domingo, 15 de agosto de 2010

Palavras, te amo

A obra da cineasta espanhola Isabel Coixet é impressionante, pois consegue duas façanhas. A primeira é fazer um cinema hollywoodiano com a densidade do cinema europeu; e a segunda, se repetir sempre em filmes com histórias tão diferentes. Sim, achamos que todos seus filmes falam do mesmo: o amor perdido, a felicidade inalcançável, a busca de um objeto que aplacará uma falta, e sua conseqüente impossibilidade de alcançá-lo, a relação entre as palavras e o desejo.

O cinema tem uma estética que necessita de belas imagens, finais felizes, heróis - ainda mais os hollywoodianos. Segundo Jean-Claude Carriére, em A linguagem secreta do cinema, o cinema é uma ficção, ainda que trate de uma pessoa que existiu. Alega que ele tem uma linguagem rápida, tem pressa; é o triunfo do visível. Coixet consegue tudo isso: triunfa no visível para dizer que o que realmente importa são as palavras, suas histórias secretas, as coisas não ditas, o desejo, a perda. E o amor irrealizado, sempre o amor irrealizado. E para isso usa a ficção. Aliás, não é só no cinema, é próprio da verdade ser dita a partir da ficção.

O amor perdido é o tema de todos seus filmes. Mas nesse comentário que fazemos de sua obra – que não é mais do que um elogio da mesma – enfatizaremos dois filmes: Cosas que nunca te dije e, sobretudo, Paris, je t´aime.

Cosas que nunca te dije

Em 1996 faz esse primeiro filme com atores americanos, e nele antes de apresentar os personagens, uma voz faz perguntas sobre o amor: podes amar tanto uma pessoa, que tendo medo de perdê-la, estrague tudo e acabe perdendo-a? Podes despertar ao lado de alguém que nem tinha imaginado conhecer? E estas duas perguntas retratam os protagonistas, Don e Ann. Os dois vivem o sofrimento de uma perda e o desejo que surge por outra pessoa. Don, pós-separação, buscando sentido para sua vida, participará de um projeto intitulado Disk Esperança, no qual escuta ao telefone pessoas que sofrem e, sobretudo, cogitam suicidar-se. É assim que escutará Ann, que após ser deixada pelo namorado, toma um vidro de removedor de esmaltes. Ela vive atormentada em busca de uma resposta que seu ex-namorado não pôde lhe dar: se até vinte dias atrás, ele a queria, o que aconteceu que agora não quer mais? Como isso é possível? É uma pergunta sobre o desejo, embora ela use a palavra felicidade. No telefonema em que Don a escuta, ela diz: “eu era uma pessoa feliz. (...). Quando somos felizes não nos damos conta, mas agora não tenho a pessoa que quero. Isso é injusto, deveríamos poder guardar um pouquinho da felicidade para o momento de não mais a termos, armazená-la como fazemos com os cereais em nossa despensa”.

Impossível armazenar o desejo como cereais ou um pote de sorvete Häagen-Dazs1 . O filme evidencia que o desejo está nas palavras. Em uma loja, Don reconhecerá Ann como a moça que escutou pelas palavras – sua teoria sobre a injusta felicidade – e será ela a mulher que não tinha imaginado conhecer e que surge inesperadamente. Lacan afirma que “o último sentido da palavra do sujeito diante do analista é a sua relação existencial diante do objeto de seu desejo2 . É isso Ann para Don: uma voz e uma teoria sobre a felicidade. Em sua conferência em Aracaju, no Brasil, em 2007, Carmem Gallano comentou outro filme de Coixet, A vida secreta das palavras, e alegou que “a vida secreta das palavras tem assim sua raiz no bater da pulsão esburacando o corpo”. Continuando: “o desejo, inerente à realidade sexual do inconsciente, é a vida secreta das palavras”3.

Ann grava um vídeo para seu ex-namorado em que faz o seguinte questionamento: “em que momento eu comecei a querer-te?” E a resposta: “no momento em que me ligou para dizer que me deixava. Nesse momento me lembrei do amor que sentia, da ternura, do sexo, da tua língua. Dei-me conta que o que sentia antes não era mais do que um simples reflexo do que é o amor. Descobri que não tinha te querido nunca”.

A mesma Ann que tinha definido a felicidade como impossível, agora começa a mostrar o porquê da impossibilidade. O objeto é amado no momento em que é perdido. É Das Ding. Lacan usa a teoria hegeliana para sustentar isso - o conceito é o tempo da coisa 4 – a coisa é perdida e, então, simbolizada. “Não há nada no mundo que possa adquirir valor simbólico se não é com a condição de que se possa perder”5

Essa é a grandeza desse filme: mostrar que o caminho do sujeito para a satisfação passa entre duas muralhas do impossível6. Assim, duas personagens dizem, seguindo Santa Tereza: “há mais sofrimento pelas preces atendidas do que por aquelas que não o foram. Então, tens cuidado com o que pedes”.

