domingo, 29 de novembro de 2015

TRÁGICA 3: Sobre a importância de um irmão


                                                                             


          Ontem, no Teatro Aracy Balabanian, aqui em Campo Grande, assisti TRÁGICA 3. A peça, dirigida por Guilherme Leme e patrocinada pelo Ministério da Cultura e pela Petrobrás, apresenta três mulheres trágicas das tragédias gregas: Electra, Medéia e Antígona. Assim está a ordem no caderno que nos apresenta a peça, porém, na peça, a ordem de apresentação dessas trágicas é a seguinte: primeiro Antígona, apresentada por Letícia Sabatela, a jovem tebana, filha de Édipo, emparedada viva por descumprir a ordem de Creonte, seu tio, e enterrar o irmão Polinice, proscrito pelo tio tirano. Depois a Electra da atriz Miwa Yanagizawa, uma irmã que espera o retorno do irmão Orestes, que vingará a morte do pai Agamenon, pela própria mãe Clitemnestra e seu amante Egisto. Electra salvou o irmão quando criança, mandando-o ao exílio. E vive como escrava, banida do palácio real, ela a filha do assassinado rei Agamenon. E espera sua vingança. E será pelas mãos desse irmão, que ela tanto ama e espera que sua vingança se concretizará.
E a terceira trágica, Medéia, a mulher que abandonou tudo pelo amor de um homem, o primeiro e único. Abandonou sua amada pátria, a Cólquida, que traiu um pai, matou um irmão e o despedaçou pelo caminho para distrair o pai, o rei da Cólquida, que reconheceu os pedaços do corpo do filho e assim Jasão escapou de sua fúria. Ela, exilada de tudo, casa-se com Jasão e os dois têm dois filhos, dois meninos. Vista pelo seu povo e pelos outros, os estrangeiros, como a bárbara, é aceita como refugiada e exilada em Corinto. Jasão, já em outras conquistas, vai se casar com outra, uma nova mulher nova. E aí começa a vingança de Medéia.
         Medéia é representada por Denise Del Vecchio, embora as duas atrizes que vieram antes tenham sido excelentes, Del Vecchio é de uma grandeza inigualável no palco. Ela é a mulher que está envelhecendo, que se desfez de tudo pelo amor a um homem. Perdeu a pátria, perdeu o pai, perdeu o irmão, e está disposta a perder esses filhos para vingar-se de Jasão. Tomará dele o que ele mais dá valor: os filhos que carregam seu nome, sua herança, sua honra. Se é que alguma o personagem carrega. Essas crianças, filhos amados seus, e ao mesmo tempo, filhos do homem que ela precisa destruir para cumprir sua vingança. A rival jovem, ela mata de um golpe só: manda seu vestido de noiva para que ela use para Jasão. Ele pede a jovem esposa que o coloque. O veneno colocado no vestido entra em seu corpo e ela se consome em chamas.
         A direção de Guillerme Leme consegue salientar a grandeza da vingança de Medéia. A disposição das três trágicas está perfeita. Enquanto Sabatella e Yanagizawa entram no palco com roupas claras, Medéia já entra de negro e trás na face a dor que deforma as feições. E o que mais gostei: colocando nessa ordem as trágicas, fica evidente a força dos laços fraternais. O amor por um irmão aparece em todas elas. A primeira, disposta a morrer para respeitar seu irmão. Fosse ele quem fosse, com avidez de poder, guerreiro insano a guerrear com o outro irmão, não importa, merece os ritos fúnebres. E ela pagará com a vida por isso. É por isso que ela é a imagem da ética. A ética dos laços sociais que se sobrepõem à lei instituída por um tirano. Sou psicanalista e por isso já li várias vezes Antígona. Lacan dedicou um ano inteiro de seu ensino a comentar sua ética.
            Depois, Electra, centrada no amor pelo pai e pelo irmão e no ódio à mãe, essa lasciva que pelas mãos de Egisto matou o marido, o pai de seus filhos, e se deitou com seu assassino e vive com ele, deixa ele se sentar no trono que seria de seus filhos. Uma mãe que passa a perna nos filhos por causa de um homem. Electra vai mostrar a ela, pelas mãos de um irmão, como os laços familiares são superiores a tudo.
            E Medéia, que dispôs de tudo por Jasão e foi traída por ele. Também já tinha lido Medéia  mas nunca tomei a peça pelo viés que o diretor nos apresenta. E essa foi a grandeza maior dessa peça. Pelo menos para mim: mais do que repetir a traição de Jasão com outra mulher, ela repete ‘Jasão, você me deve um irmão’. E o ator, que é quase só uma voz, do lado escuro do palco, responde: te dei dois filhos no lugar de um irmão. E mais adiante, ela repete: você me deve um irmão. E mais adiante, novamente, ela reclama a Jasão sua dívida: você me deve um irmão.
             Assim, a Medéia de Guilherme Leme, pode se perdoar de tudo, menos do que fez a um irmão. E mesmo tendo nova pátria, tendo marido, tendo filhos, não se apaga um irmão. E quando perde quase tudo, a caminho de perder, pelos assassinatos que cometerá, os filhos, seus últimos recursos – se é que os filhos são posse de sua mãe. Não vou entrar nessa contenda – aquilo do qual não se pode perdoar é ter sacrificado um irmão. Assim, a fala de Jasão é pura baboseira: dois filhos não valem um irmão. O que não quer dizer que valem menos. O que Medéia mostra é que não se faz uma equação disso. Um irmão é um irmão. E é um laço que não se suplanta por nada que venha a se adquirir na vida. Esse foi o viés novo que nunca antes tinha visto em Medéia e que a direção de Guilherme Leme e a atuação soberba de Denise Del Vecchio me deu.


quarta-feira, 18 de novembro de 2015

Fulgencio Argüelles e uma Asturias de poesias, flores, amores e dores

Fulgencio Argüelles é um psicólogo espanhol. Depois de um período em Madri, onde fez o curso de psicologia, regressou a sua terra natal, Astúrias, lugar de sua infância e juventude. E começou a escrever romances. Ganhador de vários prêmios de literatura. Um deles (Prêmio Café Gijon, de 2003) pela sua quarta novela, El palácio azul de los ingenieros belgas, que estou lendo agora.
O romance é uma narração da juventude de Nalo, aprendiz de jardineiro, em um povoado em Astúrias, durante o período franquista.
Nalo começa o relato com a morte do pai, O pai morre e ele começa a relatar sua história. A vida de todos os personagens circulam ao redor do palácio dos ricos belgas, donos da mina que existe no povoado, sua riqueza, sua língua estranha, seus banquetes, suas mulheres, uma delas tida como louca, cheia de segredos.

Nalo aprende sobre jardinagem com Eneka, o culto jardineiro que se casou com uma das ninfas do Olimpo, esse lugar que ele não sabe onde é.
A tristeza de todos é evidenciada pelo garoto que está ali, observando tudo. ainda que ignore os motivos, Eis um relato sobre o alcoolismo do avô Cosme: "..aunque el alcohol fuera capaz de privarlos de la tristeza, la vergûenza, el silencio y la soledad, por este ordem, nunca conseguiría redimirlos del peso de ciertos recuerdos, porque non hay alcohol suficiente sobre la tierra para anegar la memoria, así me lo había transmitido en no pocas ocasiones mi abuelo Cosme, quien andaba  en ese intento del olvido selectivo desde hacía años, y cuanto mas alcohol se ingería para olvidar más imposible resultaba el olvido y más desnudos se quedaban los recuerdos,..."
Por alusão, o pano de fundo é o período pré-revolucionário, que será sufocado pelos militares, antes de Francisco Franco. As diferenças sociais aparecem muito no romance: os ricos engenheiros e seus comensais, como moscas, zunindo às voltas do poder.
Lançado pela Editora Acantilado, em 2003.
Novela formidável.




domingo, 13 de setembro de 2015

Tchekhov em Sacalina


Aos trinta anos, médico e já escritor conhecido, Tchekhov vai até a Ilha de Sacalina, onde estava instalado o temível presídio czarista.
Desaconselhado por todos, que achavam uma loucura, ele foi. 
Em 1890 parte para Sacalina, atravessa a Rússia toda, antes de haver a Transiberiana, parte em abril e só chega em julho a esse ponto extremo da Rússia, já no Oceano Pacífico, quase Japão. 
Sua descrição da vida dos presos, e da família dos mesmos que vivem nessa ilha e em outras ao redor, é já uma amostra do escritor genial.
A descrição da miséria humana em um lugar da terra em que o frio torna quase impossível viver é impressionante. 
Tem frases como essa: "aqui, de qualquer forma, o clima é mais ameno, os matizes da natureza são mais suaves e um homem esfomeado e transido de frio encontra condições naturais menos adversas do que no curso médio ou inferior do rio."
Encontrar essa obra de Tchekhov foi um presente.



