domingo, 19 de abril de 2015

A história que o pai calou

Um filho, um dia qualquer, folheando um livro do pai, descobre uma carta e nela, que ele teve um filho com uma alemã, antes de se casar com sua mãe. Nunca soube dessa história, nunca foi falada na família. A partir dessa descoberta, mexendo nos livros e nas gavetas do pai e da mãe, descobre outros capítulos da história pregressa do pai: em 1931, jovem jornalista, é enviado a Berlim, fica lá um ano e meio e conhece Anne. Andam pelas ruas de Berlim, se apaixonam, ela engravida. Quando ela está com alguns meses de gravidez, ele é chamado de volta ao Brasil. Deixa-a, promete voltar, mas embarca no navio sem nem ao menos olhar para trás e acenar para ela. Essa cena é imaginada mais de trinta anos depois por esse filho do jornalista, que tenta entender porque o pai fez o que fez. De factual há uma carta de Anne no ano seguinte perguntando se ele voltará, que quer saber, pois o bebê nasceu, é um menino e precisa ser registrado. Ela agora tem um pretendente que se propõe a ficar com ela e a registrar a criança.
O filho também descobre que o governo alemão escreveu ao pai dele para averiguar se ele não tem sangue judeu, precisam averiguar se a criança não tem antepassados judeus a fim de definir seu destino, pedem certidões até dos avós desse homem. Ele só consegue as suas e de seus pais. O governo alemão não acha suficiente e escreve novamente. Pede que o pai brasileiro, que não registrou a criança, envie ajuda financeira para sustenta-la, que está sob a responsabilidade do governo alemão. Anos difíceis, às vésperas de começar a Segunda Guerra Mundial. Essas cartas todas estão impressas nas páginas do livro que acabei de ler.
Esse filho, um dia, na mesa de almoço familiar, solta essa frase: eu não teria vergonha de ter um filho alemão. O pai para, com o garfo cheio de comida, suspenso entre o prato e a boca, olha-o e não diz uma palavra. Nada. Dessa história o pai nunca falará nada com ele. E, pelo visto, com ninguém, pois o filho sente que também sua mãe gostaria de ter uma ideia do que foi essa história. Mas nada, nenhuma palavra.
O filho que faz essa investigação sobre a história do filho alemão do pai, filho que o pai não registrou, não criou, não foi atrás dele na Alemanha – no romance, o narrador-filho com irmão alemão, cria uma cena em que o pai vai à Alemanha atrás do filho – é Chico Buarque de Holanda. O pai se chama Sérgio Buarque de Holanda, o grande historiador que escreveu Raízes do Brasil. O filho alemão de Sérgio Buarque de Holanda foi chamado Sérgio Ernst, ficando só com o sobrenome da mãe, Anne Ernst. Quando ela o deu para adoção – eu acho que essa criança pode ter sido tomada dela, já que o governo alemão tinha a suspeita que ele tivesse sangue judeu – seu nome e sobrenome foram mudados. Mas assim que ele descobriu sua história, retornou ao nome Sérgio, dado por sua mãe.
Em 2013, Chico Buarque com quase setenta anos, foi a Berlim resgatar a história de seu pai. Com a ajuda de seu editor e de um historiador, com a ajuda de sua filha Silvia Buarque na tradução, conheceu a família e a história de seu irmão alemão Sérgio Gunter. Ele manteve o sobrenome da família que o adotou. Chico encontrou-se com sua ex-mulher, sua filha, neta, amigos e assim, soube quem foi Sérgio, seu irmão alemão, que tinha morrido de câncer aos 51 anos, na década de 80. 
Desse drama que parece ter assombrado sua história e a de seu pai, Chico escreveu seu melhor romance, este que está nas livrarias agora, O irmão alemão.
Agora um impressão minha: sonhei essa noite com Sérgio Günter e queria ter sabido o que foi a vida dele, nascido no pré-guerra, pesando sobre sua cabeça a suspeita do "crime" de ter sangue judeu, vindo de um pai que não foi pai, que não o registrou, "dado" para adoção, tendo o nome mudado, depois retornado ao nome Sérgio, vivido sua juventude na Berlim Oriental, morrido de câncer tão jovem. Creio que vou pensar em Sérgio Günter por vários dias ainda.




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