quarta-feira, 20 de outubro de 2021

Uma conversa no encontro de dois oceanos

 


            Um homem desconhecido com o qual conversei em um navio, próximo do ponto mais meridional da terra, depois da cidade posicionada no fim do mundo, contou-me que tinha ido até aquela cidade para turismo. Apaixonou-se por ela, pela língua e resolveu fazer dela sua casa. Voltou para Riga, na Letônia, organizou suas coisas e se mudou para Ushuaia dois meses depois. Abriu uma fábrica de sardinhas e agora era feliz nessa cidade escolhida pelo seu coração.  Está ali porque  todo eslavo que chegava à Patagônia, as agências de viagem o chamavam para ser intérprete de russo. Logo essa língua, que não era a sua, era a do vizinho conquistador. Já tinha outras duas, a maternal e o castelhano que tinha amado, não essa. Mas ganhava dinheiro falando russo. Estava no navio como intéprete de um casal de Moscou. E eu quis saber mais sobre Riga.

Isso aconteceu anos atrás, antes de eu ir até a Estônia e navegar pelo Mar Báltico. Quando estive tão perto de Riga, ficava lembrando do que ele tinha me contado sobre ela. Cheguei a Tallin, a trezentos quilômetros de Riga e não quis ir conhecê-la, a cidade abandonada por ele.

Com seus imensos olhos azuis, brilhando de alegria, contou-me que ainda acordava, às vezes e por segundos, e achava que estava no bairro em que morava na infância, o Zolitude. Eu perguntei se, em espanhol, era solidão – a sonoridade da palavra era tão parecida – e disse que sim. Depois se mudou e foi morar em uma casa perto da biblioteca da cidade, e também da ponte Akmens (anotei tudo que ele me falou em meu diário de viagem).  Depois dos segundos nostálgicos com a solidão da infância, acordava para sua cidade atual, para a casa de Ushuaia, em que, de uma janela do andar de cima, enxergava, à distância, a cordilheira reinando sobre tudo.

Fiquei pensando em alguns momentos, nos dias seguintes, sobre o que me contou sobre seus sonhos com o bairro da infância, o nome fazia parecer um chiste, chamava-se Zolitude. Meu interesse era freudiano. E lembro que cheguei à conclusão, à época, que sua saudade era do infantil perdido, não da cidade. Deve ter sido por isso que estando perto dessa cidade abandonada por ele, nem quis ir conhecê-la.

E lembrei novamente do letão de olhos azuis, anos atrás, pesquisando sobre os escritores da região báltica. Descobri que houve um letão aventureiro e caçador, que escreveu quatro livros sobre suas aventuras na América do Sul. Deixou Riga e foi conhecer a Argentina, no começo do século XX. Um tanto entediado com Buenos Aires, acabou chegando ao Centro-Oeste do país, veio caçar oncas-pintadas no Pantanal. Sasha Siemel foi dar uma palestra na Pensilvânia sobre suas aventuras nesse fim de mundo do Pantanal; casou-se com uma fotógrafa americana e foi morar com ela em Corumbá. Moravam em uma casa flutuante, ancorada às margens do Rio Miranda. Deu palestras e escreveu livros sobre suas errâncias.

Sasha Siemel, no começo do século passado, de Riga para o fim do mundo que era Corumbá, vivendo num barco, no Rio Miranda, escreveu um livro em que o garoto letão, que morava na Zolitude e passou a morar perto da biblioteca, e nela entrava toda semana, encontrou e resolveu retomar os passos do aventureiro escritor. Mas diferente do conterrâneo, gostou de Buenos Aires, da Argentina, e resolveu descer até o extremo sul. E fez de outro fim do mundo, o seu mundo. Esse romance que inventei, encadeando duas vidas, fiz para responder à pergunta que me surgiu: será que ele leu os livros de Sasha Siemel?  Um romance é a história de um destino completo, escreveu Macedônio Fernandez. Lembrei agora do portenho, já que pensei em Buenos Aires.