quinta-feira, 31 de março de 2016

Morreu Imre Kertész, o sobrevivente de Auschwitz



           Há cinco anos, no começo da primavera, fui para Budapeste com duas amigas. Não fui para a Budapeste dos guias de Viagem lindos, que se espalham pelo mundo, fui à Budapeste de Kertész. Andei pelas ruas, nessa primavera gelada, como se estivesse em seu tempo, em que ele, homem jovem, sobrevivente de Auschwitz, tentava encontrar sentido na vida, escrevendo. Até descobrir que o regime totalitário comunista pós-guerra era outra prisão. E viveu sua vida-prisão ali, até se casar com uma mulher feliz, e poder deixar Budapeste. 
          Não foi só por isso que detestei Budapeste, com seu povo grosseiro, arrogante, segregativo. Se eu tinha alguma dúvida sobre isso, o tratamento recente aos refugiados só confirmou isso. 
Por mim, não volto nunca mais lá. Por Kertész não volto nunca mais lá. 
       Um capítulo de meu livro "Sobre amores e exílios" foi sobre esse homem ímpar, que enobreceu a humanidade. Muitos escritores se suicidaram depois de sobreviverem à Auschwitz, e apregoaram como a vida ficou insuportável depois do campo. Ele continuou a viver, e muitos anos depois até encontrou a felicidade. 
Coisa difícil nessa vida, mesmo sem Auschwitz. 
Abaixo o capítulo de meu livro que é sobre ele. 
Ele tornou minha vida melhor e hoje estou de luto por ele.





CAPITULO 9

Ser um sobrevivente de Auschwitz


Onde o assassinato é lugar-comum, a pessoa
não se torna um assassino por revolta,
mas por zelo.
Imre Kertész


O ódio, quando está bem organizado, cria uma realidade,
assim como o amor também pode criar uma realidade.
Imre Kertész

A persistência do tema sobre a Segunda Guerra Mundial deu-se após a visita, em 2003, a um campo de concentração perto de Munique. O campo de concentração de Dachau hoje é um museu que conta a história da guerra, transformado em museu prioritariamente como um monumento do que não pode acontecer nunca mais. Aliás, na entrada está escrito nunca mais em muitos idiomas. O encontro com esse real, andar pelo campo, pelo crematório deixou-me como resto uma necessidade de estudar mais sobre este período da história, estudar sempre. E foi assim que me caiu às mãos o primeiro livro de Kertész que li, Sem destino. Oito anos depois da visita a Dachau, em 2011, estive no Campo de Concentração de Auschwitz. Estive também na cidade de Budapeste, onde foi capturado para ser enviado a Auschwitz. Depois de ter sobrevivido ao Campo, Kertész fez dela seu cativeiro.