sexta-feira, 11 de setembro de 2015

Josefina é que era mulher de verdade

A doutora em filosofia por Oxford, Kate Williams, escreveu um livro excelente. JOSEFINA, lançado no Brasil ano passado, pela Editora LeYa, é um retrato do Século XVII na Europa, da Era Napoleônica, contado a partir de uma personagem principal, a imperatriz da França, Josefina, coroada pelo próprio Napoleão, depois de colocar a coroa em si próprio.
Há dois anos li parte da obra de René de Chateaubriand, literato e embaixador francês durante o império napoleônico, e os desvarios de Napoleão estão retratados ali. Mas Napoleão só veio a me interessar mesmo depois de julho, quando estive na Córsega, sua terra; estive na cidade onde nasceu, Ajaccio. Visitei a casa de sua família, onde viveu toda sua infância e parte da juventude, até se alistar no exército e deixar a ilha. Veio de uma família de comerciantes, gente simples, casa relativamente simples.  O que mais me impressionou na sua casa-museu foi um detalhe que pode ter passado em branco para tantos, mas não para uma psicanalista: aos nove anos, quando ganhou um cachorro, colocou o nome dele de Nero. E quando começou sua ascensão em Paris, depois de adquirir fama na guerra, massacrando austríacos, italianos, alemães, dizia aos quatro ventos que queria ser para os franceses o que Cézar tinha sido para o Império Romano. Arrisco a dizer que desde os nove anos a ambição dele já estava lá, de ser um imperador.
Só nisso ele tem em comum com Freud. Perdoem-me por comparar Freud com esse sanguinário e cruel homem. Também Freud veio de uma família de comerciantes, queria deixar seu nome na história e sonhava com a Itália. Mas Freud não se identificava com Nero e sim com Aníbal, que conquistava Roma e subjugava os romanos. Quase. Mas há uma diferença fundamental: Freud o fez com as palavras, com a escrita, com uma nova concepção sobre o sujeito. Ele, com seus estudos sobre a histeria, criou a psicanálise e mostrou ao mundo quem é o homem: senhor de nada, nem de sua mente, nem de suas emoções, nem de sua infância. O homem, um reizinho destronado. Napoleão, ao contrário, acreditava em seu poder de vida e morte sobre quase todos. Só não sobre Josefina.
Josefina nasceu na Martinica, uma crioula, como todos faziam questão de marcar. Chega a Paris com um casamento arranjado, tem com esse homem dois filhos. Come o pão que o diabo amassou: seu marido a desprezava, a achava uma cafona estrangeira, uma crioula da colônia. Sem beleza. O marido morre, ela fica pobre, sem condições de sustentar os filhos. Mas é jovem, bem arrumada, já se refinou um pouco e vira uma cocote. Vamos dizer assim, ela tinha uns amantes ricos que a sustentavam. Isso tem outro nome, mas o livro não o coloca em nenhum momento e nem eu vou dizer aqui.
Ela tem amigos na revolução - Luis XVI e Maria Antonieta tinham sido degolados há alguns anos. Ela é presa e sai da cadeia como uma revolucionária, com a moral em alta. Napoleão não tinha ainda trinta anos – ela era três ou quatro anos mais velha que ele – volta da guerra famoso. Não tinha tido ainda um relacionamento significativo.  Feio, baixinho, com sentimento de inferioridade, era tímido com as mulheres na mesma proporção em que era cruel nos campos de batalha. E essa mulher famosa, fina, que se tornou Josefina, deu atenção para ele, conversou com ele em uma festa, não o tratou como um corso caipira. Isso os dois tinham em comum: os caipiras, os rústicos das colônias, buscando aceitação na corte.
O livro de Kate Williams copia trecho de várias cartas que Napoleão escreve para ela. Ele foi louco de paixão por essa mulher. E só a largou porque ela não conseguiu lhe dar um filho. Ele teve um filho com uma amante, que não reconheceu, e depois que se divorciou de Josefina para casar com uma princesa, teve seu filho de sangue real. Mas seus súditos se viraram contra ele quando o sonho dourado da França começou a ruir. Foi preso e exilado. Nesse momento em que o império napoleônico vira bolha de sabão, Josefina sai de cena, morrendo aos 51 anos, deprimida e chorando todo dia por ter sido abandonada por Napoleão.
 Napoleão escreve a esse filho que teve com a princesa da Áustria, Maria Luisa, desejando a ele um futuro de glória, que representasse seu nome, Napoleão. O jovem, que ainda em vida Napoleão Bonaparte deu o título de ‘O Rei de Roma’, vive em Viena, com a família da mãe e morre aos 21 anos, de tuberculose.
De tudo o que mais me impressionou foi a história de Josefina. Era uma crioula da Martinica, uma mulher sem cultura (detestava estudar, ler), sem beleza, com os dentes estragados pelo excesso de açúcar nos seus tempos de infância na fazenda (não mostrava os dentes em público, pois eram pretos) e se tornou a mulher mais cobiçada, invejada, copiada, da Europa. Inclusive pela paixão louca que Napoleão lhe devotava.
Era uma perdulária, vivia endividada, por mais dinheiro que tivesse, sempre gastava mais. Comprava 900 vestidos por ano, 50 pares de luvas em um mês. Tinha três vezes mais joias que Maria Antonieta teve. E depois que virou divorciada passou a se interessar por arte e paisagismo. Encomendou ao escultor Canova a escultura das Três Graças. Essa obra, que ficou tão famosa, foi muito cobiçada logo após sua morte e, comprada pelo Czar da Rússia, hoje está no Hermitage. Tive oportunidade de ver a obra em 2013, quando estive em S. Petersburgo.
Eu queria saber por que os tiranos, quando saqueiam cidades, uma das primeiras coisas que querem fazer é confiscar as obras de arte. Só pelo símbolo de poder mesmo, porque Napoleão era um grosseirão e não estava nem aí para arte. Dava tudo de presente para Josefina, que soube guardar e cuidar dos quadros caros em sua casa de Malmaison. Depois do divórcio, uma parte desses quadros ela doou a um museu de Paris e a outra parte manteve consigo mesma.
Para mim ficou como um exemplo: uma mulher que superou sua própria história, fez-se de chique sem o ser, de bonita sem o ser, de culta sem o ser. Um engodo? Uma farsante? De forma nenhuma. Do nada, de tudo o que lhe faltava, construiu seu nome. É a história de toda mulher.


                                                                      

quinta-feira, 4 de junho de 2015

A cadelinha Vitória: a inveja que o ser humano tem do animal



Escrevo esse texto por três motivos. O primeiro deles é para acalmar uma noite de sono ruim. Acordei com a Cadelinha Vitória chorando de dor em meu pesadelo às quatro horas da madrugada. Para os que não são de Campo Grande conto a história na sequência cronológica: dias atrás, adolescentes torturaram uma cadelinha, mantendo-a presa e arrancando um pedaço de seu couro e, ainda, quebrando suas patas. Agora se sabe que a história não foi bem assim: uma parte do couro foi retirada em um tratamento veterinário há tempos, e a cadelinha foi abandonada por sua dona em um terreno baldio. É nele que uma testemunha viu a cadelinha sendo torturada por alguns jovens. Enfim, agora a cadelinha está internada em um Pet Shop se recuperando. Foi salva por duas mulheres que têm como causa cuidar de animais abandonados e maltratados. Esta semana escutei vários pacientes me contarem essa história. Li essa história no site de notícias e foi comentário entre amigos. É um dos temas onipresentes da cidade esta semana.
O segundo motivo porque escrevo é que minha amiga Andréa Helena me pediu um poema. Essa corrente que tem no facebook, que você pede poesia a três pessoas. Detesto essas correntes, essa rede social inventa cada besteira. Uma semana você tem de saber qual é a sua cidade, na outra que animal você é, na outra quem é sua alma gêmea. Pelo menos essa de agora eu gostei. Estou vendo as poesias que as pessoas colocam; gostei tanto de algumas que até copiei. Não gosto dessas redes estilo ‘você recebeu algo e passe adiante’, mas gosto demais de poesia e não posso deixar o pedido de minha amiga xará sem resposta.
E o terceiro motivo é que ando há mais de um mês quase obcecada com os poemas de Rainer Maria Rilke. No momento, as Elegias do Duíno, que ele escreveu no Castelo Duíno, construído à beira do mar, nos arredores da cidade de Trieste. Contemplando o Mar Adriático, escreveu dez elegias que são de uma beleza indizível. Com a oitava delas, que li ontem à noite, retomo o primeiro motivo: a cadelinha Vitória.

Já li vários comentários sobre esse episódio, tentando entender a crueldade dos jovens. Alguns dizendo que eles serão psicopatas. É uma possibilidade, mas não a única. Sabemos de descrições de historias de psicopatas que eles começaram torturando e matando animais, para depois passar a seu semelhante. Mas também escutamos na clínica sujeitos adultos até hoje se culpando de um gesto violento que tiveram na infância ou adolescência, uma violência contra um animal, contra um irmão, um amigo, uma violência que fez ou que testemunhou sem fazer nada. Uma palavra mal dita, que soou como um açoite, maldita, a ser expiada uma vida inteira. Enfim, nada de dizer que os adolescentes serão psicopatas. O futuro de alguém está aí, aberto, para ser construído. Pode ser maldito, mas pode ser expurgado.
Eu queria entender esse episódio a partir da inveja. O ser humano tem inveja desde cedo. E ter inveja não quer dizer que vai torturar. Santo Agostinho já mostra em suas Confissões a primeira inveja: a criança pequena, olhando com invidia, o bebê ao colo, colado no peito que outrora foi seu. Isso justifica tantas brigas entre irmãos. Mas também muito cuidado e proteção, para se redimir da inveja. Poderia dar outros exemplos, mas só consigo pensar um meu: diante de uma beleza de mousse de maracujá ou sorvete Hangen Daz, tem gente que diz ‘obrigada, não gosto’. Morro de inveja.
E volto às Elegias de Duíno. Na Oitava elegia, Rilke afirma que o ser humano tem inveja dos animais - ele só faz alusão a palavra, sou eu a dizer claramente. Nosso olhar é revertido como uma armadilha para trás, “pois desde a infância desviamos o olhar para trás e o espaço livre perdemos, ah esse espaço profundo que há na face do animal. Isento de morte.”  Nós, humanos, só vemos morte, o animal vê um livre caminho à frente, pois não tem consciência da morte. “Diante de si tem apenas Deus e quando se move é para a eternidade, como correm as fontes.”  O animal espontâneo ultrapassou seu fim, escreve Rilke. Os amantes sentem a presença obscura da morte, às vezes “há um descerrar-se atrás do outro....Mas, o outro, como superá-lo?” Vemos no animal a liberdade que  em nós mesmos, humanos, obscurecemos.
E ele diz da mosca feliz, da quase-certeza do pássaro, que pertence a dois domínios e tem a alma liberta. E até mesmo o morcego, que espantado de si mesmo, fende o ar, tal taça partida.
“E nós, espectadores de tudo e sempre
Voltados para tudo, nunca de fora.
Saciados, ordenamos. Mas tudo se desfaz.
Novamente insistimos e nós mesmos passamos.
Quem nos desviou assim, para que tivéssemos
um ar de despedida em tudo que fazemos? Como aquele que
partindo se detém na última colina para contemplar
o vale na distância – e ainda uma vez se volta
hesitante, e aguarda  - assim vivemos nós
numa incessante despedida.”

Mas não o animal, para o animal ele escreve:
“Há no entanto esses olhos calmos que o animal levanta,
Atravessando-nos com seu mudo olhar.
A isto se chama destino: estar em face
do mundo, eternamente em face.”

