudo é distância. Não se fecha a circunferência”.

Rilke/Rushdie, Orfeus a manterem a memória de um desterrado amor do passado, conduzem suas obras para o exílio que é viver sem a infância: lembrar todos os dias da infância na Índia, no caso de Rushdie. E Rilke escreve em seus sonetos: “Somos mesmo de fraqueza aterradora, como o destino quer nos fazer crer? Será que a infância, intensa e promissora, mais tarde, na raiz, vai fenecer?”

E termino com outro poeta, esse brasileiro, que também se encantou com o mito de Orfeu, e escreveu sua versão dele, Vinícius de Moraes: “Ah, minha Eurídice. Meu verso, meu silêncio, minha música. Nunca fujas de mim. Sem ti, sou nada. Sou coisa sem razão, jogada, sou pedra rolada. Orfeu menos Eurídice: coisa incompreensível! A existência sem ti é como olhar para um relógio. Só com o ponteiro dos minutos. Tu és a hora, és o que dá sentido. E direção ao tempo, minha amiga mais querida!”

domingo, 29 de maio de 2011

Variações Freudianas I, o sintoma

Domingo assisti a peça de Antonio Quinet, Variações Freudianas. Nela, um homem e uma mulher expõem seus dramas. O dela, uma cena dos quinze anos, que repete outra, infantil, fundamental, em que a palavra "sai” é marcada. E presa a essa palavra, a mulher está sempre deslocada, de fora, sem consistência. Ele, o homem, dividido entre seu desejo e o vaticínio paterno: pague o que eu não paguei. Pagar ou não pagar, eis a questão é a duvida que diz seu sintoma, mas também define seu ser. Buscando uma resposta para a dúvida e para sua obsessão com ratos, chega a Viena e procura Freud.


Para os dois, o homem e a mulher, os sintomas fazem sofrer, mas também revelam um gozo, e com ele, no inconsciente, são felizes. Essa "felicidade" aponta para outra cena, a do inconsciente. Outra cena é, em alemão, Schauplatz, a praça do olhar, nos lembra o autor.

Ela, encenando nessa praça, fantasia com Marcelo Mastroianni - e em êxtase repete Marcelo, Marcelo, Marcelo - e aparece outra cena, na tela atrás do palco: Mastroianni, lindo como nunca, contemplando aquele exagero de mulher que é Anita Ekberg, em La Dolce Vitta. É a histérica, de fora, que olha Marcelo, que olha Anita, que está em êxtase por estar na Itália. Aliás, como Stendhal, também referido na peça. E, podemos dizer, também como Freud ficou quando lá estava.

E eis que em determinado momento, Antonio Quinet chega perto do palco, se aproxima mais e entra na cena. Por que vocês minhas colegas psicanalistas cariocas não me preveniram que isso aconteceria? Tomei um susto. E Quinet, diretor-autor-ator, intepreta Dr Quinet, o psicanalista. E além de tudo, é uma voz, que nos vem de algum lugar, recitando Freud e Lacan.

E temos de dividir a atenção com o homem, a mulher e essa outra cena, pois ele anda pelo palco, dá um seminário, escreve os matemas lacanianos no quadro, atende o homem e a mulher e corta a sessão: ficamos por aqui.

Mas queria expressar minha preferência: dentre todos os atores que aparecem para deleite de nosso olhar, o melhor é Ilya São Paulo. De longe melhor que Mastroianni, que também está lá, em outra cena. Mas mesmo com Mastroianni presente, ele consegue fazer-nos desviar o olhar de Marcelo (coisa dificil, bem difícil), pois é um ator tão espetacular interpretando o Homem dos Ratos, que só temos olhar para ele. Ele dá seu corpo e seu ser para ser, por uma hora o homem obsedado pelos ratos. E pelo pai.

Seus olhos e seu rosto mostram a agonia de um sujeito perseguido por uma dúvida atroz.

A peça, mais do que ser uma peça da política da psicanálise, é uma apologia do olhar, em que alguém sempre olha para alguém que olha para mais além. Outro, outra, outra cena, outro lugar, outra fantasia, que desvela e vela um outro tempo. É isso a peça, mas não só isso, pois também é Outra coisa.