O campo de Auschwitz
Kertész, ganhador do prêmio Nobel da literatura de 2002, era um garoto de quatorze anos quando a caminho do trabalho – já instituído pelos nazistas – é preso juntamente com outros simplesmente por ser judeu. Fica, junto com outros garotos, detido em um quartel improvisado da SS. A violência é tamanha que ele olha para as metralhadoras e pensa que seus suportes parecem os pés de uma cegonha, “com um ridículo apetrecho em forma de funil, preso à boca do cano, parecia o moedor de papoula de minha avó”.1 Sempre tentando dar sentido a irrupção desse real, relaciona a metralhadora com coisas amenas e conhecidas, como um objeto da casa da avó.
É enviado a Auschwitz, depois com o joelho machucado é reenviado a Buchewald, e no terceiro campo, o de Zeitz, é resgatado pelos aliados.
Quando volta, junto com tantos húngaros, a Budapeste, vê que a população da cidade não quer olhar para ele. Entra na cidade, magro, raquítico, morto de fome, maltrapilho e as pessoas desviam dele o olhar. No bonde que o leva a sua rua, encontra um jornalista que lhe pergunta se está voltando de um campo de concentração, lembra que o jornalista diz que aquilo que aconteceu com ele precisa ser falado, contado a todos. Afasta-se. Quando toca a campainha de sua casa, estranhos o atendem, ali não é mais sua casa. Os vizinhos antigos chamam-no, contam que seu pai morreu, sua madrasta vive com outro, e todo o acontecido foi uma fatalidade, o destino, que deve esquecer tudo, “pois com um peso assim não se pode começar uma nova vida”.2 Ele concorda.
Mas não concorda com a explicação sobre o destino: se tudo foi o destino, qual a liberdade do homem?  Não era o seu destino, mas o viveu. É por isso que o primeiro volume de sua história intitula-se Sem destino. No livro A língua exilada conta que Auschwitz destruiu sua noção de pátria, nação, povo: sente-se de lugar nenhum. “Ante uma aparição como Auschwitz, a lógica, indiscutivelmente, não nos leva longe: parece que a razão declara falência”.3
O autor faz uma listagem dos escritores que viveram a realidade de Auschwitz e se mataram; por enquanto ele está se agüentando sem fazê-lo.
Mas continuando em sua trilogia, depois de Sem destino, escreveu O Fiasco. Essa obra retrata a experiência de um escritor que quer escrever sobre Auschwitz, mas isso não é aceito pelo seu editor. Kertész mostra-nos como o regime comunista húngaro tentou esconder as atrocidades nazistas. A esses “humanistas profissionais” é preferível acreditar que “Auschwitz ocorreu somente para aqueles com quem as coisas, casualmente, aconteceram lá e naquele momento e que, ao contrário, com outras pessoas, com quem as coisas, casualmente, não aconteceram lá e naquele momento, ou seja, à maioria, ao ser humano – o Ser Humano! - de um modo geral nada aconteceu”.4
Em O fiasco retoma suas lembranças sobre Auschwitz e nos mostra como esse campo de concentração ficou em sua vida, quase como um non sens, um real que escapa ao sentido, e por isso mesmo, insiste. Uma paisagem desolada lhe lembrava Auschwitz, uma árida região industrial também, o cheiro do couro da corrente de seu relógio lembrava-lhe o fedor dos cadáveres.5
Em Kadish. Por uma criança não nascida, final da trilogia, vai sustentar que depois de Auschwitz não poderia colocar uma criança no mundo, “não poderia ser Deus de um outro homem.”6 Ele sente-se culpado demais para suportar a idealização, a deificação que um filho faz do pai. E, além disso, ele é o rejeitado da díade mãe-filho. A rejeição ele mesmo a relata como motivo, no que ele chama a análise de seu complexo de Édipo. Quanto à relação entre não poder ser pai e a culpa é uma hipótese nossa. Mas por que ele, o sobrevivente, é culpado? “Só os mortos não caíram manchados de infâmia do holocausto. É amargo levar o selo da sobrevivência que não tem explicação.”7 É por isso que não se aprofundará na tese de que foi ajudado por alguém quando estava no hospital de Buchenwald.8
No Dossier K., compilação de entrevistas que ele faz com ele mesmo9 afirma que “a vivência dos campos de extermínio tornou-se uma experiência humana quando descobriu a universalidade da vivência. E esta é a ausência de destino, esse traço específico das ditaduras, a expropriação e estatização do destino próprio, sua conversão em destino de massas, o despojamento da substância mais humana do homem”.10 É exatamente nesse apagamento do sujeito – embora ele esteja chamando de indivíduo, ou da história individual em contraposição à massa – promovido por toda ditadura, que Kertész relacionará o nazismo e o socialismo.
Podemos dizer que, primeiramente, com os nazistas e, depois, vivendo sob o jugo socialista soviético que governou a Hungria por tantos anos11, o autor descobriu a capacidade destrutiva do ser humano. Lacan concordaria com ele em sua teorização sobre os campos de extermínio e Freud com sua decepção sobre o ser humano. Lacan sustentou que a existência dos campos evidenciou a exclusão do sujeito, que o discurso científico também faz e que promoveria maior segregação12 E quanto a Freud, em O mal-estar na civilização mostrou que as tendências destrutivas estão presentes em todos os homens e, portanto, as tendências anticulturais.
Ainda no citado Dossier, conta-nos que, ao final dos anos 90, conheceu o diretor do Memorial de Buchenwald e, então, com a ajuda dele, pesquisou sobre a “Sala seis”, quarto do hospital do referido campo em que ele ficou internado quando machucado. E não encontraram nenhuma referência da existência dessa sala em Buchenwald, mas descobriram que ele, Imre Kertész, prisioneiro húngaro de número 64.921 faleceu em 18 de fevereiro de 1945. Para ele trata-se de mais uma prova de que alguém o ajudou, seu nome foi apagado da lista dos doentes em tratamento para não ser morto. Qual a explicação sobre quem o ajudou? Não a tem. O que aconteceu? Não sabe. Mas qualquer explicação necessitaria de outras explicações “e o mistério do mundo continuaria sendo um espinho torturante como sempre.”13