Aliás, seguindo essa elegia de Rainer Maria Rilke, todo animal devia chamar-se Vitória.


domingo, 3 de maio de 2015

Sobre a Indonésia

                                                                         

A Indonésia está muito em voga no facebook no momento por causa dos dois brasileiros condenados à morte por tráfico de drogas. E muito se tem falado da crueldade de um Estado em executá-los. Ainda mais nesse caso mais recente, em que o jovem estava delirando, em surto psicótico, como a família e os advogados sustentaram.
Antes de fazermos uma opinião sobre o país é preciso entender a história. Eu sou sempre pela história. Quando escuto como psicanalista, escuto uma história para entender como o sujeito age como age, o sintoma que tem. Ajudo meus pacientes a construírem sua história. E antes de entender um fenômeno social, também tem de se entender a história.
Sugiro a leitura de dois livros. Os dois de V. S. Naipaul. Um escritor formidável – Nobel de Literatura de 2001 – que tenta entender o islamismo na Ásia. O primeiro livro retrata sua viagem ao Irã, Paquistão, Malásia e Indonésia em 1981 e chama-se Entre os fiéis. O segundo é o retorno dele a esses países em 1998: Além da fé.
Vou fazer um resumo do resumo do que nos conta sobre a Indonésia, depois de andar por Jacarta e suas aldeias no interior, de conversar com pessoas, saber suas histórias e de seus antepassados. O islamismo que floresceu depois da década de 60 do Século XX, um islamismo imperialista, que tenta negar a história anterior do povo, um islamismo político, é fruto de uma história de colonização que começa no Século XVI e que tem nos holandeses sua primeira opressão. O islamismo entra no país quase no mesmo período que os holandeses, mas estes últimos foram tão tiranos, que os seguidores da religião árabe, dos ensinamentos do profeta, sentiram-se também dominados.
E foram os holandeses que levaram o cristianismo, religião dos imperialistas, e tentaram com ele apagar o passado budista, hinduísta, animista dos indonésios. Em 1942 os japoneses dominaram o país com fúria e violência; muita gente foi para a prisão por se opor ao regime. Os japoneses mandaram destruir os monumentos que lembravam o domínio holandês.
Mas o Japão perde a guerra e é afastado do país pelo poderio militar, tendo à frente Sukarno. E até 1965 ele conduz o país e cada vez mais o islamismo se fortalece. Sobretudo entre os jovens. Na ânsia por liberdade, os jovens vivem cada vez mais a fé pura, de um islamismo Estado, político. O islamismo surge como uma mudança. Grande paradoxo.
Naipaul encontra nas pequenas cidades e aldeias do interior, uma religião compósita, feita de budismo, animismo, hinduísmo, cristianismo e islamismo. O islamismo não conseguiu entrar com força entre o povo simples, os camponeses. Eles continuam adorando seus antigos deuses, seguindo suas tradições. Dizemos em psicanálise que eles mantêm seus ideais do Eu.
Querem saber o que os EUA fizeram com um homem à espera de receber a injeção letal e que estava em franco surto psicótico? Tentaram dar a ele antipsicóticos, como o fizeram durante o julgamento, para que ele entendesse o contexto em que estava sendo incriminado. Só não puderam executá-lo delirante porque os direitos humanos não o permitiram.
Qual a diferença entre a Indonésia e os EUA quanto à pena de morte? Na essência, nenhuma: de um lado injeção letal, com uma morte mais asséptica, e na Indonésia, 12 tiros. Não concordo com pena de morte. Seja no tiro ou na injeção. Assim como não concordo com presos em condições sub-humanas como vivem no Brasil. Se a meta é resgatar a humanidade, é preciso tratar com humanidade. Isso não é condescendência, é responder com respeito a quem precisa saber que não se age com barbárie. Aliás, saber que todo ser humano deveria carregar consigo, já que ninguém é uma ilha.
Só para terminar, sugiro ler os dois livros de Naipaul. São formidáveis.

E fiquei com uma pergunta que não terá resposta: se alguém quer fazer tráfico de drogas, por que logo na Indonésia? Que desígnio a escrever para a própria vida! Há sempre uma história por trás desse ato. Também nisso seria preciso compreender a história.

Ida e seu sacrifício cristão



Ida, filme polonês de 2013, dirigido por Pawel Pawlikowski, ganhou o Oscar de Filme estrangeiro desse ano. Já tinha ganhado ano passado dois prêmios, mas teve sua fama estendida após o Oscar e suscitou acaloradas polêmicas em seu país. Os poloneses não gostaram muito de se ver nele, e que seu país fosse exposto no mundo inteiro pela questão judaica. Nele, cristãos mostram-se indiferentes ao destino dos judeus e um deles mata a machadadas uma mulher e uma criança judias só para ficar com a casa delas. Essa cena não é mostrada, ela faz parte da história a ser resgatada no tempo atual em que a ação se desenrola. O filme se passa na década de 60 do século XX, mais de uma década depois de terminada a II Guerra Mundial.
Antes de entrar no debate sobre o filme, faço algumas considerações sobre o país. Uma cena sobre a Polônia que li e me marcou: o jornalista polonês Ryszard Kapuscinski, que viveu décadas de sua vida como correspondente na África, conta em seu livro “Ébano, minha vida na África” que uma vez um africano disse para ele que ele, homem branco, não sabe o que é ser escravizado por outro povo. Ele respondeu: sei sim, meu povo já foi oprimido por três outros povos. O africano teve descrédito e desconfiança com o que ele tinha dito, não achava que um povo branco pudesse ser tão oprimido. Mas podem, e esses são os poloneses, que já estiveram sob o jugo dos austro-húngaros, dos russos e dos alemães; que já tiveram seu território retalhado e distribuído a bel prazer dos conquistadores algumas vezes; que após o fim da Segunda Guerra estiveram sob o domínio da Rússia por muito tempo. E que tiveram uma posição estratégica bem ruim durante a guerra, no meio do fogo cruzado entre russos e alemães. E eles têm tragédias muito grandes durante essa guerra, como o massacre de Katyn, por exemplo.
Então, não se prestam muito bem a serem considerados pró-nazistas ou algozes. Mas que os cristãos lá, bem como em outros países europeus, fizeram vista grossa ao que acontecia aos seus vizinhos judeus, fizeram. Há relatos em vários livros que li sobre a conivência dos cristãos poloneses com o destino dos judeus. O livro de Claude Lanzman dá vários exemplos. Esse autor fez uma grande pesquisa nas pequenas cidades polonesas para seu filme Shoah. Boa parte dessas histórias de segregações dos cristãos poloneses eu li antes de estar na Polônia. E foi muito chocante quando estive lá - andei pelo país em 2011, fui a Auschwitz - pois em contraposição a isso, nunca conheci um povo tão acolhedor, tão simples, tão simpático como esse. E tão cristão. Sobretudo na Cracóvia, de João Paulo II.  Deixando essa questão de lado, entro no filme.
Anna, uma jovem às vésperas de fazer seus votos e tornar-se freira, é instada pela madre superiora a procurar sua tia, única parente viva, a conversar com ela e só depois, confirmar sua vocação. Sai à procura da tia e com isso descobre que seu nome é Ida Lebenstein, uma judia, filha da irmã dessa tia, Wanda. A tia é uma magistrada, alcóolatra, aparentemente faz parte do partido comunista que conduz o país após o final da Segunda Guerra. Essa camarada está desiludida com os rumos do país, e culpada por ter deixado seu filho com a irmã e sua própria filha ainda bebê, para lutar na resistência. O filho de Wanda e a irmã foram mortos a machadadas pelos vizinhos cristãos que ficaram com a casa deles. Quando o homem que os matou, mostra onde estão as ossadas, ele dentro da cova que abriu, Ida pergunta a ele: por que eu não estou aí com eles? Ele responde: você era tão pequena, passava bem por cristã. O menino não, era moreno e circuncidado. Ser branca a salvou da morte. Assim Ida sobreviveu, porque passaria por cristã. É isso Anna\Ida: uma judia que se passa por cristã, uma indiferente a tudo o que vê, que não se envolve, se passando por doce e bondosa.
Wanda e Anna\Ida viajam ao interior, a cidade onde tudo isso se passou, conversam com as pessoas. Todos os cristãos tem um segredo a esconder, são resistentes, não querem tocar nessa história do extermínio dos judeus; estão bem acomodados na casa que agora é deles, que foi tomada com sangue e assassinato. Quando Wanda investiga, quando é dura com os assassinos cristãos, Ida se afasta, não quer ouvir, sai da casa. Ida não quer participar do resgate dessa história. Ela está bem certa de que é cristã, que será freira. Sua tia culpada, atormentada, deprimida, ensaiando uma posição de objeto a ser descartado, caminha para um suicídio que se concretizará ao final do filme, jogando-se pela janela, e Anna\Ida não diz nada, não ora por ela, não a acalma. Ela está sempre numa vacuidade. Nunca está onde aparentemente está. Ela parece indiferente a tudo. Por isso tenho dificuldade em dizer que ela é Ida. Ela renega suas raízes judias, ela é Anna. Ela só sai da indiferença quando surge o desejo por um homem.
No começo da busca delas pela verdade, Wanda dirigindo, diz a Anna que ela vai deixar os homens loucos e pergunta se ela tem maus pensamentos com os homens. Ela responde que não. Pois devia, senão que sacrifício terá nesses  votos que vai fazer? Mas depois darão carona a um músico, um belo rapaz, que vai despertar-lhe o desejo, e aí os “maus pensamentos” vem. Ele lhe diz: você não tem ideia do efeito que causa. Ela não diz nada, mas vai para o quarto e tira o véu, fica se olhando. A partir do desejo dele, que a torna desejável, vê-se como uma mulher no espelho. E após o suicídio da tia, liga para ele, encontram-se, vão para cama e ela descobre o sexo. Acordam, ele faz planos, terão uma casa, um casamento, viagens a trabalho para ele tocar e ela o acompanhando. Ela volta a sua indiferença de antes, não diz nada. Ele dorme, ela faz a mala e volta para o convento.
O filme tem cenas belíssimas, com neve que não acaba mais, e estradas brancas e árvores secas. E é esta a cena final: ela chegando, à pé no meio da neve, sozinha, para seu sacrifício dos votos. Viveu o desejo que sentiu, virou as costas sem dizer nada ao homem. Ele fica lá, dormindo ainda, sem saber que foi usado como objeto sexual. Nenhuma palavra lhe será dita para explicar nada, sem a casa, sem o casamento. Sem nada. Ele e Wanda são os objetos a serem defenestrados. Assim como em outro tempo foram Roza e o menino. Os cristãos, sejam aqueles durante a guerra, seja Anna, são indiferentes à dor do outro. O retrato que o filme traça dos cristãos é bem triste. Retrato ruim de ver, e creio que foi isso que esse país tão cristão não gostou de ver.
A grande personagem do filme é Wanda. Ética, culpada, buscando a verdade, desorientada, pois perdeu seus ideais. A que se sacrifica é ela. Anna só se sacrifica por si mesma. Anna é uma raposa-indiferente em pele de cordeiro. Sua pele\pêlo é a beleza branquinha. Ouvi dias atrás um ditado pela primeira vez: uma raposa perde o pêlo, mas não perde o vício. Anna é isso, uma raposa. No filme, todos os cristãos o são.


