domingo, 8 de agosto de 2010

Sobre Irène, Briseida e a imagem que não reina

Irène, último filme de Alain Cavalier, lançado em 2009, trata da morte de sua amada, ocorrida quase 40 anos antes. Irène, sua mulher, uma ex-miss França que ele tentou transformar em estrela, mas que morreu antes, sofreu um acidente de carro em 1972. E ele, o diretor, retoma seus diários de 1971-73 para nos mostrar as cenas da vida cotidiana, pequenos acontecimentos, o dia-a-dia com Irène.

O texto do diário é lindo, sensível, uma verdadeira poesia, mas o que queria ressaltar é que o diretor, com a câmera no ombro, um homem já idoso, é quem mostra seu descompasso e sua relação com Irène. Com as palavras e com as imagens é ele que nos captura.

No filme, praticamente um documentário, também uma busca de qual mulher representará Irène, aparece Sophie Marceau se oferecendo para representá-la, mas ele não escolhe nenhuma atriz para ser Irène. Há uma única imagem, mas não é Irène: ele coloca uma cena de um filme antigo que fez, A chamada do amor, com Catherine Deneuve. Mas só uma cena rápida e também não é Deneuve que será Irène: nenhuma imagem representará Irène. Só os significante tirados do diário e o anagrama de seu nome com o qual brinca: Irène, reine, renie.

Cavalier está muitos anos atrasado ao evento, quando faz seu filme. Digo isso porque a cena que o martiriza é essa: Irène o chama para passear, ele responde ‘espera’. Ela o chama novamente e pede que se apresse, ele responde novamente ‘espera um pouco mais, ainda’. Ela sai, pega o carro, sofre o acidente e morre.

Essa cena lembrou-me duas coisas. A primeira, duas frases de “La chanson des vieux amants”, conhecida música do cantor belga Jacques Brel, em que o tormento dos amantes se evidencia na discrepância no tempo: “Claro que você chora um pouco cedo demais, e eu me dilacero um pouco tarde demais”.

E a segunda associação que faço com o filme é o segundo paradoxo de Zenão de Eléia, Aquiles e a tartaruga, usado por Lacan para sustentar que a relação sexual não existe. No Seminário 5: as formações do inconsciente, que estamos estudando agora no Ágora, no capítulo 6, Lacan afirma: “Tudo o que diz respeito à linguagem procede por uma série de passos semelhantes àqueles com que Aquiles nunca, nunca chega à tartaruga” (p.107). E no capítulo seguinte retoma Aquiles e a tartaruga: “...nada da demanda, desde que o homem entrou no mundo simbólico, pode ser alcançado, a não ser por uma sucessão infinita de passos de sentido. O homem, novo Aquiles, perseguindo uma outra tartaruga, está fadado, em razão da captação de seu desejo no mecanismo da linguagem a essa aproximação infinita e nunca satisfeita, ligada ao próprio mecanismo do desejo, que chamaremos simplesmente de discursividade” (p. 127).

E no “Seminário 20 Mais, ainda”, Lacan retoma o paradoxo de Zenão para sustentar que não se alcança o Um: “quando Aquiles dá um passo em direção a Briseida, ela tal como a tartaruga, adiantou-se um pouco”. E acrescenta, mais adiante: “E é preciso que Aquiles dê o segundo passo, e assim por adiante.....Aquiles, é bem claro, só pode ultrapassar a tartaruga, não pode juntar-se a ela. Ele só se junta a ela na infinitude” (p.16).

Cavalier, Aquiles moderno, como todos nós, sabe que não há imagem que faça alcançar Irène – Irène é uma Briseida moderna, mil vezes perdida - e se ele chega até onde ela estava, ela já se foi, não está mais. Só lhe resta brincar com o significante, deixar o desejo escorrer nessa ‘aproximação infinita’ com a qual não se alcança a demanda. É Alain Cavalier, o artista, que nos ensina que a imagem não é rainha.
Andréa Brunetto

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