A identidade: desprender-se da própria história
Mas qual a importância para um psicanalista de ler a obra de Kertész? Respondemos: deixando de lado a afirmativa de que um psicanalista deve ser um conhecedor de literatura, filosofia e mitologia14; deixando de lado, também, que um psicanalista tem de responder às questões colocadas pela sua época15; deixando de lado, ainda, a beleza dessa escrita; e deixando mesmo de lado ser o autor testemunha de um acontecimento terrível que assolou o século XX, ainda assim, nós, psicanalistas, teríamos dois motivos para ler sua obra: o primeiro é pela importância de sua denúncia do apagamento do sujeito. Kertész sustenta que nossa época não é propícia à conservação do indivíduo, pois os moralistas têm conduzido os movimentos de massas com suas teorias de salvação do mundo. Como fazer frente a isso? Responde: eleger nossa própria verdade em vez de a verdade.16
E o segundo é que Kertész mostra-nos que a identidade não tem “nenhum significado”, ou dizendo lacanianamente, os significantes não dizem o ser. À medida que o sujeito é representado pelos significantes, e que só pode ser no espaço entre um significante e outro, sua identidade comporta sempre uma divisão, uma queda. Se ele se agarra ao significante, ao “tu és isso”, está na alienação; se desliza todo o tempo na cadeia significante, está à deriva. O psicótico sabe dessa sensação de deriva, dessa limitação do simbólico.
Kertész uniu ao nome um denotativo, “o sobrevivente de Auschwitz”. Ainda que essa nomeação que ele se fez não se resuma a uma autonomeação, pois é solidária ao laço social17, fez sua identidade por muito tempo. Até poder se desprender dela, deixá-la cair e sustentar-se com a escrita.
 O livro “Eu, um outro” funciona quase como um percurso analítico para o autor. Ele vai dizer que é uma novela sobre a liberação.18 Começa se perguntando quem é e qual a sua história. Assim, já evidencia que a identificação de ser o sobrevivente de Auschwitz não lhe basta para dizer seu ser. E para isso cita Rimbaud: “o Eu é uma ficção na qual, no máximo, podemos ser co-autores”.19 E afirma que não consegue saber nada essencial sobre si mesmo e a imaginação cria uma realidade que parece mais real que o Real.20
Conta-nos, no início do livro, duas histórias que mostram o estigma de ser judeu, uma da Segunda Guerra Mundial e outra mais atual, uma experiência pela qual passou com um taxista em Frankfurt.
A primeira: Moritz Schlick, filósofo e estudioso da linguagem, professor da Universidade de Budapeste foi morto a tiros no salão nobre da universidade, em 1936, por um aluno que não gostava de judeus. Condenado e preso, o aluno foi solto e homenageado logo que os nazistas tomaram o poder no país.
A segunda história: Kertész pega um táxi para ir à estação de trens, em Frankfurt e o motorista, um muçulmano egípcio, fala muito, discorre sobre a política e xinga os judeus. Ele não diz ao motorista que é judeu, desce correndo do táxi e esquece sua carteira com todo o dinheiro. Quando está tomando o trem, o motorista vem correndo e lhe entrega a carteira com todo o dinheiro dentro. Ele fica atordoado e até esquece de dar uma gorjeta ao homem. Só depois pensa que agradeceu com tamanha naturalidade “como se nada fosse mais comum do que motoristas de táxi em cidades grandes correrem atrás do passageiro estrangeiro com sua carteira esquecida no banco”.21 Sua conclusão: “é possível que suportemos a vida tão somente por ela ser tão improvável; por outro lado, a consciência procura investigar o tempo todo, a chamada realidade, deseja a realidade”.22
Acredito que esta cena contradiz sua condição de “estigmatizado por ser judeu”, pois nesse livro ele dá um passo a mais, o que faltava na trilogia acima citada: ele não se afirma mais como o judeu sobrevivente de Auschwitz. E afirma ser “um judeu diferente. Que tipo de judeu sou, afinal? Nenhum. Há muito tempo não estou mais à procura de minha pátria, nem de minha identidade. Sou diferente deles, sou diferente dos outros, sou diferente de mim”. Sua identidade é escrever: “tenho uma única identidade, a identidade de escrever”.23 Nisso ele se iguala a Thomas Bernard. Ele mesmo tenta uma analogia em “Liquidação.”24
E ele conclui este livro de uma forma bem linda – não pensem que estarei relevando o final, têm muitas histórias contadas que valem o livro e só conto um pequeno trecho do final – “o passado é um depósito abandonado de coisas, experiências, sons e imagens de tempos longínquos, já completamente distanciados de suas fontes vivas, da vida que outrora os tinha produzido e, por algum tempo, os guardava intactos. Minha história desprendeu-se de mim: de repente, perco o equilíbrio como alguém que perdeu seu caminho e, entre passado e futuro, escapuliu do tempo”.25
Há uma semelhança nesse vacilo das identificações com um final de análise. Mas seu “passe” foi feito com a literatura. O passe é um dispositivo criado por Jacques Lacan para averiguar o final de análise. Nele, o analista põe a prova o que foi seu percurso analítico, enfim, sua relação com o inconsciente e pode – essa é a aposta – deixar cair suas identificações.26
A relação entre identidade e tempo também aparece no Dossier K, falando sobre sua vida em Berlim: “observando entretido o movimento de última hora da tarde na metrópole [Berlim] embaixo dos gigantescos plátanos, cujas frondosas copas se fundem, saio por uns momentos do tempo e penso, por um instante, assombrado, sobre a aventura que foi a minha vida.”27
Essa alegria – ele mesmo vai designá-la assim – não por acaso a tem no exterior, longe de sua Budapeste. Sua vida na Hungria, e fora dela, em Auschwitz, foi uma história de prisões.28 Se sua condição de estrangeiro lhe permitiu despregar-se de sua história, por que não saiu de seu país antes, por que não fugiu antes? Ele mesmo se faz essa pergunta em suas obras e a resposta é: só tenho uma língua, só posso escrever uma novela nessa língua.29
Faço uma inferência: depois da liberação que alcança escrevendo Eu, um outro - ou melhor, porque alcançou essa liberdade, pôde escrever esse livro - pôde desprender-se de sua pátria, de sua judeidade, de sua cidade, e ser de lugar nenhum, pôde ser de todo o mundo. Tenho, também, uma segunda hipótese: sua segunda mulher é que lhe propõe alugar um apartamento e morar em Berlim. Ela é uma mulher que retorna a sua terra natal, a Hungria, após a queda do regime comunista, depois de trinta anos de exílio. E parece ser alguém que a condição de exilada não amargurou.30 E assim, vivendo no estrangeiro, torna-se menos apátrida.31
Enfim, termino a seção dos exílios com Kertész porque creio que ele foi além, deu um passo a mais, que poucos dão, na relação com as identificações que marcaram sua vida. Ele e Edward Said32 tornaram-se fora-do-lugar e não buscaram mais a terra pátria. Eles alcançaram a meta de perfeição traçada pelo monge saxão Saint-Victor, que está como epígrafe deste livro: perfeito é o homem que se sente estrangeiro em todo lugar. 
Kertész: ele, o outro, o estrangeiro em seu país, o estrangeiro em Berlim, o que pôde ser feliz depois de Auschwitz, o que pôde encontrar uma mulher feliz, o que pôde se exilar de sua língua, porque afinal descobriu – sem cair na loucura – que somos sempre estrangeiros em uma língua. Seja a nossa ou outra. Afinal, “a nossa” nunca é nossa.