quarta-feira, 22 de abril de 2015

Rilke e Lou Andréas-Salomé

Ontem, feriado, estava com dois livros à mão: Correspondência amorosa, de Rainer Maria Rilke e Lou Andréas-Salomé, e Minha Vida, de Lou Andréas-Salomé.
Lendo a correspondência entre os dois e o que ela vai escrever sobre o que foi o amor deles, décadas depois.
No Livro das horas, ele dedica esse poema a ela:
"Apaga-me os olhos: ainda posso ver-te,
e sem pés posso ainda ir para ti,
e sem boca posso ainda invocar-te.
Quebra-me os braços, e posso apertar-te
com o coração como com a mão,
tapa-me o coração, e o cérebro baterá
e se me deitares fogo ao cérebro
hei de continuar a trazer-te em meu sangue".
E em uma carta, escreve para ela:
"Então tua carta me trouxe a suave benção,
e me convenci de que não há distância:
De toda a beleza me vens ao encontro,
tu, minha primaveril aragem, tu, minha chuva de verão,
tu, minha noite de junho e seus mil caminhos
que nenhum devoto percorreu antes de mim:
estou em ti."
E o que foi esse amor para ela, já que não tinha esse dom ímpar com as rimas, esse dom obscuro que viu nele, antes dele mesmo? Quando se encontraram, ele era um jovem de 21 anos, sentindo que tinha uma obra a construir, ela já era uma escritora e tinha 36.
Em seu livro de memórias há um capítulo em que fala dele: "Se fui durante anos tua mulher, assim o foi porque tu foste para mim pela primeira vez o real, corpo e homem uno, indiscernível, fato indubitável da vida mesma. Palavra por palavra eu tinha podido confessar-te o que me disseste como confissão de amor: "Somente tu és real". Foi assim que nos tornamos esposos ainda antes de nos tornarmos amigos, e tornamo-nos amigos mais por bodas igualmente subterrâneas do que pela escolha. Em nós não havia duas metades que se buscavam: nossa totalidade reconheceu-se surpresa, fremente, em uma incrível totalidade. E assim fomos irmãos, mas como de tempos remotos, antes de o incesto tornar-se sacrilégio."
E qual o final da história? E foram infelizes para sempre.
Como vocês podem ver, ontem, no feriado, acordei para o amor.

domingo, 19 de abril de 2015

A história que o pai calou

Um filho, um dia qualquer, folheando um livro do pai, descobre uma carta e nela, que ele teve um filho com uma alemã, antes de se casar com sua mãe. Nunca soube dessa história, nunca foi falada na família. A partir dessa descoberta, mexendo nos livros e nas gavetas do pai e da mãe, descobre outros capítulos da história pregressa do pai: em 1931, jovem jornalista, é enviado a Berlim, fica lá um ano e meio e conhece Anne. Andam pelas ruas de Berlim, se apaixonam, ela engravida. Quando ela está com alguns meses de gravidez, ele é chamado de volta ao Brasil. Deixa-a, promete voltar, mas embarca no navio sem nem ao menos olhar para trás e acenar para ela. Essa cena é imaginada mais de trinta anos depois por esse filho do jornalista, que tenta entender porque o pai fez o que fez. De factual há uma carta de Anne no ano seguinte perguntando se ele voltará, que quer saber, pois o bebê nasceu, é um menino e precisa ser registrado. Ela agora tem um pretendente que se propõe a ficar com ela e a registrar a criança.
O filho também descobre que o governo alemão escreveu ao pai dele para averiguar se ele não tem sangue judeu, precisam averiguar se a criança não tem antepassados judeus a fim de definir seu destino, pedem certidões até dos avós desse homem. Ele só consegue as suas e de seus pais. O governo alemão não acha suficiente e escreve novamente. Pede que o pai brasileiro, que não registrou a criança, envie ajuda financeira para sustenta-la, que está sob a responsabilidade do governo alemão. Anos difíceis, às vésperas de começar a Segunda Guerra Mundial. Essas cartas todas estão impressas nas páginas do livro que acabei de ler.
Esse filho, um dia, na mesa de almoço familiar, solta essa frase: eu não teria vergonha de ter um filho alemão. O pai para, com o garfo cheio de comida, suspenso entre o prato e a boca, olha-o e não diz uma palavra. Nada. Dessa história o pai nunca falará nada com ele. E, pelo visto, com ninguém, pois o filho sente que também sua mãe gostaria de ter uma ideia do que foi essa história. Mas nada, nenhuma palavra.
O filho que faz essa investigação sobre a história do filho alemão do pai, filho que o pai não registrou, não criou, não foi atrás dele na Alemanha – no romance, o narrador-filho com irmão alemão, cria uma cena em que o pai vai à Alemanha atrás do filho – é Chico Buarque de Holanda. O pai se chama Sérgio Buarque de Holanda, o grande historiador que escreveu Raízes do Brasil. O filho alemão de Sérgio Buarque de Holanda foi chamado Sérgio Ernst, ficando só com o sobrenome da mãe, Anne Ernst. Quando ela o deu para adoção – eu acho que essa criança pode ter sido tomada dela, já que o governo alemão tinha a suspeita que ele tivesse sangue judeu – seu nome e sobrenome foram mudados. Mas assim que ele descobriu sua história, retornou ao nome Sérgio, dado por sua mãe.
Em 2013, Chico Buarque com quase setenta anos, foi a Berlim resgatar a história de seu pai. Com a ajuda de seu editor e de um historiador, com a ajuda de sua filha Silvia Buarque na tradução, conheceu a família e a história de seu irmão alemão Sérgio Gunter. Ele manteve o sobrenome da família que o adotou. Chico encontrou-se com sua ex-mulher, sua filha, neta, amigos e assim, soube quem foi Sérgio, seu irmão alemão, que tinha morrido de câncer aos 51 anos, na década de 80. 
Desse drama que parece ter assombrado sua história e a de seu pai, Chico escreveu seu melhor romance, este que está nas livrarias agora, O irmão alemão.
Agora um impressão minha: sonhei essa noite com Sérgio Günter e queria ter sabido o que foi a vida dele, nascido no pré-guerra, pesando sobre sua cabeça a suspeita do "crime" de ter sangue judeu, vindo de um pai que não foi pai, que não o registrou, "dado" para adoção, tendo o nome mudado, depois retornado ao nome Sérgio, vivido sua juventude na Berlim Oriental, morrido de câncer tão jovem. Creio que vou pensar em Sérgio Günter por vários dias ainda.




segunda-feira, 6 de abril de 2015

AS MÁSCARAS DO AMOR


XV ENCONTRO NACIONAL DA ESCOLA DE PSICANÁLISE DOS FÓRUNS DO CAMPO LACANIANO NO BRASIL
AMOR E SEXOS
Campo Grande, 13 a 16 de novembro de 2014