Rio de Janeiro, 23 de maio de 2011

domingo, 15 de maio de 2011

Uma Polônia surpreendente

Cheguei a Varsóvia ao meio-dia de uma terça-feira de sol. E então, pela primeira vez, a vi tal uma Fênix, renascida das cinzas, com sol, calor e sob o signo de uma cordialidade impressionante de seu povo. Como já disse anteriormente, as pessoas fazem uma cidade - creio que o contrário não acontece - e os poloneses é que fazem de Varsóvia o que ela é hoje.
Andei com minhas amigas pelas ruas novas, reconstruídas, e fomos ao principal a ser visto: o gueto. No lugar onde foi o gueto há um memorial e está sendo construído um museu para contar a história do holocausto. Passamos um dia e meio e partimos.
 A língua é dificílima - embora depois de uma semana eu já estivesse falando algumas frases. Só algumas, poucas, minguadas - mas tem uma sonoridade bonita, musical.
Mas foi em Cracóvia que o amor pela Polônia, sua gente, se intensificou. A piada que Freud nos conta pode ser entendida perfeitamente após se conhecer a cidade: um sujeito que diz que vai a determinado lugar e diz o nome, mas o outro pensa que ele vai a Cracóvia, mas está escondendo isso. Cracóvia é uma cidade para se ir. Muitas vezes, de novo, sempre. E não estou fazendo como o sujeito da piada que recalca a cidade para manter esse prazer só para ele. Eu digo abertamente: vão, vão, vão.
Pequena, antiguíssima, intocada pelos bombardeios, com construções lindas, muralhas medievais e um povo cordial, simpático, gentil. E muito bonito, também. Quando eu cometia meus sacrilégios de tentar falar polonês, riam, riam, riam, achavam graça e ficavam muito contentes da tentativa que eu fazia de falar o idioma. E me ajudavam. Sempre.
Todos são um pouco como João Paulo II, diz minha amiga Alba Abreu. Aliás, assistimos missa no sábado de aleluia na igreja central da praça, onde Carol Voitjla, o antigo papa, rezava suas missas. Ele é a imagem onipresente pela cidade toda.
O polonês é fervoroso, filas e filas para se confessarem, igrejas lotadas. Nem na Itália existe isso. Acho que em nenhum lugar...
Voltando para casa, estou relendo o livro Dos Ciudades, de Adam Zagajewski, autor ucraniano, imigrante que desde criança, viveu na Polônia, mais precisamente, na Cracóvia. Entre ´Liev, sua cidade natal, e Gliwice, primeira cidade polonesa em que viveu e entre a Cracóvia, em que passou anos, e a Paris na qual se exilou, fugindo do regime comunista, escreveu este livro. E depois de anos, retorna a Cracóvia e escreve sobre ela. Cidade explendorosa, mas provinciana, pequena e grande, ao mesmo tempo. Coloco abaixo apenas um trecho para encerrar essa minha declaração de amor pela Polônia, seu povo, sua lingua. Queria tanto ter determinação para aprender essa lingua.....

Castelo de Wawel, Cracóvia - Foto de Alba Abreu Lima


"Sí, en Cracovia, más de una cosa me pareció pequeña y provinciana, pobre y dejada de la mano de Dios. La sala del teatro Stary, donde había experimentado las vivencias teatrales más intensas, de pronto se volvió pequeña. En mis recuerdos era enorme, mientras que en realidad es diminuta.

Me paseé por Cracovia, comprobando lo mucho que había menguado. Pero, andando el tiempo, en el momento menos esperado, redescubrí mi antigua admiracíon por aquella ciudad regia. Y deambulaba por Cracovia, acusando a un tiempo su pequeñez y su grandeza, su provincianismo y su esplendor, sus miserias y sus tesoros, su vulgaridad y su excepcionalidad. Sólo de una cosa no había duda: los árboles de Planty habían crecido. Mi admiracíon estaba impregnada de escepticismo, pero los árboles se habían vuelto todavía más majestuosos, más reales." Dos Ciudades, Adam Zagajewski

sábado, 30 de abril de 2011

Em tempos escuros nos ajudam aqueles que souberam andar na noite

E se foi Ernesto Sábato. Morreu para não fazer um século. Data pesada para esse homem que nasceu para batalhar com a morte? Nasceu e sua mãe o batizou de Ernesto, em homenagem ao pequeno Ernestito vindo antes e que morreu. E depois vem ele, a ocupar o lugar do Ernestito que se foi cedo e do qual ela nunca se esqueceu.