 





1 Imre Kertész. O fiasco. São Paulo: Editora Planeta, 2004, p. 23.

2 Imre Kertész. Sem destino. São Paulo: Editora Planeta, 2003, p. 172.
3 Imre Kertész. A língua exilada. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 40.
4 Imre Kertész. O fiasco. Op. Cit., p. 39.
5 Ibid, p. 71.

6 Imre Kertész. Kadish. Por uma criança não nascida. Rio de Janeiro: Editora Imago, 2002, p. 99.

7 Imre Kertész. Dossier K.. Barcelona: Acantilados, 2007, p. 182.

8 Ver explicação mais adiante neste capítulo.

9 Ainda que elaboradas a partir do envio, por seu editor, de algumas entrevistas a que ele respondeu, Kertész as organiza e transforma em um livro que ele mesmo designa como autobiográfico. Assim surgiu o Dossier K. lançado em 2006, traduzido para o espanhol pela Editora Acantilados no ano seguinte e que aguardamos sair no Brasil em algum momento no futuro.

10 Imre Kertész. Dossier K.. Op. cit, p. 68.

11 Sobre este período ver Doze dias, a revolução de 1956. Victor Sebestyen. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2006.

12 Lacan, J. “Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola. Op. Cit..

13 Imre Kertész. Dossier K.. Op. cit, p. 73.

14  Freud. “A questão da análise leiga” (1926). Op. Cit., p .278. 

15 Lacan, J.. “Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise” (1953). Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998, p. 322.


16 Imre Kertész. Dossier K.. Op. cit, p. 76.

17 Soler, C. Le noms de l´identité. In : L´identité em question dans la psychanalyse. Paris: Revue de EPFCL-France., mars 2008, p. 13.