Andréa Brunetto

Há tantas máscaras quantas insatisfações, afirma Lacan em sua aula de 16 de abril de 1958. Essa aula do Seminário V, As formações do Inconsciente, em que Lacan falará sobre as máscaras do sintoma e ainda um episódio da epopeia romântica Jerusalém Libertada, de Torquato Tasso, deram-me a inspiração do que falar para vocês, aqui, nesse encontro sobre Amor e Sexos.
Nessa aula de seu seminário, Lacan sustenta que o desejo está ligado a alguma coisa que é sua aparência, a máscara1. É uma questão essencial que temos na experiência analítica, diz Lacan, essa relação entre o desejo e aquilo que ele se reveste.  E vai dizer que também o sintoma se apresenta sob uma máscara paradoxal. Ele retoma o Caso de Elizabeth von R., descrito por Freud nos Estudos sobre a Histeria, para dizer que seu sintoma é uma máscara de dupla identificação: com a irmã e com o cunhado.
A ideia da máscara significa que o sintoma se apresenta de forma ambígua. “A questão é a da ligação que permanece como um ponto de interrogação, um x, um enigma, com o sintoma do qual ele se reveste, ou seja, com a máscara”.2 A máscara é essa coisa fechada que permite o reconhecimento do desejo. Identificar a máscara com o desejo freudiano é algo diferente do que se dirigir a um objeto.
A análise serve para comprovar esse caráter vagabundo, fugidio e inapreensível do desejo, alega Lacan. É o que faz com que ele diga: o desejo é mascarado. Podemos desmascará-lo algum dia? É uma pergunta que faz no Seminário 10.
Uma máscara é um revestimento, diz Lacan. Acompanhando seu ensino, também podemos chamá-la de vestimenta, vestido. Um muro. Uma vestimenta que faz com que a periquita de Picasso só se enamore dele quando estiver vestido. Sem a máscara, a vestimenta, o muro, a armadura, é o gozar de um corpo. E isso não deixa claro o que é o amor.
Vou chamar a máscara de um destino pulsional. Assim Freud dá o exemplo de um destino, o de Tancredo e Clorinda. Jerusalém Libertada foi citada por Freud em Além do Princípio do Prazer. Escrita em 1581, ambientada no tempo das cruzadas, da guerra entre pagãos e cristãos, assim vista pelo seu autor Torquato Tasso, italiano, cristão, que a escreveu morrendo de medo que algo desgostasse a inquisição e que ele próprio fosse considerado pagão.
Em Jerusalém Libertada, a máscara é uma armadura. Clorinda, a pagã, que usa uma armadura para ficar forte e “poder no perigo aventurar-se”, consegue energia e amor ardente quando a usa. Tancredo mata Clorinda em um duelo, ela disfarçada de cavaleiro. Tirando a armadura do suposto cavaleiro que ferira, vê o corpo casto da donzela – terá daqui saído a inspiração para Diadorim? – e com ela morta nos braços, sente-se condenado a um indigno existir, a viver em memória dos amores infelizes. No canto seguinte da epopeia, abre caminho numa estranha floresta mágica que aterroriza o exército dos cruzados. Com a espada faz um talho em um cipreste e ouve lamentar-se a voz de Clorinda: novamente me mataste! Na árvore estava aprisionada a alma de sua amada. E o narrador nos diz: hábil guerreiro, só débil para o amor foi. Deixa-se iludir por falsas imagens. No aspecto amoroso, Tancredo é como todos, embora nem todos sejam hábeis guerreiros. A isso, Freud chama um destino, “a perpétua recorrência da mesma coisa”.3
Lacan afirma no Seminário 20: mais, ainda, que o amor baseia-se numa certa relação entre dois saberes inconscientes, apontando que o sujeito aproxima-se de seu objeto na condição de que não o saiba, que esse saber é do inconsciente. “No baile dos incoerentes do amor, é preciso uma máscara para apreender o objeto. Ele se refere a comédia de Alphonse Allais, em que Raul e Marguerite, em um casamento de cinco meses, feito de muitas brigas, fazem um reconciliação no baile de máscaras em que cada um foi mascarado para, desmascarar a suposta infidelidade do outro.”4 A relação entre a orientação da libido e o desconhecimento fica evidente tanto no Banquete como na tragédia de Édipo. Sócrates só pôde colocar seu saber sobre o amor demonstrando que não sabia e que o que descobriu lhe foi contado por uma mulher, Diotima. O que Lacan marca é que só pode existir discurso amoroso a partir do ponto onde ele não sabia. E não só no discurso. O amor é concebido sem que Poros o soubesse.5
Esse desconhecimento sobre o objeto que causa o sujeito, que para além das vestimentas que o mascaram e fazem um happy end vitoriano, Lacan encontrou no romance de Marguerite Duras, O Deslumbramento de Lol Stein. Um vestido que deixado cair, evidenciava, para além da fantasia, o objeto a. Um vestido presta-se muito bem a ser uma máscara. As mulheres bem o sabem. Não apenas dos vestidos, da mascarada para o outro.
Em O Seminário 11: os conceitos fundamentais da psicanálise, diz: “Se há algum domínio em que a tapeação tem chance de ter sucesso é certamente no amor que encontramos seu modelo”.6 E no capítulo seguinte desse seminário, Lacan vai chamar o amor de uma falsidade essencial. Para depois afirmar: “enquanto miragem e especular, o amor tem essência de tapeação, Mas nessa tapeação, algo é paradoxal: o objeto a. “Eu te amo, mas porque, inexplicavelmente, amo em ti algo que é mais que tu – o objeto a, eu te mutilo.”7
A máscara, a vestimenta, a armadura, ou o muro, que Lacan equivoca com amor, mostram que o amor é a máscara. O amor é a tapeação não apenas necessária, mas essencial.
Mais dois exemplos mascarados. Um da literatura e outro da clínica. O da literatura é um pouco mais atual que Jerusalém Libertada. É do Século XIX, uma comédia de Max Beerbohm, inglês, contemporâneo e conterrâneo de Oscar Wilde, participava do mesmo grupo de escritores que seu colega mais famoso, e tão ácido na crítica quanto aquele. O farsante feliz conta a história de Lord George Hell, nobre hedonista, rico, perverso, jogador, voraz, destrutivo, rebelde, covarde, cínico, antipático, odioso, insolente. Vou parar por aqui na lista de adjetivos com que o autor caracteriza seu personagem. Nunca se preocupou em dissimular sua perfídia, cheio de amantes, madrugadas na luxúria e nas mesas de jogo, fugindo de uma amante italiana que o perseguia. Uma noite vê uma jovem dançarina um pouco desajeitada em um clube e se apaixona à primeira vista. Ajoelha-se diante da jovem Jenny Mere e a pede em casamento. Ela responde que não, “jamais poderá ser esposa de alguém cujo rosto não seja de um santo”. “Talvez Millord, seu rosto reflita um amor por mim, mas reflete muito da vaidade do mundo. Só a um homem cujo rosto seja tão maravilhoso como o dos santos, só a este poderei entregar meu verdadeiro amor”.
Para ir aos finalmente, Lord George vai a um famoso fabricante de máscaras, pede uma que represente o verdadeiro amor e a face de um santo. O fabricante procura em seu depósito de máscaras e encontra uma que confeccionou para um homem usar em suas bodas de prata e depois lhe devolveu. Lord George a quer e diz que vai usá-la para sempre. Com ela conquista Jenny Mere, vão se casar, compra uma casa rústica, no bosque; devolve os bens que ganhou ilicitamente, nas mesas de jogos. O único problema era que os beijos de máscara ficavam um tanto insípidos, se perdia o gosto da boca do outro. Às vezes pensava em tirar a máscara e beijá-la, não queria essa barreira entre ele e sua jovem esposa. Mas depois retomava o bom senso e sabia que teria que usar a máscara para sempre. Apesar do material duro com que era feita, ela representava o verdadeiro amor.
Há uma cena final em que a amante italiana os desmascara. Diz a Lord George que a máscara campestre de sua jovem esposa é melhor que a dele. Avança sobre a dele, arranca e a joga no chão. E aí vem a surpresa para ele e a ex amante italiana: por trás da máscara seu rosto tinha se tornado igual à máscara. Ele olhou sua amada nos olhos e viu isso refletido nos olhos dela. E foram felizes para sempre. Mascarados. Ele de santo, ela de jovem campestre.
Agora o exemplo da clínica. Um homem jovem procura a analista porque comentaram que ela era intelectual. É esse o significante qualquer com o qual começa sua análise. Nela fala de suas dificuldades nos estudos, que tem desde criança. E, sobretudo, de um relacionamento amoroso fracassado dois anos antes. Nesse momento já está namorando outra pessoa, mas fala daquela namorada, que vivia lendo, estudando, só tinha papo cabeça, conversa intelectual e que isso o entendiava. Sempre que dizia sobre a ex, terminava assim “e aí eu me entediei e terminei”. E nessa vez em que a palavra vacila, como um tropeço, diz “e aí me apaixonei”.
O significante pode ser uma máscara? Para esse homem que se sente deslocado, fora do mercado de trabalho, do negócio familiar – é uma das queixas: ele é out da empresa familiar – e da relação de amor que deixou perder porque não enxergou que estava apaixonado, o intelectual o interessa muito, e ele achava que isso o entediava. Esse in que ele esperava alcançar para deixar de ser out é uma sílaba de seu sobrenome. Trata-se aqui da construção de um nome próprio. Um sinthoma. Isso é mais do que uma máscara-semblante identificatória?  






1 Lacan, J. O Seminário, livro 5, As formações do inconsciente. RJ: Jorge Zahar Editor, p. 331.
2 Ibid, p. 338.
3 FREUD. Standard Obras Completas. Além do princípio do prazer.
4 Brunetto, A. Sobre amores e exílios: na fronteira da psicanálise e da literatura. SP: Editora Escuta.
5 Ibid.
6 LACAN. J. O Seminário, livro 11: os conceitos fundamentais da psicanálise. RJ: JZEditor, p. 128.
7 Ibid, p. 253. 

sábado, 28 de março de 2015

O beijo

Segurou-me o braço, olhou-me com desejo.
Aquiesci, o quis.
Vasculhei seu rosto,
a boca, o nariz, o furinho no queixo.
Do peito, fugiam-lhe pêlos,
escapavam camisa à fora.
Meu corpo tremeu.
Contive-me, segurei minha mão.
Mas não a boca.
Chamou-me de linda.
Hoje não, respondi.
Nem batom nos lábios tenho.
E com os dedos, os lábios esfreguei,
um beijo pedindo.
Ele entendeu:
Esta mulher instintivamente me quer.
Mas o beijo não deu.
E isso faz com que eu o peça,
com palavras,
a cada vez,
todo dia:
Dá-me um beijo.