Dessa batalha pessoal - que ele nos contou em "Antes del fin" - fez as mais belas frases que alguém já escreveu sobre a vida, sobre a energia necessária para seguir adiante.

E escreveu sobre o fim de sua vida, despedindo-se. Há uns vinte anos atrás. E depois há cerca de dez anos escreveu os diários de sua velhice, novamente se despedindo. Mas resolveu viver mais uma década.

Em "Antes del fin", livro escrito para os jovens que vivem nesses tempos sombrios, nos dá vários exemplos de que o ser humano só cabe na utopia. E apresenta vários exemplos de homens que redimiram a humanidade porque resgataram a esperança e que, através de sua morte, nos entregaram o valor supremo da vida, "mostrando-nos que o obstáculo não impede a história". "Sólos quienes sean capaces de encarnar la utopía serán aptos para el combate decisivo, el de recuperar cuanto de humanidad hayamos perdido".

Confessa que também ele quis fugir do mundo, mas os outros o impediram, as cartas, as palavras nas ruas, o desamparo.

Seu livro "España en los diarios de mi vejez" é umas das coisas mais lindas que já li. E também nele, na sua apresentação, coloca a utopia como o único caminho. E nesse caso a nomeia: "a recuperação da Argentina, este renascer das possibilidades que se vivem hoje, e que mostram, uma vez mais, que o que pareceu impossível está encontrando seus sulcos".

Para ele, a verdadeira solidariedade é o encontro com o outro, tão difícil "nesse mundo acéfalo que abole todas as diferenças". E nesse encontro com o outro, também encontramos um sentido que nos colocará acima da fatalidade da história". Utópico ele? E o que seria o ser humano sem utopia? Desamparado, acéfalo, obscuro. Um nada.
Estamos todos, hoje, um pouco mais desamparados, sem sua escrita que sabia tão bem andar na noite. Sobretudo a Argentina.

terça-feira, 26 de abril de 2011

Budapeste, uma antipatia a primeira vista

Hoje a tarde deixo budapeste e pelo que sinto no momento eh para nao mais voltar. Cheguei aqui no domingo pela manha e nas primeiras horas ja me desgostei dela.
Eh repleta de monumentos e predios grandiosos. Um pouco como Viena. Mas escassa em arte, igreja douradas demais, cheias de ouro, mas sem arte. Cidade sem cortesia, sem limpeza nas ruas, sem acolhimento ao estrangeiro, sem sorrisos das pessoas.
Acho que uma cidade eh feita por suas pessoas e eh na convivencia com elas que fica guardada a cidade na memoria. Acho que eh por isso que todo mundo gosta do Brasil: menos por suas praias e belezas naturais, do que pelo acolhimento, alegria e simpatia de seu povo.
E aqui nao tem nada disso. Alem de faltar obras de artes nas igrejas, limpezas nas ruas, abertura para os estrangeiros, comida gostosa e gente bonita, eles sao arrogantes e se acham. Eles tem um ar arrogante e uma falta de paciencia com quem nao fala a lingua deles.
Estou lendo um livro sobre o levante de 1956, quando tentaram pela primeira vez se livrarem dos russos e sei do horror que passaram sob o jugo comunistas. Alias, o autor, filho de hungaros, conta que para os hungaros, eles viveram tres horrores: o primeiro foi em 1300 e alguma coisa, o dominio dos mongois, uns dois seculos depois passaram 150 anos sob o domininio turco e o terceiro foi com a entrada dos russos no final da II guerra. A cidade foi saqueada, milhares de mulheres estupradas repetidamente pelo soldados russos, assassinatos.
Isso pode ter dado essa prevencao ao outro, ao estrangeiro, ao que vem de fora?

