sábado, 4 de junho de 2016

Trieste, a cidade amada dos escritores. Nela deixei um pedaço de minh’ alma

Crônica que escrevi para o midiamax esta semana



A cidade de Trieste ficou colada à minh’ alma há muitos anos, entranhada na poesia de Rainer Maria Rilke, o maior poeta de todos os tempos. Para vocês entenderem como precisava ir até lá, conto uma história: em minha adolescência gostava muito de poesia, talvez até mais do que atualmente. A poesia falava de amor, de novos horizontes para uma vida, era minha janela para o mundo. Descobri naquele momento o livro Elegias do Duino, de Rainer Maria Rilke. Ele escreveu suas Elegias entre 1912 e 1922. Dez anos para compor alguns dos mais belos poemas que alguém já escreveu. Depois de passar por Roma, Nápoles, Florença, atormentado por seu amor infeliz por Lou Andreas-Salomé, chega à cidade de Trieste e ao castelo que fica nos seus arredores, quase fronteira com a Eslovênia.
Essa primeira elegia começa com um apelo: “Quem, se eu gritasse, entre essa legião de anjos, me ouviria?” E mais adiante, outra pergunta: terna e enganosa, quando o vento é pleno nos espaços do mundo, a noite é mais leve para os que amam? E a seguir começa sua declaração de amor para Salomé: as primaveras precisavam de ti.
Não contarei mais sobre esse livro. Ele marcou minha adolescência, mas não sabia onde ficava o Duino. Imaginava que fosse um lugar, mas nunca pensei, até alguns anos atrás, que fosse um castelo nos arredores de Trieste. Não deve ter interessado a uma adolescente de Rio Brilhante tal lugar nos confins do mundo. Nunca imaginaria que um dia iria lá e da janela da sala aonde Rilke compôs suas primeiras elegias, contemplaria o Mar Adriático.
Anos atrás li um texto de Freud em que cita Trieste. Freud estava lá com seu irmão, nela comete um lapso e isso lhe permite chegar a Atenas. A partir desse texto fui pesquisar sobre Trieste, em um projeto de imitar a viagem de Freud, um século depois, e descubro que Duino é um castelo e está nos arredores de Trieste. Comecei a sonhar com o castelo e decidi ir até lá. Só consegui fazê-lo ano passado.
O castelo é majestoso, construído sobre um rochedo, numa ponta de terra que avança mar adentro, com todas suas janelas penduradas sobre o mar. De suas janelas, a paisagem é sempre o Mar Adriático, mar azul intenso, com ventos brandos que desarrumam os cabelos; mar cheio de barcos que passam deixando rastros de espuma. Rilke escreveu sobre grandes noites de verão que passou no castelo, dessas noites sob o brilho das estrelas na terra. Também para mim, nas minhas noites em Trieste, essas estrelas me pareceram maiores.



 O Castelo é propriedade há séculos da família de nobres Torres e Tasso, e já foi local de veraneio para muitos escritores, artistas e nobres através dos tempos. Uma parte da Divina Comédia foi escrita lá; depois de uma temporada de férias nele, em 1914, Francisco Ferdinando saiu do castelo, pegando o trem para ser assassinado em Sarajevo.
E então a viagem deixou de ser apenas a imitação dos passos de Freud. Depois disso, encontrei-me com a obra de dois escritores italianos – Ítalo Svevo e Claudio Magris – que são triestinos e falam de sua cidade. E James Joyce, o genial escritor irlandês, passou uma temporada na cidade e saiu dizendo que sua alma era triestina. Também a minha. Anche la mia, Joyce. Há uma bela estátua de Joyce, com sua frase impressa nela, em um lugar estratégico: sobre uma ponte de um dos canais em que o Mar Adriático se intromete na cidade. Ao final da tarde, com o pôr-do-sol, James Joyce fica iluminado pela luz que o Adriático projeta. Fabiana Silvestre, minha amiga, tirou uma bela fotografia desse instante mágico em que abracei James Joyce em um pôr-do-sol triestino.
Trieste é uma cidade italiana desde 1918, antes fazia parte da Ístria, delimitação geográfica de um reino que não existe mais, e era a única cidade portuária do poderoso império dos Habsburgos, que ruiu com a I Guerra Mundial. Cidade pequena, limpa, ordeira, fora do circuito das grandes cidades turísticas italianas, como Roma, Florença, Veneza, Nápoles, Milão. Enfim, quase sem turistas. Calma, com uma praça central grandiosa, a Praça da Unidade da Itália, em comemoração a essa unificação italiana. Com muitas fontes e estátuas enormes. Minha preferida: a de Poseidon, em uma fonte, olhando para a biblioteca pública. Saindo do Brasil não é fácil chegar até lá de avião. Então o melhor jeito foi pegar trem. De Milão são quase quatro horas de viagem, tendo que fazer baldeação em Veneza. Afinal, ela fica em uma ponta da Itália em que no passado nem era Itália, praticamente nos Bálcãs. Tem ruínas preservadas do Antigo Império Romano, com muitas ilhas lindas em seus arredores, como a ilha de Múggia, por exemplo. Mas o difícil não é chegar até Trieste, o difícil é deixá-la. Tivesse eu ido em outro tempo de minha vida e teria ficado por lá. Voltei, mas deixei um pedaço da alma lá.