18 Imre Kertész. Dossier K.. Op. cit, p. 196.

19 Imre Kertész. Eu, um  outro. São Paulo: Editora Planeta, 2007, p. 14.

20 Ibid., p. 165.
21 Ibid., p. 44. O que mostra que o racismo às vezes não se encaixa na pessoa real, no vizinho, no amigo, no passageiro do táxi.

22 Imre Kertész. Eu, um  outro.Op. Cit.,  p. 45.

23 Ibid., p. 73.

24 Em Liquidação, o protagonista pensa “De novo se tornam válidos os dizeres da Bíblia: resista à tentação , evite conhecer-se, porque, se o fizer, estará  danado, disse” . E, em seguida, acalentando a idéia de suicídio, nessa era de catástrofes,  refere-se a Bernhard, de como pensou em escrever com o estilo que ele escreve. In: Kertész, I. Liquidação. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 49.

25 Imre Kertész. Eu, um  outro.Op. Cit.,  p. 172-73.

26 Lacan, J. “Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola”. Op. Cit.  p. 257.

27 Imre Kertész. Dossier K.. Op. cit, p. 203.

28 Parece próprio de minha vida que só posso me livrar de um cativeiro se imediatamente me lançar em outro” Imre Kertész. O fiasco. Op. cit., p. 42.

29 Ele era tradutor de alemão, então o que quer dizer esse monolinguismo?

30 “A capacidade de M. ser feliz é uma dádiva mais extraordinária que qualquer outro talento”. Imre Kertész. Eu, um outro. Op. cit.,  p. 117.

31 “É diferente ser sem pátria em seu próprio país e sê-lo no estrangeiro, onde justamente essa falta de pátria pode nos levar a encontrar um lar”. Imre Kertész. Eu, um outro. Op. Cit., p. 88. Relaciono com Edward Said, o fora-do-lugar.


32 Edward Said, que tratei tão brevemente na introdução desse livro, é um deslocado, estrangeiro, que só sobre sua autobiografia Fora do lugar - uma das melhores coisas que já li sobre o estrangeiro - vale escrever um livro sobre ele. 

sábado, 5 de março de 2016

Estradas: Marcos Lessa e Gonzaguinha

          Semana passada comprei um ingresso para o show Estradas, tributo a Gonzaguinha. O show era em apoio a um instituição bastante séria. Por isso comprei. E também porque minha amiga é que me convidou. Enfim, por uma boa causa e para confraternizar com as amigas, fui.
         Adoro Gonzaguinha. Lembro o dia em que ele morreu. De madrugada, dirigindo no Paraná - creio que perto de Pato Branco - voltando para casa depois de um show. Era domingo de manhã quando o Brasil descobriu que esse grande compositor e cantor, tinha ido. Chorei, chorei, chorei. É a vida, é a vida, é a vida. As vezes bela, às vezes triste.
          Nunca tinha ouvido falar de Marcos Lessa. Não assisto The Voice Brasil. Nenhuma vez. Não gosto. Acho vexatório. Esse jovem é uma figura muito carismática. Cearense, alto, magro, um menino, jeito de menino - embora tivesse nos avisado que em alguns dias faria 25 anos - mas uma voz enorme, forte, possante, linda. Voz suficiente para fazer um tributo a Gonzaguinha. Durante o show, a imagem e a voz de Gonzaguinha se fazem presente.
          E o show tem o apoio de Daniel Gonzaga, o filho de Gonzaguinha.
Show maravilhoso, com um cantor jovem, com uma voz linda, um grande futuro para a música brasileira. Homenageando um grande cantor e compositor, nosso passado, nosso presente, nosso futuro. Um auditório lotado, lembrando das músicas de Gonzaguinha. Fiz as contas: quando ele morreu, Marcos Lessa nem tinha nascido ainda. Um belo exemplo das estradas da vida. E do tempo.
O CD do show também é lindo.


UM POETA E UM CASTELO. E DUAS MULHERES. TALVEZ TRÊS



Mesmo que agora busque um novo laço
com que prender-me, é certo que do antigo
Não me liberto do apertado abraço
Um fogo apaga outro, sempre digo:
E tu, que és meu carrasco nesse passo,
Faz que assim seja, Amor, mas não comigo.
Gaspara Stampa

O presente texto é o desfecho de meses de leitura da obra de Rainer Maria Rilke e da visita a um castelo onde ele começou a gestar uma obra imprescindível para a história da poesia, o Castelo de Duíno, em Trieste. E lá, no castelo, vinha à memória da autora dessas páginas, trechos do ensino de Lacan, no qual ele relacionou o ato analítico com a poesia. Ainda há mais um motivo para escrever o texto: a descoberta, lá, de que Marie Bonaparte frequentou o castelo, tendo ainda livros de psicanálise que retratam seus períodos de leituras freudianas, espalhados pelos cômodos do castelo. A autora foi para encontrar Rilke, e o inesperado foi encontrar Freud.