segunda-feira, 25 de abril de 2011

Ser ou nao ser culpada, eis a questao. Sobre uma visita a Auschwitz

Foto de Alba Abreu Lima

Foto de Carla Storino
Nessa sexta feira passada, sexta-feira da paixao, estive em Auschwitz com minhas amigas Alba Abreu Lima e Carla Storino. No trem que pegamos na Cracovia, em direcao a Oswiecim, cidade do interior da Polonia onde foram construidos os Campos de Concentracao e exterminio,  já escutávamos as várias línguas do mundo.
Os poloneses fazem questao de contar, nas placas e guias que comprei la, que todas as seis aldeias, Oswiecim e arredores,  que eles, poloneses, foram transformados em prisioneiros: 60 % eram judeus e já ficaram prisioneiros do campo que ajudaram a construir e os outros 40% nao judeus continuaram prisioneiros para trabalhos forçados dos nazistas. E só depois judeus - e tambem ciganos, presos politicos, e todos os que divergiram do regime  - comecaram a chegar ao campo.
Comecamos a visita de forma errada, mas isso acabou nos dando uma logica diferente, ao final. A visita comeca com Auschwitz I, onde tem o museu e os campos de trabalho, com várias construções que foram oficinas. Em Auschwitz II- Birkenau é que eram os fornos; em Auschwitz III- Monowitz tambem. Enfim, na estação de trem, tomamos um caminho errado e perdemos de pegar o ônibus que percorria três quilometros até Auschwitz I. Assim, chegamos direto ao lugar dos fornos crematórios. Em Birkenau, os fornos crematórios foram destruídos pelos nazistas no momento final, tentando apagar a historia. Mas é simplesmente horrível chegar lá. Na entrada, os trilhos do trem se difurcam em três e as três direções vão dar na mesma: a morte. No lugar onde foram os crematórios estão as construções derrubadas, ruínas, pó e destroços da barbárie. A memória do acontecido está por tudo: nas fotos das pessoas, nas cifras dos numeros de mortos,  nas placas de homenagens.
Mas o pior veio depois, em Auschwitz I, o museu. Entrando lá, de início, os judeus nao deviam achar que morreriam. Acho que essa era uma constatação a posteriori, no dia a dia das atrocidades.
Digo isso porque na entrada tem a placa tão conhecida, pois estava em todos os campos, "o trabalho liberta", e tem arvores e muitos blocos, bem construidos, e calcadas e flores - pelo menos agora, na primavera, nao é feio. O horror é quando voce entra, vê as fotos, a história contada, os objetos pessoais, as malas com objetos pessoais dos que nunca voltaram, os cabelos das mulheres. E sobretudo o horror feito com as crianças.
Em Birkenau, ao lado das ruínas dos fornos destruídos, tem varias placas, cada uma em um idioma para que nunca esquecamos. Tem uma em português. Mas foi na placa em francês que fiz meus questionamentos. Nela tinha uma coroa de flores colocada pelo grupo de teatro de Aumonerie e pela Escola de Musica de Chateaudun. E, na placa, eles escreveram assim  em frances: tant qu il y aura des etoiles.
É a letra de uma musica, que teria mais ou menos o sentido em português: mas haverá estrelas. Por que essa letra exatamente aqui, fiquei pensando. Por que achar que diante desse real, dessa barbárie inominavel, a contemplação da natureza ameniza a dor? Por que as estrelas? Transcrevo um pedaco da letra da música ao final.
Andando sobre o sol ardente, lembrava de Elie Wiesel, Primo Levi, Jorge Semprun, Simone Veil, Viktor Frankl, Anne Frank, e sobretudo Imre Kértesz, meu escritor preferido. Alguns destes sobreviveram a Auschwitz, e outros pereceram. Ou em Auschwitz, como Anne Frank, ou nao conseguiram viver depois disso e se mataram, como Primo Levi.
Alias, Kértesz faz uma lista de todos que se suicidaram depois de sobreviverem a Auschwitz.
Segundo ele, com exceção dos que pereceram em Auschwitz, todos os demais são culpados pela sua existência. Ele mesmo, que foi para la muito jovem, passou a vida se culpando por ter sobrevivido. So recentemente mudou o teor de seus escritos. Na verdade, estou escrevendo um livro sobre isso. Falta um capitulo e estava aqui em busca de uma inspiracao para as conclusões.
Mas tambem pensava em Hannah Arendt, cuja teoria contradiz Kértesz: a culpa e individual, mesmo a responsabilidade assim o é. E dizer somos todos culpados só resulta em ninguém é culpado.
Não me sinto culpada por Auschwitz, porém somos culpados e responsáveis por cada preconceito, segregação, sentimento de inferioridade mal entendido, mal elaborado. É essa a responsabilidade de cada sujeito para que a segregação ao estrangeiro, ao vizinho que criticou, que invejou, que falou mal, nao tome proporcoes gigantescas.
Temos muito a aprender. Sempre.
Saí de Auschwitz I com uma grande curiosidade e uma pergunta, que deixo em aberto. Na entrada tinha pregada no portao um fitinha com um numero: 36377. Entendi como o número de alguém que sobreviveu ou pereceu no campo. Era uma homenagem. Em um dos pavilhoes, tinha livros e livros com os números dos prisioneiros e seus nomes. Fiquei procurando o 36377 e nao encontrei. Aliás, desisti depois do primeiro livro. Quem é o 36377? Por que nao se nomear? Por que manter esse número que foi dado pelo outro, o opressor? Eu nao respondo agora com Lacan, deixo para falar disso em outro lugar. Vou responder com uma cronica de Clarice Lispector: nao somos um numero, o ser humano é maior, é inexprimivel até mesmo em palavras, quanto mais em números.
E termino com um pouco mais da musica Tant qu il y aura des etoiles.

