quinta-feira, 4 de junho de 2015

A cadelinha Vitória: a inveja que o ser humano tem do animal



Escrevo esse texto por três motivos. O primeiro deles é para acalmar uma noite de sono ruim. Acordei com a Cadelinha Vitória chorando de dor em meu pesadelo às quatro horas da madrugada. Para os que não são de Campo Grande conto a história na sequência cronológica: dias atrás, adolescentes torturaram uma cadelinha, mantendo-a presa e arrancando um pedaço de seu couro e, ainda, quebrando suas patas. Agora se sabe que a história não foi bem assim: uma parte do couro foi retirada em um tratamento veterinário há tempos, e a cadelinha foi abandonada por sua dona em um terreno baldio. É nele que uma testemunha viu a cadelinha sendo torturada por alguns jovens. Enfim, agora a cadelinha está internada em um Pet Shop se recuperando. Foi salva por duas mulheres que têm como causa cuidar de animais abandonados e maltratados. Esta semana escutei vários pacientes me contarem essa história. Li essa história no site de notícias e foi comentário entre amigos. É um dos temas onipresentes da cidade esta semana.
O segundo motivo porque escrevo é que minha amiga Andréa Helena me pediu um poema. Essa corrente que tem no facebook, que você pede poesia a três pessoas. Detesto essas correntes, essa rede social inventa cada besteira. Uma semana você tem de saber qual é a sua cidade, na outra que animal você é, na outra quem é sua alma gêmea. Pelo menos essa de agora eu gostei. Estou vendo as poesias que as pessoas colocam; gostei tanto de algumas que até copiei. Não gosto dessas redes estilo ‘você recebeu algo e passe adiante’, mas gosto demais de poesia e não posso deixar o pedido de minha amiga xará sem resposta.
E o terceiro motivo é que ando há mais de um mês quase obcecada com os poemas de Rainer Maria Rilke. No momento, as Elegias do Duíno, que ele escreveu no Castelo Duíno, construído à beira do mar, nos arredores da cidade de Trieste. Contemplando o Mar Adriático, escreveu dez elegias que são de uma beleza indizível. Com a oitava delas, que li ontem à noite, retomo o primeiro motivo: a cadelinha Vitória.

Já li vários comentários sobre esse episódio, tentando entender a crueldade dos jovens. Alguns dizendo que eles serão psicopatas. É uma possibilidade, mas não a única. Sabemos de descrições de historias de psicopatas que eles começaram torturando e matando animais, para depois passar a seu semelhante. Mas também escutamos na clínica sujeitos adultos até hoje se culpando de um gesto violento que tiveram na infância ou adolescência, uma violência contra um animal, contra um irmão, um amigo, uma violência que fez ou que testemunhou sem fazer nada. Uma palavra mal dita, que soou como um açoite, maldita, a ser expiada uma vida inteira. Enfim, nada de dizer que os adolescentes serão psicopatas. O futuro de alguém está aí, aberto, para ser construído. Pode ser maldito, mas pode ser expurgado.
Eu queria entender esse episódio a partir da inveja. O ser humano tem inveja desde cedo. E ter inveja não quer dizer que vai torturar. Santo Agostinho já mostra em suas Confissões a primeira inveja: a criança pequena, olhando com invidia, o bebê ao colo, colado no peito que outrora foi seu. Isso justifica tantas brigas entre irmãos. Mas também muito cuidado e proteção, para se redimir da inveja. Poderia dar outros exemplos, mas só consigo pensar um meu: diante de uma beleza de mousse de maracujá ou sorvete Hangen Daz, tem gente que diz ‘obrigada, não gosto’. Morro de inveja.
E volto às Elegias de Duíno. Na Oitava elegia, Rilke afirma que o ser humano tem inveja dos animais - ele só faz alusão a palavra, sou eu a dizer claramente. Nosso olhar é revertido como uma armadilha para trás, “pois desde a infância desviamos o olhar para trás e o espaço livre perdemos, ah esse espaço profundo que há na face do animal. Isento de morte.”  Nós, humanos, só vemos morte, o animal vê um livre caminho à frente, pois não tem consciência da morte. “Diante de si tem apenas Deus e quando se move é para a eternidade, como correm as fontes.”  O animal espontâneo ultrapassou seu fim, escreve Rilke. Os amantes sentem a presença obscura da morte, às vezes “há um descerrar-se atrás do outro....Mas, o outro, como superá-lo?” Vemos no animal a liberdade que  em nós mesmos, humanos, obscurecemos.
E ele diz da mosca feliz, da quase-certeza do pássaro, que pertence a dois domínios e tem a alma liberta. E até mesmo o morcego, que espantado de si mesmo, fende o ar, tal taça partida.
“E nós, espectadores de tudo e sempre
Voltados para tudo, nunca de fora.
Saciados, ordenamos. Mas tudo se desfaz.
Novamente insistimos e nós mesmos passamos.
Quem nos desviou assim, para que tivéssemos
um ar de despedida em tudo que fazemos? Como aquele que
partindo se detém na última colina para contemplar
o vale na distância – e ainda uma vez se volta
hesitante, e aguarda  - assim vivemos nós
numa incessante despedida.”

Mas não o animal, para o animal ele escreve:
“Há no entanto esses olhos calmos que o animal levanta,
Atravessando-nos com seu mudo olhar.
A isto se chama destino: estar em face
do mundo, eternamente em face.”

Aliás, seguindo essa elegia de Rainer Maria Rilke, todo animal devia chamar-se Vitória.