A poesia é uma violência à língua
Em seu seminário O saber do psicanalista, proferido no final de 1971 e em 1972, na capela do Hospital Sainte-Anne, Lacan está às voltas com a lógica matemática. É preciso revirar a coisa, diz em sua aula de 6 de janeiro de 1972, ainda que a lógica “possa tornar o mundo odioso”, permite não se deter no senso comum, em um sentido fácil. A lógica permite a Lacan apreender o objeto a como “inteiramente estranho à questão do sentido”. Uma outra razão, e escreve RESON[i], como Francis Ponge, como esse grande poeta o faz. Em seguida, após apresentar o poema de Tudal – que já estava citado em Função e Campo da Fala e da linguagem em Psicanálise – diz que ele é um poeta “não desprovido de talento”. Francis Ponge, para Lacan, é um grande poeta[ii], e Antoine Tudal, um poeta menor. Nessa aula desse seminário, há um elogio a um poeta, e certo menosprezo ao outro. Por que? Essa questão me ocupou enquanto estudava para o seminário que proferi em agosto de 2015, no Fórum do Campo Lacaniano de Fortaleza.
Ensaio uma resposta: Ponge garatuja com as palavras. Nessa aula, ele mesmo, Lacan, brinca com o poeta, papua, papuasia. Ele quer abordar a linguagem na sua função topológica (aula de 3 de março de 1972). Isso lhe permitiu, inclusive, fazer sua proposição da lógica da sexuação. “Isso permitiria à psicanálise operar sobre o real, único a estar mais além da linguagem”.
Em Rumo a um significante novo (1977), afirma que a psicanálise tem efeitos de sentido – ela tem relação a isso que é o significante – e isso faz dela uma escroqueria. Mas não mais escroqueria que a poesia. “A poesia se funda precisamente nessa ambiguidade da qual falo e que qualifico de duplo sentido”. (aula de 15 de março de 1977) A poesia faz uma violência à cristalização do uso da língua. A poesia amorosa marca essa violência, alega Lacan. E para isso cita Dante. “A poesia joga inocentemente com o imaginariamente simbólico e com isso ela mostra a verdade sobre a relação sexual”. E, mais adiante nesse seminário, dirá que a verdade é poética, assim como uma interpretação, ela desmancha um sentido.
Por isso Lacan diz que o psicanalista pode ser um poata, um poeta do ato. É a aposta de Lacan de que o ato analítico pode ser uma violência ao sentido, como a poesia também o é, ao sentido e, consequentemente, à língua. “É à medida que uma interpretação justa desmancha um sintoma, que a verdade se especifica em ser poética”. (aula de 19\04\77)