Paris, je t´aime

Nessa grande declaração de amor pela cidade de Paris, feita por muitos diretores, e ambientada em seus vários arrondissements e lugares históricos, Coixet encena a sua em um café na Bastille. Sérgio – representado pelo ator e também diretor Sérgio Castellito – espera sua mulher para o almoço e para comunicar-lhe que está apaixonado por outra e quer o divórcio. Repassa mentalmente todas as coisas que gostara em sua mulher e que agora o irritam. Ela chega e começa a chorar; depois de um momento de dúvida – “será que ela sabe que vou deixá-la?” – descobre que é ela quem vai deixá-lo: está com um quadro grave de leucemia. Crê que tem de estar à altura da situação, manda uma mensagem à amante – “esqueça-me” – e age como um apaixonado com a mulher, fazendo para ela todas as coisas que não fazia antes. “De tanto se comportar como apaixonado, apaixonou-se por ela outra vez. (...) E quando ela morreu em seus braços, entrou em um coma emocional do qual não saiu jamais”. E se deterá a olhar pelas ruas as mulheres com sobretudos vermelhos, que não serão mais que sombras daquela que se foi.

Quando fala da pulsão escópica, Lacan pergunta “no momento do ato do voyeur onde está o sujeito, onde está o objeto?...o sujeito não está lá enquanto tratando-se de ver, no nível da pulsão de ver” 7. E Lacan continua dizendo que o olhar é esse objeto perdido – e aí faz sentido o poema de Aragon, no começo do segundo capítulo desse seminário: um olho vazio habitado pela ausência de ti que faz sua cegueira – e repetidamente reencontrado. E Lacan responde o que o sujeito procura ver: uma ausência, uma sombra detrás da cortina é o que o voyeur procura. Ou, a partir desse filme, podemos dizer os vestígios da morte, de um objeto que já se foi, já se moveu. “Todas as coisas se movem e nada permanece imóvel”8. E com isso chegamos à frase de Heráclito, que é epígrafe do capítulo 14 do O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise: ao arco é dado o nome da vida (Bios) e sua obra, é a morte9. Lacan usa a metáfora do arco para falar da pulsão: como uma flecha, ela faz um arco, é o seu trajeto (aim) e contorna seu alvo (goal).

Os filmes de Coixet mostram-nos o que é o desejo, a pulsão e o objeto a. O objetivo desse comentário não foi mais do que elogiar a grandeza dessa diretora, que encena aquilo que estudamos. E também, mostrar um enigma com o qual nos deparamos em seus filmes. Nesse Cosas que nunca te dije após a cena inicial em que duas perguntas são feitas - e que depois ficamos sabendo que a voz é de Don - aparece uma máquina de lavar girando, girando, cheia de roupas. O primeiro encontro de Don e Ann será em uma lavanderia. Quando saem, ele olha para trás e vê que outro casal se beija enquanto a máquina roda. Também em outro filme de Isabel Coixet, Mi vida sin mi, os protagonistas se apaixonam em uma lavanderia. É como se a lavanderia fosse um limbo que permite a relação sexual acontecer, um espaço em que o encontro é possível. Por que uma lavanderia?


Andréa Brunetto, janeiro 2009.
Extrato do texto publicado na íntegra na Revista Pliegues, de psicanálise, na Espanha


Referências bibliográficas

BALDIZ, Manuel. “Lo real como trauma”. In: El inconsciente y la repetición. Documentos de trabajo de ACCEP. Barcelona: ACCEP, 2003.

BRUNETTO, Andréa. Não diga amor. Seminário proferido em 20 de março de 2008. Atividade conjunta do Ágora Instituto Lacaniano e Livraria Sub-Cultura. Campo Grande/MS.

CARRIÈRE, Jean-Claude. A vida secreta do cinema. Rio de janeiro: Nova Fronteira, 2006.

GALLANO, Carmem. “Família e inconsciente”. In: Stylus. Revista de Psicanálise da Associação Fóruns do Campo Lacaniano-Brasil. Editora UFMS, n. 15, novembro 2007.

HERÁCLITO. Os pensadores. Filósofos pré-socráticos. São Paulo: Abril Cultural, 1973.

LACAN, Jacques. O seminário, livro 1: os escritos técnicos de Freud. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1986.

LACAN, Jacques. O seminário, livro 11: os conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985.

MONSENY, J. “Como llegan los hombres a interesarse por El Otro sexo?”. In: Notas Freudianas. Revista del Grupo de Estudios Psicoanalíticos de Asturias, n. 06, 2004.

NOMINÉ, Bernard. Psicoanálisis de la vida amorosa. Venezuela: Editorial Iada, 2007.

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