domingo, 25 de setembro de 2011

Vagas estrelas da Ursa

Em Volterra foi ambientado a saga Crepúsculo – descubro isso agora - mas também nela, Luchino Visconti filmou em 1965, Vagas estrelas da Ursa. Belíssimo filme de Visconti. Nele, Claudia Cardinale é Sandra, casada com um americano, vivendo em Genebra, está de volta a seu país, a Itália, a essa pequena cidade, província de Pisa, na Toscana, para uma homenagem a seu pai, que foi morto no Campo de Concentração de Auschwitz e, também, para reviver a infância e a adolescência – incestuosa? – com o irmão Gianni.


É um filme sobre a memória, sobre o inconsciente, o que há por baixo do aparente, um passado enterrado que vem à tona. Por isso Volterra serve bem como metáfora, pois ela está desmoronando e, atrás das marcas do Império Romano, aparece o período etrusco. Na entrada da cidade, Sandra conta a seu marido Andrew que as marcas dos etruscos, esse povo que estava antes, estão por tudo. Na casa-castelo onde chegam, em que Sandra e seu irmão Gianni viveram uma infância tão densa, repleta de mistérios, os vasos etruscos estão pela casa. Assim, Visconti usa Volterra como Freud usa Pompéia, para dizer que por trás do esquecido, estão as ruínas do passado, prontas para serem resgatadas. Pompéia e Volterra são o passado, o inconsciente, o infantil. Tanto é o infantil que o nome do filme é o começo do poema I racconti (As lembranças) de Giuseppe Lampedusa: Vagas estrelas da Ursa, eu não contava/Voltar ao hábito de vos olhar/Sobre o pátrio jardim esplendoroso/E conversar convosco das janelas/ Deste refúgio onde morei menino/E vi o fim das minhas alegrias.

O filme é sobre isso: o fim das alegrias da infância. O exílio da infância. Assim Freud escreve em A Interpretação dos Sonhos: tantas histórias de sujeitos exilados – ele comenta Ulisses – refletem esse exílio que é o da infância. A felicidade que se sentiu quando criança nunca mais se encontra. É esse o verdadeiro paraíso perdido do humano: seu infantil. Esse é o discurso de Gianni, que escreveu um romance para falar de sua infância, ele e a irmã Sandra, da alegria que sentia e perdeu. Nesse romance escreve uma cena incestuosa com a irmã, do desejo, da sede que sentia pelo corpo dela. Ela não aceita que ele publique o livro, pois as pessoas da cidade já achavam que eles tinham uma ligação muito forte e lendo o livro vão achar que realmente isso aconteceu e não foi apenas ficção. Parece pelo diálogo dos dois que essa é a ficção de Gianni com relação a Sandra, mas não a dela com ele. Depois da conversa com a irmã, Gianni encontra um título para seu livro: o poema de Giacomo Leopardi, Vagas estrelas da Ursa. Por que Visconti deixa esse lapso no filme? Não é de Leopardi e sim de Lampedusa. E ele devia saber muito bem isso, pois dois anos antes já tinha filmado um livro de Lampedusa, e exatamente com Claudia Cardinale como atriz: O Leopardo.

O drama de Sandra é outro: ela não perdoou a mãe e o amante, e todos da cidade, pois acha que todos podem ter sido os delatores de seu pai, que entregaram seu pai para os nazistas. Reencontrar seu passado em Volterra é reencontrar-se com sua raça, com seu sangue judeu, com seu pai.

Seu marido, que não gostou nada dessa vida da esposa, de tudo isso de seu passado, que ele não faz parte, quer tirá-la de Volterra o quanto antes, e que ela esqueça tudo, apague essas histórias. Ela diz: não esqueço e não perdôo ninguém.

Gianni se afundou em seu desejo incestuoso pela irmã, pela infância que se foi; sua mãe enlouqueceu; o pai morreu em Auschwitz; o marido americano quer uma mulher toda dele, transparente, não aceita os meandros da vida de Sandra que ela quer manter guardados e, assim, vai embora. E fica ela lá, só, na colina de uma cidade que aos poucos desaba, enredada em sua solidão, a manter a ética da memória. Tal como uma Antígona.

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