sábado, 21 de março de 2015

O que falamos quando falamos de amor? Um elogio ao teatro




       Essa pergunta, título de um livro de Raymond Carver Jr, é o norte do filme Birdman, a inesperada virtude da ignorância. Michael Keaton é Riggan Thomson, ator, diretor e roteirista de uma peça que vai estrear na Broadway em um teatro de frente ao famoso musical “O fantasma da Ópera”. Necessitando de sucesso, temendo a avaliação de uma crítica famosa, todos envolvidos na peça vivem assombrados pelo fracasso. Sobretudo Riggan, é seu o desejo de encenar a peça a partir da obra de Carver.
         O filme é um debate sobre o amor verdadeiro, um elogio ao teatro e uma constatação da tristeza que é a velhice. Em todos esses debates o enfoque é sempre sobre o olhar. Sempre um olho absoluto que captura tudo e todos.
      Quando jovem, Riggan atuava em uma peça e Carver estava na plateia, o assistiu e lhe escreveu no guardanapo um recado: obrigado pela atuação honesta. A peça é, então, uma homenagem à interpretação honesta que o teatro propicia. No debate com seu alterego Birdman, Riggan se identifica a um ator honesto, é isso que ele busca. Birdman, o alterego que fala em sua cabeça o tempo todo, lhe responde que teatro é um palavrório filosófico, um nada. Cinema, e ainda mais Hollywood, é grandioso, é midiático, global, é Deus. É um momento de dilema de Riggan com Birdman. E o personagem sai voando, dizendo-se Ícaro, o mitológico Ícaro que voou, voou com suas asas de cera, que derreteram porque não escutou o conselho dado: quanto maior o voo em direção ao sol, maior o tombo. É a metáfora mais bonita do filme. Ícaro voa, o pôr do sol se reflete entre os prédios, ele desce e caminha. Tal como no preceito que Freud retira da Torá para nós: onde não podemos chegar voando, vamos mancando. E assim, o ator entra no teatro. Na batalha cinema versus teatro, um a zero para o teatro.
              Três cenas sobre a velhice. Riggan ainda é reconhecido pela série de filmes de Homem-pássaro que fez no passado. Uma mulher com certa idade pede autógrafo para ele, seu filho ao lado pergunta ‘mãe, quem é esse?’ mostrando que outrora ele foi famoso, agora um anônimo. Em outra cena, outro ator, interpretado por Edward Norton, conversando com a filha do personagem Riggan, em um jogo de verdade ou desafio, diz que teria medo de falhar se estivesse na cama com ela. Ela pergunta a ele: se você não tivesse medo de falhar, o que faria comigo? Ele responde: arrancaria seus olhos e colocaria em meu crânio para ver a rua com seus olhos, como eu fazia quando tinha sua idade. Ele nem é um homem velho, mas já vive em busca do tempo perdido, de uma juventude perdida.
               E aí estão esses olhos arrancados de uma jovem, soltos, expostos, no filme todo, a olhar a rua. Em vários momentos se fala em milhares de visualizações de facebooks, instagran e twitter.
               E mais um momento importante, onde a velhice do personagem Riggan é enfatizada: ele anda somente de cueca pela rua, pois seu roupão se trancou em uma porta, sai de um compartimento e contorna a rua, entrando pela porta da frente do teatro. As pessoas vão olhando aquele homem seminu andando pelas calçadas lotadas e os comentários não são sobre sua nudez e sim para sua idade: ‘nossa, como ele está velho!’. A verdadeira nudez é a da velhice.
              E chego à pergunta sobre o amor, que norteia o filme. O exemplo de amor verdadeiro é de um acidente em que um jovem bêbado, dirigindo o carro do pai, bate contra um trailer onde viviam dois idosos. O jovem morre – morrer jovem pode ser um destino bem pior que a velhice – os idosos não. O homem, todo enfaixado, engessado, fica sabendo que sua esposa não morreu. Mas ali no hospital, imobilizado, sua maior tristeza é não poder olhar para sua amada. Outra pergunta que surge: existe amor absoluto? Quem ama mata? E a cena final na cena dentro do filme responde sim. O amor verdadeiro é o exemplo do idoso acima. O outro amor que mata é a cena final: um homem entra no quarto, descobre a mulher na cama com outro, pergunta a ela se ainda o ama. Ela responde não, não mais. Ele dá as costas ao casal, Riggan interpretando o homem traído olha para a plateia e se dá um tiro na cabeça. Resposta de que só o amor faz uma pessoa existir. É a verdade poética de Goethe que Freud leva para sua obra: precisamos começar a amar para não adoecer. E podemos complementar com essa cena que, pelo inverso, mostra o poder do amor: sem o olhar de amor do outro, não há sentido na vida, desaparecemos.
               Riggan cai ferido na cena final da peça, pois no revólver tinha uma bala de verdade. Depois disso, é a cena final do filme. Sobreviveu a interpretação realística que faz juz a obra realística de Raymond Carver Jr. e aparece deitado na cama de um hospital. Seu advogado nos conta que ele é o sucesso do momento na cidade, no twitter, no facebook, a cidade só tem olhos para ele. E ele está lá, deitado na cama de hospital, com novo nariz, reconstituído pela cirurgia, pois o seu se perdeu com o tiro. Mascarado igual Birdman, igual o idoso que não conseguia ver sua amada, levanta da cama, tira a máscara e vai até a janela olhar o bando de pássaros ao longe, no céu. O que mostra que sua identidade-pássara não passou, abriu a janela e se juntou ao bando, passarinhando. E desapareceu.




sexta-feira, 6 de março de 2015

O Lírio Vermelho, de Anatole France

                                                                     

Antes de contar sobre o livro, uma história que explica como ele chegou a mim. Ano passado organizei três bazares de livros, muitos foram para levar e trocar seus livros, uma senhora bastante idosa veio até mim, estava com o porta-malas de seu carro lotado de livros. Muitos e muito antigos. Separei vários para ficar comigo. E os coloquei na pilha a serem lidos. Mês passado peguei esse romance de Anatole France, uma edição velhinha, de 1955, empoeirado, sujo, amassado, mas de capa dura e folhas grossas. Fui folhando e descobri dentro dele notas e mais notas de dinheiro. O dono do livro tinha o hábito de guardar dinheiro dentro de livros, imagino. Guardou e esqueceu 18 notas distribuídas entre as páginas do livro todo. Notas de cinco cruzeiros, que não valem mais nada, com a cara do Barão do Rio Branco e no verso um quadro retratando a conquista do Amazonas.  Esse “O Lírio Vermelho”, de Anatole France, começou para mim desse jeito.
É um grande livro de um escritor magistral. Já tinha lido dele “As sete mulheres do Barba Azul” mas este é melhor. Prêmio Nobel da Literatura de 1921, Anatole France escreveu esse romance em 1894. Consegue defender muitas ideias sobre a política, Napoleão, a Revolução Francesa e sobre a Europa e ainda contar uma história de amor em um livro com umas duzentas páginas. É por isso que não gosto mais de ler romances com 600 páginas. Conseguir dizer muito com certa redução só um escritor formidável como esse, um dos últimos clássicos, que influenciou, posteriormente, Marcel Proust, consegue.
Cito aqui dois trechos: “Toda ideia falsa é perigosa. Quem pensa que os utópicos não são prejudiciais, engana-se, pois fazem-no e muito. As utopias mais inofensivas na aparência, exercem uma realidade, uma influência prejudicial! Tendem a inspirar o desprezo da realidade”. E o seguinte serve bem para relativizarmos com esse momento de recrudecimento de fanatismos: “Sem os árabes e judeus, a Europa estaria ainda mais mergulhada na barbárie, no tempo das cruzadas, na ignorância, na miséria e na crueldade”.
O lírio que dá nome ao livro é a flor típica da Toscana, onde se passa uma parte da estória. A outra parte se passa nos salões de festa de Paris, onde a jovem, bela e entediada Teresa vive sua vida entre um marido nobre e um amante jovem a quem ama.  Para a sociedade do século XVIII e XIX era uma coisa normal. Teresa é casada com um homem mais velho e de família tradicional, pois seu pai é um nouveau riche sem entrada nos círculos aristocráticos da cidade. Um integrante desse acordo entra com a nobreza e Teresa com o dinheiro paterno. E marido, amante, amigos, todos ceiam juntos, debatem sobre a personalidade de Napoleão, escutam música e vivem sua vida em que nada precisa mudar. Ela não tinha arranjado amante nenhum até tempos atrás, pois não queria entrar nessa frivolidade, somente se entrega a esse primeiro amante ao perceber que ele a ama, fica nervoso quando ela está por perto. Mas um dia, ele que era tão dedicado a ela, tudo conversava e decidia com ela, resolve uma viagem e ela só fica sabendo de sua decisão por terceiros. É por isso que termina o romance, sem ao menos dizer adeus. Sai do apartamento onde se encontravam e sabe que foi a última vez que esteve lá. Um homem marca de ir à caça e tudo já terminou. Parece banal, só um ato, mas para ela é só um sinal de que nada é mais o mesmo.
Sai de Paris, vai passar os meses do verão em Fiesole, cidadezinha nos arredores de Florença, e lá se apaixona novamente por um jovem que também se apaixonou por ela. É ele o utópico, sonhador, que motiva a frase que escrevi acima. Um ciumento possessivo que não aceita seu passado com o outro amante. Quanto ao marido, esse não conta nada, tudo pode continuar como esta. O livro começa com ela deixando o primeiro amante e termina quando deixa o segundo. O romance é a história desse segundo amor que se passa na Toscana. É ele, o jovem sonhador, que lhe dá o lírio que ferirá seu coração.

Assim, já conto o final: todas as histórias de amor terminam não dando certo e é ela que vai embora com uma determinação não muito comum nas mulheres. Anatole France criou uma personagem feminina que não tenta até o fim fazer o amor dar certo, que sabe muito bem o momento de parar. E sem se afundar na dor. Gostei, embora seja um ideal não muito fácil de manter.

terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

Os dramas das prostitutas: um olhar masculino sobre o desejo

                                                                           

Em dois dias carnavalescos, na semana passada, li o romance “A las que amamos”, do escritor sérvio Aleksandar Tisͮma. Escrita densa sobre o desespero humano, retratado na vida das prostitutas de uma pequena cidade Sérvia. O pós-guerra dos Balcãs, com suas misérias, de pobreza material, de desesperança e segregações, só é mostrado por alusões. É o pano de fundo dessa cidade com muitas prostitutas que precisam ganhar a vida.
É um olhar masculino sobre a mulher não apenas porque o autor é homem, o narrador da história é um homem. E desfilam por suas páginas muitas prostitutas, novas e velhas, brancas, morenas e negras, magras e regordetas – li o romance em espanhol, a tradução da palavra em português é pior: gorducha, melhor deixar em espanhol.
Eis algumas: Katarina, não mais jovem, casada com um homem velho, do qual espera a morte, e sai com outros homens para complementar o orçamento. Com sua habilidade para ver o mal, percebe a falsidade de todos e a fraqueza dos homens pela beleza. Mas em alguns, reconhece, o desejo não está nas mulheres belas, e sim na fealdade. Emina, a jovem forasteira que começa sua vida como prostituta se apaixonando pelo primeiro homem com o qual se deita. E que, depois, manda a ele um recado que o ama e que ele não precisa pagar. Berta, que na sua primeira noite com um cliente, não consegue usar as técnicas da profissão, se envergonha e não tira toda a roupa, com pudor, e é ele a cair de amores por ela, querê-la só para ele, exigindo penosas demonstrações do amor. Vera, que esteve ausente da cidade por dez anos e volta à vida “fácil” na cidade. Não mais tão jovem, tinha um corpo firme e bonito, era linda, mas com olhos distantes e indiferentes. Os homens viam nela a frieza e por vezes a trocavam por outra, que não chegava nem aos pés de sua beleza, mas era mais doce.
São abundantes os comentários sobre os corpos das mulheres. São os corpos que alimentam o desejo deles? Em um primeiro momento parece que sim, pois o narrador nos conta de quantas prostitutas vão perdendo cliente conforme vão ficando regordetas. Porém outras também vão caindo do lugar de objeto de desejo porque ficam magras demais. Eu fiquei pensando sobre o desejo desses  personagens masculinos e percebi que dá para fazer uma síntese do que eles querem: não importa se as mulheres são regordetas ou magras, têm de ter a pele firme, tem de ter viço. E um olhar cheio de entusiasmo, como Emina, a jovem apaixonada, pois a prostituta dos olhos tristes é menos interessante. E além de entusiasmo, ser doce, pois a linda e fria Vera os intimida.
Enfim, carnes firmes e com viço, olhar entusiasmado, alegre, apaixonada, doce e terna, assim é a prostituta perfeita na visão do narrador. Qualidades difíceis de serem encontradas todas, assim, juntas, em uma mulher, prostituta ou não.


segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

Slawomir Mrozek

Eu ando desbravando a literatura dos países mais ao leste, autores ainda não conhecidos no Brasil. Escrevi um comentário abaixo:
Sᴌawomir Mrozek é um escritor polonês que descobri recentemente, graças a editora Acantilados, de Barcelona. Tem um estilo satírico, um humor negro, e ao mesmo tempo dramático. Um tanto descrente na humanidade, ele faz das fraquezas humanas, um deboche; um escritor sobre o absurdo da vida, como Eugène Ionesco.
Li na semana passada o livro de contos La vida para principiantes. No índice, ele nomeia o conto e à esquerda do número, já avisa a temática dele. Vou resumir dois contos para vocês. O primeiro, que se chama “Chá ou café?”, tem como temática a anarquia. Um homem está na casa de alguém e a anfitriã está se aproximando dele, oferecendo café ou chá aos convidados. Já sabe que chegará sua hora de escolher. Se revolta: por que tenho que escolher um ou outro? Quer ganhar tempo, ter o direito natural de ficar com os dois, pois se pede um, perde o outro. Indignado, levanta-se antes que a anfitriã chegue a seu lugar. Sai da sala, a vida de todos continua e quando ele retorna, percebe que todos se esqueceram dele. Aquilo o tocou de uma forma muito viva. Vai até a cozinha, exigir seus direitos, isso é melhor do que ter de eleger as coisas. Pede uma xícara com metade de café e metade de chá. E também uma cerveja. E assim resolve a escolha.
O segundo conto que mais gostei chama-se “Na torre” e tem como temática o medo. É sobre um senhor que se fez forte em seu castelo, para se proteger dos ataques inimigos. No castelo, todas as proteções são possíveis. Se os inimigos conseguirem chegar até o castelo, tem um fosso; se passarem do fosso, uma porta muito firme; se passarem a porta chegam a uma sala fortificada. Da sala fortificada seus homens estarão á espera para protegê-lo. Na sala fortificada, se conseguirem passar por seus homens, tem uma escada íngreme, e se assim, em uma suposição “insensata e impossível”, alguém chegar até sua torre, estará usando uma armadura bem especial, forte. Com isso tudo, não precisa ter medo. Mas acontece que sente um pulsar forte, algo o golpeia, não através dos bosques, dos muros do castelo, mas dentro da armadura. Tira-a rapidamente, e grita “traição”, enfiando a adaga no lado esquerdo de seu peito, onde estava o agressor desconhecido. E morreu.

Mal-estar e segregação religiosa

O artigo abaixo escrevi em 2006, à época das charges de Maomé, feitas na Dinamarca, foi apresentado em um congresso sobre as religiosidades, em Dourados\MS




MAL-ESTAR E SEGREGAÇÃO RELIGIOSA

Andréa Brunetto


Yo soy um moro judio/ que vive con los cristianos
No sé que Dios es el mio/ ni cuales son mis hermanos
Y a nadie le di permiso/ para matar en mi nombre
Un hombre no es más que un hombre
Y si hay Dios, asi lo quiso.
El mismo suelo que piso/ seguirá, yo me habré ido;
Rumbo también del olvido/ no hay doctrina que no vaya/
E no hay pueblo que no se haya/ creido el pueblo elegido.
Jorge Drexler y Chicho Sánchez Ferlosio


As energias que empregamos em sermos todos irmãos
Provam bem evidentemente que não o somos.
Jacques Lacan



Este trabalho pretende explicitar as visões de Freud e Lacan sobre a religião, para em seguida discutir a segregação religiosa e os movimentos fundamentalistas que tem proliferado na atualidade. A psicanálise se interessa em estudar a segregação na medida em que investiga os laços sociais. Em entrevista a revista Cult de setembro de 2005, Baudrillard faz uma análise da contemporaneidade com sua queda dos ideais: “os racismos, fundamentalismos e grupos étnicos se apresentam como um sintoma desesperado de pessoas que procuram uma regra do jogo, porque não há mais”.

1.   Com Freud e Lacan

A vida é muito difícil de suportar, afirma Freud. Ela é muito árdua porque proporciona sofrimentos, decepções e tarefas impossíveis. A tarefa impossível de que Freud está falando é a busca incansável que o homem empreende para alcançar a felicidade, busca solitária que cada um deve empreender porque sua solução não vale para os demais.
E, citando Frederico II, o imperador da Prússia – “em meu Estado, cada homem pode salvar-se a sua própria maneira” – marca sua posição: cada um procura ser feliz a seu modo. Nesse texto que estou citando, Mal-estar na civilização, diz que isso é contra os valores religiosos, pois a religião restringe essa escolha, impondo a todos o mesmo caminho.
Para Freud, a busca da felicidade é a busca do prazer, propósito do aparelho psíquico desde o início. Mas este projeto de ser feliz está em desacordo com o mundo. A civilização impõe limites à satisfação pulsional e o sujeito tem hostilidade para com “a civilização pela pressão que ela exerce, pela renúncia da pulsão” (p. 26, O futuro de uma ilusão).
Os homens não são seres gentis que desejam amar e ser amados, e que, no máximo, usam a agressão quando atacados, “são criaturas entre cujos dotes pulsionais deve-se levar em conta uma poderosa quota de agressividade”. É Freud citando Plauto: o homem é o lobo do homem.
Os ideais culturais visam unir os membros da comunidade, vincula-los por meio de uma meta comum, evitando que eles se destruam ou destruam os seus semelhantes. E, claro, nesses ideais também encontrarão satisfação narcísica. Estas três formas de unir os homens são a religião, a arte e a ciência.
A religião faz parte destes apoios para tornar tolerável o desamparo humano. Mas Freud a coloca como uma ilusão, um véu que barra a castração, na medida que faz existir um ser onipotente, o pai primevo, que Freud teoriza em Totem e Tabu. A existência desse Um pai, Deus, que tudo pode, permite aos seres humanos dar um sentido a morte, ao sexo, a vida. Enfim, diante das erupções do real, há alguém que sabe, que traça o destino dos homens.
Porém, Freud apostava queda do poder da religião, afinal “os seres humanos não podem permanecer crianças para sempre. Têm de, por fim, sair para a vida hostil” (p. 64).
O trabalho de Eros é unir os homens em famílias, raças, povos, nações e numa única unidade, a humanidade. E Eros se digladiaria com a pulsão de destruição. “Nesta luta consiste essencialmente toda a vida e, portanto, a evolução da civilização pode ser simplesmente descrita como a luta da espécie humana pela vida. É essa batalha de gigantes que nossas babás tentam apaziguar com sua cantiga de ninar sobre o Céu” (p. 145).
A idéia de Freud é que uma educação para a realidade teria como meta fundamentar preparar os jovens para ligar com sua agressividade, a qual todo homem se acha destinado. Assim, combateria as ilusões. Entre elas, é claro, a religião.
Freud apostava que o avanço da ciência colocaria o homem em uma relação com a verdade e contra as ilusões. Apostava, conseqüentemente, em uma queda de poder da religião.
No Seminário 11, Lacan sustenta que para o homem das luzes, do século XVIII, a religião era uma fundamental impostura, mas que para o homem do século XX é difícil entender esta descrença, pois “a religião, em nossos dias, goza de um respeito universal”. Fala mesmo, em uma entrevista de 1974 em triunfo da religião. A religião consegue dar um sentido às coisas que outrora eram coisas naturais. A psicanálise propõe uma verdade sobre o vazio que é diferente do que imediatamente dar um sentido a tudo que vem do real[1].
Lacan afirma que se a religião triunfar, a verdadeira, o que é mais provável, isso será sinal que a psicanálise fracassou. Mas não quer dizer que a psicanálise desaparecerá, é até normal que ela fracasse, pois lida com algo que é muito difícil. E relembra Freud, colocando a psicanálise entre as profissões impossíveis.
Porém, Lacan acredita que Freud foi muito incisivo ao afirmar que tudo que é da ordem da religião não significava, ou mesmo acreditando que um dia o homem iria acordar.  Afinal, a função do pai está no âmago da experiência religiosa. E é pelo assassinato do Um pai que se erige um totem, se funda o simbólico e, conseqüentemente, a civilização. Aliás, isso me leva a questionar tantas teorizações sobre a carência da função paterna na contemporaneidade. Será que realmente, com o triunfo da religião, acreditando em Lacan, podemos falar em declínio da função paterna? Não é um paradoxo?