Escrevo isso porque Charlotte me disse para atualizar meu blog com as notícias dessa viagem. Agradeçoo a ela essa chamada.


"Vivemos com a barriga vazia e em uma rua sem fim...morremos de frio e de fome. Mas apesar de tudo temos as nossas riquezas, esse vento doce, essa noite de primavera. Tudo isso é nosso. Aqui com as estrelas. Seremos sempre felizes. Enquanto há estrelas sob as abóbadas do céu". Letra e música de Tino Rossi

Domingo de páscoa, Budapeste, 24 de abril de 2011

segunda-feira, 21 de março de 2011

A situação da Argélia, a tortura e a falta de um verão

Caros, leiam um artigo do Caderno Ilustríssima de hoje da Folha de São Paulo chamado "Morrer em fogo baixo". Foi escrito pelo argelino Smail Hadj-Ali. Hoje ele é professor da Universidade francesa de Rennes. Nesse artigo ele conta a situação da Argélia e fala de seu pai que foi preso político por quinze anos e relatou em um livro o horror da tortura que escutava, presenciava E, claro, deve ter sido submetido também. Bachir Ali, o pai, escreveu na prisão: "uma causa está perdida assim que ela é defendida pela tortura". Nesse artigo, Smail escreve: "Recusando-se a responder à barbárie com a barbárie, ele dirá, num poema escrito na prisão: "Juro sobre a angústia lenta das mulheres/Que baniremos a tortura/Que os torturadores não serão torturados".
Dias atrás assisti um episódio de um quase novo seriado americano (está começando a segunda temporada no canal Liv) chamado Blue Bloods. Tendo a frente do elenco Tom Selleck, do saudoso seriado Magnum, ele é o chefe da policia de Nova York e o patriarca de uma familia de policiais. Seu filho, detetive respeitado, em uma cena, tortura um assassino, para que ele confesse onde está a garota raptada, que é salva a tempo. Tem outros momentos desse seriado dos sangues azuis da polícia em que o lema é o mesmo: em determinados casos a tortura se justifica e vale à pena. Esse é o lema americano. Abu Ghraib está ai, muito fresca em nossa memória. Estou falando da Argélia, dos EUA, mas a marca da tortura é muito intensa na história do Brasil.

Digo isso com uma certa dor no coração, no dia em Barack Obama está no Brasil. Os que me conhecem mais sabem o tanto que sou fã dele. Desde antes dele ser presidente. Acho até mais antes que agora, fã do autor, o bom escritor, o cidadão do mundo, o viajante, o homem fruto de três continentes (contando o asiático, de seu padrasto, onde viveu anos e que sabe falar a lingua)..

A dor - menos, a decepção, direi - é que esperava que Obama fizesse mais verão do que está conseguindo fazer. Um homem não muda um país, ainda mais um homem tão atípico nesse país tão previsível. Aliás, usar para Obama o ditado "Uma andorinha não faz verão" fica descabido, andorinha é muito feminino. E acho Obama muito imponente, está mais para um Condor.

