sexta-feira, 13 de julho de 2012

Abre-me e eu te devoro

A peça de Antonio Quinet, “Abrem-se os histéricos”, é um balé sincronizado de quatro histéricas mais uma, retratando os impasses de uma época que, de certa forma, ainda é hoje.

No final do Século XIX, Charcot encontrou na histeria uma doença verdadeira e não uma simulação ou degeneração. Uma doença encenada no corpo. E Charcot tornou-se à época, uma celebridade em Paris, um médico e mestre construindo um saber encenado no palco por suas pacientes histéricas. Era assistido por muitos, jovens cientistas como Babinski, que não acreditava na histeria – achava que as histéricas eram umas falsificadoras de sintomas, por isso propôs para a histeria um novo nome, pitiatismo, piti – e Freud, que apostava em outra cena como a causa da doença, uma outra cena, infantil e traumática, explicava esse teatro no corpo; bem como era assistido por literatos como Leon Daudet e Maupassant. Esse momento histórico é o eixo da peça do psicanalista e dramaturgo Antonio Quinet.

Em “Abrem-se os histéricos”, Babinski, Freud e mesmo Charcot são um tanto apagados, ficando em segundo plano. Não sei se foi intencional ou se os atores ainda estão meio deslocados diante do balé das histéricas – e como dançam bem! Não apenas Sarah Bernhardt, todas.

Quando as histéricas estão na primeira cena, os homens/doutores desaparecem e ficamos encantados com a dança/doença delas, com seu sofrimento, suas contrações, seus desmaios, suas contraturas. O que reina é o corpo, palco de uma verdade que denuncia uma mentira. Quinet contrapõe a histeria ao teatro, que encena uma mentira para dizer uma verdade.

E a histeria reinava na Salpetrière, no Século XIX, como reinará no século seguinte. Tanto que Freud a elegerá como a neurose de base, sendo a outra apenas seu dialeto. E Lacan a elevará a categoria de um discurso. Hoje os sintomas podem estar um pouco diferentes – embora ainda encontremos na clínica alguns casos como as pacientes de Charcot – porém o sofrimento no corpo continua o mesmo, com as fibromialgias, anorexias, LER e outros tantos que evidenciam que as mulheres – não somente elas, mas sobretudo elas – continuam sofrendo com seus corpos.

Os homens da ciência de hoje, como os da época de Charcot, continuam querendo abrir o cérebro e o corpo das histéricas, para decifrá-las, inventando remédios e terapêuticas e se irritando porque essas histéricas, ah, elas insistem. E continuam fechadas, enigmáticas, não querendo seu ser reduzido a uma compreensão débil.

A peça de Quinet mostra que a histérica encena o desejo sempre um tanto inominável, apreendido por um desvio, inassimilável a não ser pela palavra. Mesmo Freud se enganou em vários de seus casos sobre o que queriam suas pacientes histéricas nesse caminho em que acreditava decifrá-las, até se perguntar “mas o que quer uma mulher?” Para ele também a histeria ficou sempre sendo uma esfinge, mesmo com toda sua descoberta do inconsciente e do desejo.

A iluminação, o figurino e a música da peça são um primor. E a disposição do palco, com duas cenas, em que podemos ver a outra cena, através do vidro, foi uma estratégia excelente do diretor.

O dramaturgo nos mostra que as histéricas se furtam à decifração, se furtam a se abrirem, escapam de serem devoradas, classificadas, compreendidas e continuam a encenar no palco de seu corpo a verdade do desejo. Seu e do Outro. As quatro assim o fazem e também Madame Charcot, presa ao desejo do marido, correndo de um canto ao outro, despenteada e desgrenhada, atrás das histéricas, as outras mulheres para quem seu marido só tinha olhos.

Ao sair da peça, pensei: “se demorasse mais cinco minutos, iria sair daqui com o braço torto”. O engraçado foi que duas amigas, uma logo na saída, e outra no dia seguinte, disseram-me quase o mesmo. A histeria é contagiosa e quer continuar fechada – a despeito que tantas histéricas queiram se analisar – tal como uma esfinge. Na peça, os devorados somos nós. E também os atores masculinos, um pouco. Somos nós os devorados que saímos quase meio tortos.

Aliás, conclamo vocês a assistirem a peça e saírem dela sem entortar nem um dedinho sequer.



















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