Rilke e o Duíno
Rainer Maria Rilke escreveu suas Elegias do Duíno entre 1912 e 1922. Dez anos para gestar alguns dos mais belos poemas que alguém já escreveu. Seu livro retrata o amor, as perguntas sobre a existência, sobre o tempo, a busca do absoluto, a angústia diante da morte, a solidão, a nostalgia e o amor perdido. O homem, esse anjo terrível, que “vive sem amparo neste mundo definido”. Depois de passar por Roma, Nápoles, Florença, atormentado por seu amor infeliz por Lou Andreas-Salomé, chega a Trieste e ao castelo.
Escreveu as primeiras elegias no Castelo do Duíno, nos arredores de Trieste, quase fronteira com a Eslovênia. O castelo é majestoso, construído sobre um rochedo, numa ponta de terra que avança mar adentro, com todas suas janelas penduradas sobre o Mar Adriático. Nele, Rilke perdeu o bloqueio criativo em que estava e começou a gestar essa obra. O Castelo é propriedade há séculos da família de nobres Torres e Tasso, e já foi local de veraneio para muitos escritores, artistas e nobres através dos tempos. Uma parte da Divina Comédia foi escrita lá; depois de uma temporada de férias nele, em 1914, Francisco Ferdinando saiu do castelo, pegando o trem para ser assassinado em Sarajevo.
Sabemos da paixão que Rilke declarou por Lou Andreas-Salomé. Escreveu para ela as palavras mais lindas que um homem pode escrever a uma mulher.  “Apaga-me os olhos: ainda posso ver-te, tranca-me os ouvidos, ainda posso ouvir-te.” E continua para, no fim do poema, afirmar que a traz em seu sangue. E em outro, escreve que o amor de um ser humano por outro é a experiência mais difícil para cada um de nós, “o mais superior testemunho de nós próprios, a obra absoluta em face da qual todas as outras são ensaios”. Quando a conheceu tinha vinte e dois anos, ela era quinze anos mais velha que ele. Estava casada, já tinha descartado a proposta amorosa de Nietzsche, já tinha fugido de casa e da terra pátria, a Rússia. E já era uma escritora conhecida. Ainda não tinha se aproximado de Freud e da Sociedade Psicológica das Quartas-feiras. Depois de um desentendimento com ela, ele viaja à Itália. Rilke chegou a mudar de nome sob a influência dela: ela achava que René não lhe ficava bem, não para um poeta que iria ter a projeção que ele teria no futuro. Foi ela a primeira pessoa a ver nele o escritor que ele iria se tornar. Mas não queria se separar do marido, o acomodou em uma casa próxima de sua casa e se encontravam muito, viajavam juntos, foram duas vezes juntos a amada Rússia, terra natal dela. Uma vez os três, Rilke, Salomé e o marido. E a segunda vez só Rilke e Salomé. Para essa viagem ele se preparou, estudou sobre a Rússia. E ela o apresentou a Tolstói.
Se essas primeiras elegias foram gestadas em um momento de turbulência em seu relacionamento com Lou Andreas-Salomé, se ela foi a inspiração para a elegia (“sim, as primaveras precisavam de ti”) o nome de mulher que aparece na primeira elegia é o de Gaspara Stampa. O poeta escreve que está distraído, à espera da amada. E se a nostalgia vier, ele cantará as amantes, essas abandonadas “que te parecem mais ardentes que as apaziguadas”. E mais adiante: “Com que fervor lembraste Gaspara Stampa, cujo exemplo sublime faça enfim pensar uma jovem qualquer, abandonada pelo amante: por que não sou como ela? Frutificarão afinal esses longínquos sofrimentos? Não é tempo daqueles que amam libertar-se do objeto amado e superá-lo, frementes?”
Gaspara Stampa (1524-54), poetisa do Século XVI, nascida em Pádua, apaixonada aos vinte e quatro anos por um conde, por quem tinha uma devoção desesperada. Tiveram um relacionamento breve e depois ele não mais retribuiu seu amor. Ela endereçou a ele, Conde Collaltino, seus poemas de amor. E o intitulava de “meu ilustre senhor”. “Extinta” sua paixão pelo conde, se apaixona por Bartolomeu Zen, e escreve para ele quatorze sonetos de amor. O amor pelo veneziano Bartolomeu suplantou seu sentimento desesperado pelo conde? Creio que a epígrafe desse texto, parte de um soneto de Gaspara, responde a pergunta.
Ela morreu aos trinta anos, depois de quinze dias de uma febre intensa que não cedia. Dois anos depois que Collaltino tinha se casado. Na verdade, sua febre intensa foi o amor. Uma amante, uma ardente, febril, diferente de uma apaziguada, como Rilke retrata em sua primeira elegia.


Marie Bonaparte e o Duíno
Essa princesa grega e dinamarquesa, aparentada de várias famílias reais da Europa, sobrinha-bisneta de Napoleão Bonaparte, riquíssima, conheceu Freud quando tinha cerca de quarenta anos. Estava à beira do suicídio e sua análise com Freud, que durou mais de 15 anos, não apenas salvou sua vida, mas lhe trouxe uma paixão e entusiasmo que carregou até o final: a psicanálise. E é graças a ela que Freud e sua família não foram exterminados pela Gestapo e que a obra freudiana pôde deixar a Áustria e chegar intacta a Londres. Ela investiu sua energia, seu dinheiro e seu tempo para fazer a psicanálise prosperar. Foi a grande embaixadora da Sociedade Psicanalítica de Paris, afirma Elizabeth Roudinesco. Sua importância para a psicanálise ter prosperado na França também é inquestionável.
Em 1949, Eugênia, a filha de Marie, casa-se em segundas núpcias com o Príncipe Raymond de Thurn and Taxis. O príncipe é o herdeiro do castelo de Duíno. E três anos depois nasce Carlos Alessandro della Torre e Tasso[iii]. É esse neto que foi entrevistado pela jornalista italiana Francesca Graziano e que conta a ela várias histórias dessa avó famosa. Não há no livro nada que conte sobre suas estadias no castelo.
Segundo Roudinesco, “com essa mulher que o cumulava de presentes, Freud manifestou o seu extraordinário gênio clínico. Gostava tanto dela que, para recompensar sua fidelidade, ofereceu-lhe, como fizera a Lou Andreas-Salomé, um dos famosos anéis reservados aos membros do Comitê Secreto”. Assim, tanto Lou Andreas-Salomé quanto Marie Bonaparte, as duas mulheres a quem Freud tinha tanta confiança, se enlaçam, cada uma a sua maneira, à história do Castelo de Duíno. E também, indiretamente, Gaspara Stampa, pois Rilke a colocou no castelo, em sua primeira elegia do Duíno.

