segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Sobre a Albânia, o final do ano e meus votos


 

                                                                        Para meus colegas do Campo Lacaniano

Desde o ano passado tenho pensado muito na Albânia. E semana passada sonhei com ela. Não quero ir lá sozinha, vamos comigo à Albânia?

O sonho foi assim: uma cidade com prédios baixos, como um caixote, feia e cinza, como as construções comunistas de Berlim Oriental ou Bonn. Vou saindo da cidade e tudo é montanhoso. Chuva, neblina e vento e entro em um povoado, tem muitas casas brancas de telhados cinza, com janelas bem altas, arqueadas, no estilo mouro, ao pé de um morro. E depois, mais ao longe da cidadela, já no campo, casas de pedra, em forma de torres. Sei quais são as cidades, tanto uma quanto a outra: primeiro Tirana, a capital da Albânia. Depois Gjirokastra, a cidade de nascimento de Ismail Kadaré, o grande escritor albanês. A geografia das duas tirei de seus livros. Tenho olhado fotos, lido os livros dele. E conversei com um rapaz albanês em Florença que contou-me tantas coisas sobre o país.

Descobri, anos atrás, a obra de Ismail Kadaré graças a Walter Salles. Seu filme Abril Despedaçado é uma adaptação do romance do escritor Ismail Kadaré. No Nordeste da seca e da fome, duas famílias brigam há tempos pela terra, ninguém mais lembra como a briga começou. Os Breves (esse poderia ser o sobrenome de todos os seres humanos), pais de Tonho, personagem vivido por Rodrigo Santoro, perderam o filho mais velho, assassinado por um membro da família rival, e retiraram a camisa do morto, penduraram no varal até o sangue amarelar. Quando o sangue seca é chegada a hora da cobrança.

Embora todo o contexto seja diferente, essa cobrança do sangue é o cerne do romance de Kadaré. Essa matança entre duas famílias não é considerada uma vingança para os albaneses. É o Kanun, um Código de Honra entre famílias, que regulamenta a vida das cidades desde antes dos tempos medievais. Gjorg recuperou o sangue de sua família, com a morte de Zef Kryeqyqe, então sabe que será o próximo a morrer. Consegue uma trégua de 30 dias. Viverá de 17 de março até 17 de abril. Anda pelos campos, pelas estradas entre os povoados, rodeando as montanhas de sua província, com uma fita negra na manga da camisa – marca dos que estão sob a lei do Kanun – vivendo seu último mês, esperando chegar seu abril morto, despedaçado.

Enquanto vive sua vida dividida em duas, os vinte e seis anos que já viveu e seus últimos dias, errante pelos lugares, como um Ulisses, longe de casa. Porém sua Ítaca é uma sepultura. Será por isso que Kadaré compara seu personagem com Ulisses em vários momentos do romance? O que já desceu ao mundo dos mortos? Diz que o dilema de Gjorg é muito pior que o To be or not to be de Hamlet, seu drama é o de Ulisses. Pela errância da vida tão marcada pela morte com data fixa, 17 de abril? “Abril, a partir de agora, envolvia-se para ele numa dor levemente azulada...Sim, abril sempre lhe produzira essa impressão, um mês em que alguma coisa permanece incompleta. Abril de amor, como diziam as canções. Seu abril inacabado....”

Porém, no roteiro para o cinema, o final trágico é amenizado. Um irmão mais novo toma o lugar do destinado a morrer e ele pode viver porque encontrou o amor. No romance de Kadaré, uma mulher chega até Gjorg, que está no alto de uma torre, aguardando seus últimos dias. Tenta tirá-lo de lá, mudar seu destino. Mas não sabemos o que conversam, ela sai e ele caminha para o fim, para cumprir seu destino. O filme tem um final meio ao estilo “o amor salva até da morte”, mas o livro não: o sujeito cumpre seu Dasein.

Este livro tão denso, entremeado de muitas histórias da Albânia, de suas cidades e seu povo, seus costumes, foi o primeiro que li de Ismail Kadaré. Depois li outros, em que conta de uma Albânia tão milenar, que descende dos ilírios, um povo tão antigo quanto os gregos. A língua grega tem palavras estrangeiras, palavras albanesas. Kadaré quer nos mostrar o quanto seu país é antigo, e como ele era outro, antes de tantas invasões. E que, desde o Séc. XIV, assujeitado por tantos dominadores, invasores, seu povo parece ao estrangeiro tão feroz, temível, mas ao mesmo tempo tem um costume em que um hóspede, quando entra na casa de uma família albanesa, é mais do que um pai ou um filho, é um deus. E como tal é tratado.

Então, com essa introdução sobre a Albânia, meu sonho e minhas errâncias literárias, queria desejar feliz ano novo a todos sem falar do calor campo-grandense, “esse braseiro, essa fornalha”, que - já me chamaram a atenção, reclamo muito – queria desejar feliz ano novo com a geografia e o tempo da Albânia na cabeça, com suas chuvas intermináveis, seus ventos, e a neblina beijando as montanhas. Com suas terras montanhosas que andam rondando meus sonhos. Meus votos a todos de muitas alegrias no final do ano e recomeço pleno de energias, pois ano que vem teremos muito trabalho a fazer, muitos sonhos a fazer, muitas viagens a fazer, encontros a organizar. Enfim, nossas errâncias do ano vindouro serão grandes.

E falando em votos, aproveito para agradecer a todos os votos depositados em mim para o CRIF e dizer que não se preocupem que volto do estrangeiro albanês para o nacional de nosso campo no início de 2013: latino-americano, americano sem ser latino, europeu, australiano. E, claro, brasileiro.

Mas por ora estou albanesa, vivendo às margens do Adriático. Quem vem comigo à Albânia?

 

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