E, para finalizar, desculpem-me essa mensagem meio sem propósito nesse domingo sem sol, nublado, apagado. Tivesse um verão e eu estava fazendo outra coisa.

quarta-feira, 2 de março de 2011

El infinito viajar

Em 2008, andando pelo Passeig de Gracia, descobri uma livraria, descobri um autor, descobri um livro. E uma inveja tão grande que tremeu o corpo. Claudio Magris escreveu um livro que eu gostaria de ter escrito. Nunca, com nenhum livro, senti isso antes, nem depois. "El infinito viajar" é um livro sobre a estranheza do viajante, sobre o desarraigo, sobre a condição de estrangeiro daquele que não acredita que uma pátria é um território. É um livro sobre aqueles que não têm um lugar e sentem-se estrangeiros em toda parte. É sobre aquele que "atravessando el mundo - viajando en el mundo - descubre su propria verdad, esa verdad que al principio es tan sólo potencial y latente en él y que traduce en realidad a través de la confrontacíon con el mundo". Essa também é a condição do psicanalista,

Cito mais uma parte desse livro espetacular: "Don Quijote no tiene miedo, se ofrece a la incertidumbre de vivir que le acarrea desastres, palos, porquerías y humillaciones; pero no tiene fe en la vida, que no sabe lo que hace, sino en los libros, que no dicen de la vida pero sí lo que le da sentido, su enseñas."




Foto: Alba Abreu Lima
Uma construção no Passeig de Gracia                              


terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Mais um livro de Amós Oz

                                                                

                                                                  UMA CERTA PAZ



“Um dia um homem se levanta e muda de um lugar para outro. O que ele deixa atrás de si fica para trás e só lhe vê as costas. No inverno de 1965, Ionatan Lifschitz resolveu abandonar sua mulher e o kibutz onde nascera e crescera. Decidiu sair e começar uma nova vida”. Assim começa o livro Uma certa paz, de Amós Oz, recentemente lançado no Brasil, mas escrito pelo autor em 1982. Por que tanta demora em publicar esse primor de obra no Brasil? É um dos melhores livros dele. Seu personagem é mais deslocado que os outros, desterrado, sem lugar. Procurando um lugar menos árido para viver, um amor menos árido, “um lugar entre os lugares distantes nos quais tudo é possível e tudo pode acontecer – uma súbita conquista, amor, perigos, estranhos encontros”. No Kibutz nada acontece, nenhum espaço para liberdade, nenhum lugar para a individualidade, só refeições coletivas, férias determinadas por todos, problemas pessoais resolvidos nas reuniões com todos. Enfim, o plano de Ionatan era viajar para um lugar que menos se parecesse com um kibutz.

É um livro triste, cruel. Os personagens dizem que ninguém ama ninguém. Mesmo no kibutz. A história começa no inverno. Nele, o narrador nos avisa que Ionatan vai embora, mas ele só consegue fazê-lo quando chega a primavera. E mesmo tendo avisado a todos que iria, todos se organizam para procurá-lo, a polícia é avisada, o exército onde ele servira no passado também. Seu pai contata até o primeiro-ministro para que não meça esforços para encontrá-lo. E assim, nós, leitores, realmente acreditamos que ele era um prisioneiro, sem liberdade para decidir nem uma viagem.

Mas somos enganados, pelo menos aqueles leitores que não entendem o hebraico e que, de imediato, não relacionam que o próprio nome do romance mostra que o personagem caminha para a morte. Em hebraico o título é Menuchá nechoná, termo que aparece na primeira frase da prece pela alma da pessoa falecida. Ionatan escapa do kibutz e em vez de ir à procura de uma dessas cidades do mundo onde os encontros seriam possíveis – ele listou muitas em seus pensamentos - caminha para Petra, pretendendo rumar sozinho pela fronteira com a Jordânia e passar por um deserto repleto de atalahs. Morte certa.

A estória é contada no inverno e depois na primavera. “O inverno sucede ao verão, e o verão vem depois do inverno”. É um livro sobre a passagem do tempo, sobretudo o tempo perdido, desperdiçado: “o coração grita de tristeza pelo tempo que havia e que se foi e ninguém devolverá a mim e a você a vida que poderia ser e não foi”. E Amós Oz vai mostrando vários personagens que deixaram o tempo passar, como, por exemplo, Srulik que ama em segredo uma mulher há 25 anos.

‎Pergunto-me se a verdadeira tristeza não é viver em Israel. Creio que isso é dito por alusão. Uma terra onde os personagens vivem como em um exílio, "Um laivo de estranheza, de saudade. Uma tristeza sem endereço. Como se isso também fosse o exílio. Sem um rio, sem uma floresta, sem os sons dos sinos. Que eu amava. Assim mesmo, sou capaz de fazer comigo mesmo um balanço frio, exato, um balanço histórico e também conceitual e também pessoal".