2.   A segregação

Freud já nos mostrou a dificuldade de cumprir o mandamento de amar o próximo como a si mesmo. Tomarei esta dificuldade por um viés: amar o próximo inclui a segregação. O laço social inclui a segregação.  Até aí estamos sendo absolutamente freudiano. Segundo Palácios, o passo a mais, dado por Lacan, decorre de sua teorização sobre o gozo. O sujeito se ressente de sua falta de gozo e onde há falta de gozo supõe um responsável. É para este responsável que a segregação e o ódio se dirige.
Assim, não existe nenhum ato humano que não esteja enfronhado no racismo. É essa a afirmação de Lacan em Televisão: somos muito precários em nosso mais-de-gozar e mais ainda, vestimos com um “humanitarismo sentimentalóide nossas atrocidades. Assim, faria uma operação: quanto mais segregação, mais discurso de igualdade e direito humanos.
Para Lacan, as atrocidades são humanas, demasiadamente humanas, porém previa uma escalada do racismo e da segregação. Na proposição de 9 de outubro de 1967, Lacan  sustenta que a exclusão tem uma coordenada real que foram os campos de concentração. O nazismo foi um precursor da exclusão, que a universalização do sujeito que procede da ciência também faz.
Soler afirma que a segregação é diferente da discriminação. O Antigo Regime, com uma sociedade escravagista, era discriminatório, mas não segregativo. Cada um tinha seu lugar, pois o significante mestre era potente, o que permite tratar as diferenças de gozo.
Amós Oz conta que a Jerusalém de sua infância era um conglomerado de bairros com gente de diferentes culturas: armênios, árabes, judeus. E, mesmo entre os judeus, que vinham de diferentes países, se falavam várias línguas. Em Meu Michel chega a dizer que Jerusalém não existe, que ainda que viva cem anos, nela não se sentirá em casa, pois ela é plena de fortalezas ameaçadoras, de muros sombrios e altas muralhas. “Cidade que arde. Quarteirões inteiros pendurados no nada”. O que todos os bairros tinham em comum era o fervor messiânico, cada um se acreditando o portador da herança verdadeira. Havia tensões, cada um em seu bairro, mas não violência. É um exemplo de uma cidade discriminativa e sem segregação, como Soler afirma. Pelo menos naquele momento. Todos sabemos como está hoje.


3.   O humor contra o fanatismo religioso

No mês de fevereiro passado, foram feitas charges do profeta Maomé por um jornal dinamarquês, que enfureceram muito os muçulmanos e detonaram, revoltas populares nos países árabes e ataques terroristas em embaixadas dinamarquesas pelo mundo. Em resposta, os europeus debocharam mais ainda dos islâmicos. Um ministro italiano deu entrevista na televisão com uma das charges desenhada na camisa. A pergunta que resultou foi: deveriam ou não ser publicadas as charges? Muitos jornalistas, filósofos, historiadores escreveram, falaram. Então, creio que posso também dar minha opinião. Aliás, todos podem. 
Salman Rushdie, escritor indiano que já foi jurado de morte por ter escrito Os versos satânicos afirma que na Universidade de Cambridge aprendeu uma coisa bem interessante em um país que, como a Inglaterra, já foi palco de tanta violência ligada a religião: você pode duvidar de tudo, criticar qualquer sistema de idéias, sem ser grosseiro com seus autores. Nenhuma teoria é sagrada. E isso, que ele chama o sagrado direito de ser ofendido é um avanço nas relações culturais.
Ele está debatendo uma lei proposta por Tony Blair que pretende introduzir uma proibição a toda forma de incitamento ao ódio religioso. “Nietzche considerava o cristianismo a maior desgraça da humanidade. Ele deveria ser perseguido?” Uma lei assim, que censura e tolhe as opiniões, segundo ele, reforça o racismo.
Ele fala que foi dar uma palestra em Washington, em março de 2003 e um senador republicano lhe perguntou porque Osama Bin Laden disse que eles são um país descrente, “não há nada que nós respeitamos mais do que Deus”. Ao que ele, Rushdie, respondeu ‘eu suponho que ele não pense assim’. Tomando a sua cultura como o modelo, o senador republicano se mostrou tão intolerante com a religião do outro quanto Osama Bin Laden. E isso surpreendeu Rushdie, a indignação sincera do homem.
O filósofo esloveno Slavoj Zizek afirma que a medida do verdadeiro amor é poder insultar o outro. Se há amor, se pode dizer coisas horríveis ao outro e nem por isso se faz uma guerra. E que isso de respeito pela cultura do outro, do politicamente correto parece a ele racismo. E ele mesmo se pergunta: como posso estar tão seguro de que não sou um racista? “Só há uma maneira: quando se pode trocar insultos, deboches, chistes sujos com um membro de uma raça diferente, e ambos sabemos que por trás não tem uma intenção racista. Se, ao contrário, jogamos o jogo politicamente correto ‘oh, como te respeito, que interessantes são teus costumes’, é um racismo invertido”.
Tanto Rushdie quanto Zizek apontam a tolerância, aprender a conviver com o diferente, inclusive criticando e aceitando a crítica, como a saída para o fundamentalismo religioso. Sustento que a segregação em nosso mundo atual tem envolvido muito mais os credos religiosos que as raças.
Se já sabemos com Freud que o ódio está no âmago dos laços sociais, como conseguir tal tolerância? O que poderia nos proteger da violência religiosa, como temos visto dia a dia nos noticiários? E não apenas entre religiões opostas. Semana passada, no Iraque, xiitas e sunitas, ambos islâmicos, começaram uma onda de violência declarada – digo declarada, pois a hostilidade já vem de séculos[2]. É o narcisismo das pequenas diferenças. Freud já nos disse que onde as pessoas têm mais coisas em comum é onde se tecem as maiores batalhas. 
Em quatro cartas trocadas entre o escritor japonês Kenzaburo Oe, Nobel de 1994, e o israelense Amós Oz, a segregação e a tolerância são discutidas. Hiroshima é para Kenzaburo um trauma assim como Auschwitz para Oz.  Kenzaburo acredita que a tolerância será a questão do século XXI – as cartas foram trocadas em 1998 – mas previu uma corrente forte em sentido contrário. Segundo ele, a esperança é o poder da imaginação, cada pessoa tentando de imaginar no lugar da outra.
Amós Oz responde que descobriu a cura do fanatismo: o bom humor. “Nunca vi um fanático bem-humorado e nem um bem-humorado se tornar fanático[3].
Zizek e Oz apostam no humor. Esta é a aposta freudiana também. O humor é um triunfo do eu e do princípio do prazer. Uma forma de lutar contra a “crueldade” do real. Freud diz que o humor é uma rebeldia, é como dizer: “Aqui está o mundo, que parece tão perigoso! Não passa de um jogo de crianças, digno apenas de que sobre ele se faça uma pilhéria”.
Infelizmente, o humor é um dom raro, precioso, que poucos tem. Oz o sabe, já que alega que vai concentrar o bom humor em pílulas e distribui-lo. Assim, mesmo o humor é uma saída precária, pois ele não é contagioso. Não é um dom distributivo.
Voltando agora às charges do Profeta Maomé, farei uma analogia. Quando convidamos alguém para freqüentar nossa casa, não é educado dizer ao convidado que ele está mal-vestido ou que não usa os talheres direito. Ser tolerante é saber o que se pode dizer a alguém. É levar em conta o que o outro pode saber.
Discordo de Salman Rushdie que se possa questionar tudo, e mesmo de Zizek que se pode suportar tudo porque se ama. Afinal, é na cama onde o amor se deita que acontecem as piores tragédias. A verdade tem limites, não a dizemos toda. Ainda que pese as afirmativas de que os muçulmanos sejam fundamentalistas – mais uma universalização.
E além do mais, achincalhar a religião do outro é como – com as devidas proporções - dizer ao nosso convidado: coma direito, você está segurando o garfo de forma horrível. Tenho certeza que qualquer pessoa bem educada acharia isso um horror. E além do mais, Freud já nos mostrou que o humor envolve quem o faz e quem o assiste. E com essas charges só houve graça para um lado.
É por isso que a epígrafe desse trabalho é um trecho da música milonga do mouro judeu. Seus autores dizem que mesmo pela Jerusalém dourada, de mil vidas mal gastadas em cada mandamento, a guerra é muito má escola, não importa o disfarce que ela use.Um homem não é mais que um homem. E se há Deus assim ele o quis”.


Bibliografia

1. FREUD, S. O futuro de  uma ilusão.  Obras Completas. Vol. 21. Rio  de Janeiro: Editora Imago, 1976.
2.______ S. Mal-estar na civilização. Obras Completas. Vol. 21. Rio de Janeiro: Editora Imago, 1976.
3. _____ O humor. Obras Completas. Vol. 21. Rio de Janeiro: Editora Imago, 1976.
4. KENZABURO & OZ. A dor compartilhada. Caderno Mais. Folha de São Paulo, 10 de janeiro de 1999.
5. LACAN, J. O seminário, livro 7: a ética da psicanálise. Rio de Janeiro: JZEditor, 1991.
6. ______ O seminário, livro 11: os conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: JZEditor, 1993.
7. _______ Televisão. RJ: JZEditor, 1993.
8. _______  O seminário, livro 17: o avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: JZEditor, 1992.

9. _______ Entrevista a imprensa do Dr. Lacan. 29 de outubro de 1974 no Centre Culturel Français-Rome. Tradução: Association Freudienne Internacional.
10. OZ. A. Contra o fanatismo. RJ: Ediouro, 2004.
11. ____ Meu Michel. SP: Cia das Letras, 2002.
12. RUSHDIE, S. O sagrado direito de ser ofendido. Revista Bravo, encarte Livros. SP: Editora Abril, abril 2005.
13. SOLER, C. Sobre a segregação. In: O brilho da inFelicidade. RJ: Contracapa, 1998.
14. ZIZEK, S. La medida del verdadero amor es: Puedes insultar al outro. Entrevista dada a Sabine Reul e Thomas Deichmann. Instituto de Essen, Alemanha. 2002.







[1] Cito o exemplo de Zizek: Jerry Falwell,  figura conhecida americana, diante do ataque ao World Trade Center afirma que isto era um sinal de que Deus não mais protegia os EEUU, porque eles haviam tomado um caminho de maldade, homossexualidade e promiscuidade.

[2] O que nos parece hilário é que os xiitas, que são maioria e que foram espezinhados no governo de Sadam Russein,  descobriram que a intrusão do governo americano com suas eleições arranjadas lhes favoreceriam, já que são em maior número. Vejam que até um dispositivo democrático como a eleição pode ser usada  para acirrar guerras.
[3] Continuando o texto de Oz: “Em outras palavras, meu tipo de messias chegará rindo e contando piadas. (...) O fanatismo é muito contagioso. Pode-se pega-lo no próprio ato de tentar cura-lo. Conheço o perigo de se tornar um fanático antifanatismo. Assim como a violência, o fanatismo pode se disfraçar de várias outras coisas”.