segunda-feira, 6 de abril de 2015

AS MÁSCARAS DO AMOR


XV ENCONTRO NACIONAL DA ESCOLA DE PSICANÁLISE DOS FÓRUNS DO CAMPO LACANIANO NO BRASIL
AMOR E SEXOS
Campo Grande, 13 a 16 de novembro de 2014

Andréa Brunetto

Há tantas máscaras quantas insatisfações, afirma Lacan em sua aula de 16 de abril de 1958. Essa aula do Seminário V, As formações do Inconsciente, em que Lacan falará sobre as máscaras do sintoma e ainda um episódio da epopeia romântica Jerusalém Libertada, de Torquato Tasso, deram-me a inspiração do que falar para vocês, aqui, nesse encontro sobre Amor e Sexos.
Nessa aula de seu seminário, Lacan sustenta que o desejo está ligado a alguma coisa que é sua aparência, a máscara1. É uma questão essencial que temos na experiência analítica, diz Lacan, essa relação entre o desejo e aquilo que ele se reveste.  E vai dizer que também o sintoma se apresenta sob uma máscara paradoxal. Ele retoma o Caso de Elizabeth von R., descrito por Freud nos Estudos sobre a Histeria, para dizer que seu sintoma é uma máscara de dupla identificação: com a irmã e com o cunhado.
A ideia da máscara significa que o sintoma se apresenta de forma ambígua. “A questão é a da ligação que permanece como um ponto de interrogação, um x, um enigma, com o sintoma do qual ele se reveste, ou seja, com a máscara”.2 A máscara é essa coisa fechada que permite o reconhecimento do desejo. Identificar a máscara com o desejo freudiano é algo diferente do que se dirigir a um objeto.
A análise serve para comprovar esse caráter vagabundo, fugidio e inapreensível do desejo, alega Lacan. É o que faz com que ele diga: o desejo é mascarado. Podemos desmascará-lo algum dia? É uma pergunta que faz no Seminário 10.
Uma máscara é um revestimento, diz Lacan. Acompanhando seu ensino, também podemos chamá-la de vestimenta, vestido. Um muro. Uma vestimenta que faz com que a periquita de Picasso só se enamore dele quando estiver vestido. Sem a máscara, a vestimenta, o muro, a armadura, é o gozar de um corpo. E isso não deixa claro o que é o amor.
Vou chamar a máscara de um destino pulsional. Assim Freud dá o exemplo de um destino, o de Tancredo e Clorinda. Jerusalém Libertada foi citada por Freud em Além do Princípio do Prazer. Escrita em 1581, ambientada no tempo das cruzadas, da guerra entre pagãos e cristãos, assim vista pelo seu autor Torquato Tasso, italiano, cristão, que a escreveu morrendo de medo que algo desgostasse a inquisição e que ele próprio fosse considerado pagão.
Em Jerusalém Libertada, a máscara é uma armadura. Clorinda, a pagã, que usa uma armadura para ficar forte e “poder no perigo aventurar-se”, consegue energia e amor ardente quando a usa. Tancredo mata Clorinda em um duelo, ela disfarçada de cavaleiro. Tirando a armadura do suposto cavaleiro que ferira, vê o corpo casto da donzela – terá daqui saído a inspiração para Diadorim? – e com ela morta nos braços, sente-se condenado a um indigno existir, a viver em memória dos amores infelizes. No canto seguinte da epopeia, abre caminho numa estranha floresta mágica que aterroriza o exército dos cruzados. Com a espada faz um talho em um cipreste e ouve lamentar-se a voz de Clorinda: novamente me mataste! Na árvore estava aprisionada a alma de sua amada. E o narrador nos diz: hábil guerreiro, só débil para o amor foi. Deixa-se iludir por falsas imagens. No aspecto amoroso, Tancredo é como todos, embora nem todos sejam hábeis guerreiros. A isso, Freud chama um destino, “a perpétua recorrência da mesma coisa”.3
Lacan afirma no Seminário 20: mais, ainda, que o amor baseia-se numa certa relação entre dois saberes inconscientes, apontando que o sujeito aproxima-se de seu objeto na condição de que não o saiba, que esse saber é do inconsciente. “No baile dos incoerentes do amor, é preciso uma máscara para apreender o objeto. Ele se refere a comédia de Alphonse Allais, em que Raul e Marguerite, em um casamento de cinco meses, feito de muitas brigas, fazem um reconciliação no baile de máscaras em que cada um foi mascarado para, desmascarar a suposta infidelidade do outro.”4 A relação entre a orientação da libido e o desconhecimento fica evidente tanto no Banquete como na tragédia de Édipo. Sócrates só pôde colocar seu saber sobre o amor demonstrando que não sabia e que o que descobriu lhe foi contado por uma mulher, Diotima. O que Lacan marca é que só pode existir discurso amoroso a partir do ponto onde ele não sabia. E não só no discurso. O amor é concebido sem que Poros o soubesse.5
Esse desconhecimento sobre o objeto que causa o sujeito, que para além das vestimentas que o mascaram e fazem um happy end vitoriano, Lacan encontrou no romance de Marguerite Duras, O Deslumbramento de Lol Stein. Um vestido que deixado cair, evidenciava, para além da fantasia, o objeto a. Um vestido presta-se muito bem a ser uma máscara. As mulheres bem o sabem. Não apenas dos vestidos, da mascarada para o outro.