E deixando o castelo
E também podemos pensar em uma quarta mulher envolvida com o castelo, essa que vos escreve, que leu toda essa história e quis ir até lá, andar por seus cômodos e olhar o Adriático, esse gigante azulado que bate sobre as rochas, sobretudo nas grandes noites de verão, “as grandes noites de verão, e as estrelas, as estrelas da terra”, escreveu Rilke. Para ela, essas estrelas também pareceram maiores nessas noites que passou em Trieste. Talvez influenciada por Rainer Maria Rilke, talvez influenciada pela história, achou que a estrelas brilhavam para ela.  

Referências bibliográficas
Graziano, Francesca. Marie Bonaparte, la Principessa della psicoanalisi. Trieste: Edizioni Fenice Trieste, 2005.
Lacan, Jacques. Função e Campo da Fala e da linguagem em Psicanálise. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.
_______ O saber do psicanalista (1971-72). Inédito.
______ Rumo a um significante novo. Opção Lacaniana. São Paulo: Edições Eólia, número 22, agosto de 1998.
Ponge, Francis. A mimosa. Coleção Poetas do mundo. Tradução e notas de Adalberto Müller. Brasília: Editora da UnB, 2003.
Rilke, Rainer Maria. Elegias de Duíno. Rio de Janeiro: Editora Globo. 4 ed. Tradução Dora Fereira da Silva. s/d.
Rilke, Rainer Maria; Andréas-Salomé, Lou. Correspondência amorosa. Lisboa: Relógio d’Água, 1994.
Roudinesco, Elizabeth; Plon, Michel. Dicionário de Psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.
Stampa, Gaspara; Labé, Louise; Browning, Elizabeth Barrett. Três mulheres apaixonadas. São Paulo: Cia das Letras, 1999.
Thurn und Taxis, Marie von. Ricordo di Rainer Maria Rilke. Trieste: Edizioni Fenice Trieste, 2005.



[i] A homofonia entre résonner [ressoar] e raisonner [raciocinar] permite o jogo de palavras entre réson e raison.

[ii] E não apenas para Lacan. Ponge ganhou vários prêmios literários e ganhou reconhecimento na França e no mundo. Foi lido, debatido, e muitas teses e livros de autores famosos tiveram por tema sua obra. Dentre elas assinalo a de Derrida e de Haroldo de Campos. Ponge brinca com os significantes, e usa a palavra em sua sonoridade como Manoel de Barros também o fez. Em seu livro A mimosa, usa o arbusto, a mimosa pudica, e diz o porquê: minha sensualidade infantil acordou sob os sóis da mimosa. E desfia os significantes: mimosa, mimosa sans moi, mimésis, le mimosa et moi, le mimosa lui-mêmê. E ainda: como em tramaga há trama, em mimosa há mimo [como dans tamaris il y a tamis, dans mimosa il y a mima]. É uma poesia tão difícil de ser traduzida. Nessa edição que tenho, abundam notas de rodapé. E não poderia ser diferente. Uma pequena curiosidade: em agosto passado, no seminário que proferi em Fortaleza, comentei a citação de Lacan sobre Francis Ponge e falei da mimosa pudica. Em meu Estado, MS, a mimosa é chamada de Dorme-dorme. Os colegas cearenses deram dois nomes pelos quais o arbusto é conhecido no Estado: Acorda-Malícia-teu-pai-morreu. E também: Maria-fecha-a-porta-que-teu-pai-vem-bêbado. Enfim, de pudica, no Ceará, a mimosa virou malícia, outro deslizamento possível. E tem pai que não acaba mais nas nominações. Um brinde a poética cearense.    

[iii] Em algumas partes desse livro que consulto, o sobrenome está em inglês [Thurn and Taxis] e noutras em italiano [Torre e Tasso].