É uma história sobre viver em um não-lugar, em que um povo começa uma história em um “rascunho de um país novo....que traz atrás de si uma geração de mortos”. Enfim, seu kibutz, sua Israel é “Um lugar que é todo ele uma declaração de intenções, com esperança febril, ofegante, junto com uma torrente de boa vontade para abrir imediatamente uma nova página em todos os aspectos da vida. Não uma árvore, mas apenas mudas novas, pálidas; não uma casa, mas apenas tendas e cabanas e duas ou três construções de concreto, caiadas de branco”.

Pensando bem, se o tempo desintegra tudo, por outro lado, ele traz uma esperança que um futuro possa ser construído. Enfim, estou usando o Oz da esperança para amenizar o Oz desterrado, que sucumbe aos amores perdidos, à vida em um lugar sem árvores, pontes, sem amor.

Leiam! Leiam. É uma bela metáfora do que é o sujeito: deslocado, estrangeiro, excluído das coisas.

Le plat pays qui n´est pas le mien

Damme, a cidade com vista para o Mar do Norte.

Do alto da torre da igreja, vejo ao longe a cidade de Bruges e a minha esquerda o mar do Norte. O vento cortante da primavera belga fica mais forte do alto. Nesse país plano, sem montanhas, que não é o meu, fico lembrando da música de Jacques Brel. Em Damme há um museu para contar a história de seu personagem mais conhecido: Thyl Ulenspiegel. É um personagem meio lenda, estilo um Dom Quixote, que lutou contra o domínio dos espanhóis sobre Flandres. Nesse museu há dezenas de quadros de pintores importantes, como Brueghel e outros que representam o tal Ulenspiegel. Quando cheguei ao Brasil, vi que o Grupo Galpão estava encenando uma peça sobre o Thyl Ulenspiegel e dizendo que era mitologia alemã. Errado, errado. É belga. Jacques Brel, se estivesse vivo, iria dizer: é de la Belgique, c´est plat pays qui est le mien.

Foto: Andréa Brunetto
Do alto da catedral, sentindo o vento do mar do norte no rosto, por uns momentos, a Belgique foi um pouco minha também. E eu a quis, mesmo com a primavera gelada.


Avec la mer du Nord pour dernier terrain vague
Avec des cathédrales pour unique montagnes

Et de noirs clochers comme mâts de cocagne


Où des diables en pierre décrochent les nuages

Avec le fil des jours pour unique voyage

Et des chemins de pluies pour unique bonsoir

Avec le vent d'ouest écoutez-le vouloir

Le plat pays qui est le mien

domingo, 13 de fevereiro de 2011

Afresco de Pompéia

Foto Alba Abreu Lima
No Museu Arqueológico Nacional, em Nápoles, estão os afrescos que sobreviveram à destruição de Pompéia. E restaram muitos, belissimos, bem conservados nesse museu que é um primor de cuidado com as obras - bem mais que a Galeria Uffizzi. Há salas e salas com as pinturas vesuvianas, com cores fortes, vermelho abundante; a natureza é retratada exuberante. Flora, um afresco que sobreviveu, deve ter inspirado Boticcelli. Parece as mulheres desenhadas por Boticcelli, por isso digo, sem nenhuma pesquisa sobre o assunto.

Um inverno em Bruxelas

No frio, e longe da Grand Place, bem poderia ser Frankfurt ou Nova York. A foto preto e branco mostra mais ainda o inverno, a ausência de pessoas, que se escondem do frio, do vento; uma rua quase sem carros, sem folhas nas árvores, sem sol, quase sem luz. Sem você.

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

Roma

Foto Alba Abreu Lima

Em cada esquina, uma ruína, uma história. Um museu à céu aberto. A Fontana de Trevi não tinha aquele encanto como nos filmes, e o calor era insuportável. Mas o taxista me mostra uma fachada de uma casa qualquer que tinha sido projetada por Brunesleschi. Aonde um taxista poderia me dar uma aula de arquitetura? Se não em Roma, é improvável.

Monschau

Um dia feliz em Monschau.


Na província da Renânia do Norte-Vestfália, está a pequena cidade parada no tempo. Atravessada pelo rio Ruhr, no vale do Eifel, longe do turismo ostensivo das grandes cidades alemãs, senti-me no Século XIII. Subi na montanha, alta, subi, subi, subi e de lá, das ruínas de um castelo do século XIII, olhei o vale. Poderia estar em um romance de Thomas Mann. Poderia ser o que quisesse. Depois desci, é claro!!!!