Em O Seminário 11: os conceitos fundamentais da psicanálise, diz: “Se há algum domínio em que a tapeação tem chance de ter sucesso é certamente no amor que encontramos seu modelo”.6 E no capítulo seguinte desse seminário, Lacan vai chamar o amor de uma falsidade essencial. Para depois afirmar: “enquanto miragem e especular, o amor tem essência de tapeação, Mas nessa tapeação, algo é paradoxal: o objeto a. “Eu te amo, mas porque, inexplicavelmente, amo em ti algo que é mais que tu – o objeto a, eu te mutilo.”7
A máscara, a vestimenta, a armadura, ou o muro, que Lacan equivoca com amor, mostram que o amor é a máscara. O amor é a tapeação não apenas necessária, mas essencial.
Mais dois exemplos mascarados. Um da literatura e outro da clínica. O da literatura é um pouco mais atual que Jerusalém Libertada. É do Século XIX, uma comédia de Max Beerbohm, inglês, contemporâneo e conterrâneo de Oscar Wilde, participava do mesmo grupo de escritores que seu colega mais famoso, e tão ácido na crítica quanto aquele. O farsante feliz conta a história de Lord George Hell, nobre hedonista, rico, perverso, jogador, voraz, destrutivo, rebelde, covarde, cínico, antipático, odioso, insolente. Vou parar por aqui na lista de adjetivos com que o autor caracteriza seu personagem. Nunca se preocupou em dissimular sua perfídia, cheio de amantes, madrugadas na luxúria e nas mesas de jogo, fugindo de uma amante italiana que o perseguia. Uma noite vê uma jovem dançarina um pouco desajeitada em um clube e se apaixona à primeira vista. Ajoelha-se diante da jovem Jenny Mere e a pede em casamento. Ela responde que não, “jamais poderá ser esposa de alguém cujo rosto não seja de um santo”. “Talvez Millord, seu rosto reflita um amor por mim, mas reflete muito da vaidade do mundo. Só a um homem cujo rosto seja tão maravilhoso como o dos santos, só a este poderei entregar meu verdadeiro amor”.
Para ir aos finalmente, Lord George vai a um famoso fabricante de máscaras, pede uma que represente o verdadeiro amor e a face de um santo. O fabricante procura em seu depósito de máscaras e encontra uma que confeccionou para um homem usar em suas bodas de prata e depois lhe devolveu. Lord George a quer e diz que vai usá-la para sempre. Com ela conquista Jenny Mere, vão se casar, compra uma casa rústica, no bosque; devolve os bens que ganhou ilicitamente, nas mesas de jogos. O único problema era que os beijos de máscara ficavam um tanto insípidos, se perdia o gosto da boca do outro. Às vezes pensava em tirar a máscara e beijá-la, não queria essa barreira entre ele e sua jovem esposa. Mas depois retomava o bom senso e sabia que teria que usar a máscara para sempre. Apesar do material duro com que era feita, ela representava o verdadeiro amor.
Há uma cena final em que a amante italiana os desmascara. Diz a Lord George que a máscara campestre de sua jovem esposa é melhor que a dele. Avança sobre a dele, arranca e a joga no chão. E aí vem a surpresa para ele e a ex amante italiana: por trás da máscara seu rosto tinha se tornado igual à máscara. Ele olhou sua amada nos olhos e viu isso refletido nos olhos dela. E foram felizes para sempre. Mascarados. Ele de santo, ela de jovem campestre.
Agora o exemplo da clínica. Um homem jovem procura a analista porque comentaram que ela era intelectual. É esse o significante qualquer com o qual começa sua análise. Nela fala de suas dificuldades nos estudos, que tem desde criança. E, sobretudo, de um relacionamento amoroso fracassado dois anos antes. Nesse momento já está namorando outra pessoa, mas fala daquela namorada, que vivia lendo, estudando, só tinha papo cabeça, conversa intelectual e que isso o entendiava. Sempre que dizia sobre a ex, terminava assim “e aí eu me entediei e terminei”. E nessa vez em que a palavra vacila, como um tropeço, diz “e aí me apaixonei”.
O significante pode ser uma máscara? Para esse homem que se sente deslocado, fora do mercado de trabalho, do negócio familiar – é uma das queixas: ele é out da empresa familiar – e da relação de amor que deixou perder porque não enxergou que estava apaixonado, o intelectual o interessa muito, e ele achava que isso o entediava. Esse in que ele esperava alcançar para deixar de ser out é uma sílaba de seu sobrenome. Trata-se aqui da construção de um nome próprio. Um sinthoma. Isso é mais do que uma máscara-semblante identificatória?  






1 Lacan, J. O Seminário, livro 5, As formações do inconsciente. RJ: Jorge Zahar Editor, p. 331.
2 Ibid, p. 338.
3 FREUD. Standard Obras Completas. Além do princípio do prazer.
4 Brunetto, A. Sobre amores e exílios: na fronteira da psicanálise e da literatura. SP: Editora Escuta.
5 Ibid.
6 LACAN. J. O Seminário, livro 11: os conceitos fundamentais da psicanálise. RJ: JZEditor, p. 128.
7 Ibid, p. 253. 

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