terça-feira, 26 de outubro de 2010

Sobre finais felizes

Nas duas últimas semanas a América Latina teve grandes motivos para comemorar. Começo com os mineiros do Chile. O salvamento dos trinta e três mineiros foi o tema que ocupou ininterruptamente as televisões no mundo todo; sem feridos, salvaram-se todos. Foi uma grande vitória. Vitória de quem? É isso que pretendo responder. Nos primeiros dezessete dias, ficaram incomunicáveis, sem informações. As famílias não sabiam se estavam vivos. E depois o mundo descobriu que estavam, porque o governo de seu país colocou em marcha essa estratégia milionária, tecnológica, midiática e gigantesca, que nós, do mundo todo, pudemos acompanhar.


Freud escreveu um artigo sobre a psicologia do grupo, em que todos os preceitos teóricos podem ser aplicados a esse acontecimento: a importância do líder, para começar. É um líder que faz a coesão do grupo, e os demais se identificam com ele e o seguem. Será que podemos dizer que o líder era somente um dos mineiros que estava lá ou tem mais alguma liderança que se fez presente? Sabemos que de início, na mina, houve dois grupos, que à medida que o contato com o mundo exterior foi restabelecido, isso se desfez. Exatamente como se deu tal fato, vamos ter de aguardar o esperado livro em que contarão a história.

Como sobreviver, confinados no fim do mundo, à espera de um regate que não se sabia se seria exitoso? A incerteza da vida e a certeza da morte é o chão do dia-a-dia de todo ser humano, mas neste caso a possibilidade de morrer, e tragicamente, era enorme. Enquanto eu acompanhava o resgate, um a um, lembrei daqueles homens deixados para morrer no fundo do oceano, também em um agosto, mas dez anos atrás.

Mas os mineiros do Chile souberam-se esperados por suas famílias, seus pais, seu país, seu presidente. Pelo mundo. Até se prepararam para isso, treinaram oratória, fizeram barba, pentearam o cabelo e subiram para retomarem suas vidas. Esse é o melhor exemplo que me vem, no momento, da frase de Lacan ‘o desejo do homem é o desejo do Outro’. Nesse caso, ficou bem claro que o Outro os queria vivos, e se prepararam, com toda a liderança necessária, para virem à superfície.

Não esquecerei a noite de 12 de outubro de 2010, quando Florêncio Avalos, surgiu do fundo daquele poço, do centro da terra. Existe o feliz acaso [bon heur], diz Lacan. E foi isso que se deu. Dirão alguns que não foi acaso, que milhões de dólares foram gastos, e a melhor tecnologia foi investida, porém mesmo assim foi uma boa hora – usando o sentido da palavra em francês – pois com tantas dificuldades, tinha tudo para dar errado. E não deu.

Houve um líder entre os mineiros, mas houve um líder na pessoa do presidente, que não poupou esforços para trazê-los com vida para retomarem suas vidas; um presidente que ao recebê-los, escutou, como bom ouvinte, o que tinham a dizer. Como todos nós, do mundo.

Creio que muitos devem ter se perguntado: como eu teria agido se estivesse no lugar dele? Também essa pergunta está explicada no texto de Freud sobre os grupos. A identificação, diz Freud, “é conhecida pela psicanálise como a mais remota expressão de um laço emocional com outra pessoa’. Freud dá um exemplo: uma criança que perdeu um gatinho, declarou francamente que ela agora era o gatinho, então andava de quatro, não comia à mesa. O que quero dizer é que todos estavam lá, naquele buraco, e viveram aquele sufoco, aquela tensão de subir em um espaço claustrofóbico. Alguns mais, outros menos. Para quem isso não mobilizou nada é que há um problema. Uma pessoa próxima me disse: nem quero ver, só me conte ao final, e se tiver final feliz.

E vieram para retomar suas vidas com os mesmos ingredientes que já tinham antes, e que pudemos ver: mulher e amante, dívidas, problemas familiares e de saúde, etc. O que mudará em decorrência desse confinamento? Psicólogos e diversos especialistas que nem lembro mais suas designações agora, falaram sobre stress pós-traumático e sobre as possibilidades futuras. Também Freud escreveu sobre isso, embora à época não se chamasse assim ‘stress pós-traumático’, pois Freud tinha outra concepção do trauma. Em 1916, ele escreveu sobre os “fracassados do êxito”, aqueles sujeitos que, quando finalmente alcançam aquilo que almejavam, adoecem e produzem sintomas que os impede de serem felizes com a conquista. Os mineiros serão fracassados do êxito? Desenvolverão sintomas? Não sabemos, nem é possível a prevenção no plano psíquico. Respondendo com Lacan: esta é uma indelével decisão do ser.

A segunda alegria latina, deu-se na semana imediatamente anterior: Mario Vargas Llosa, conhecido escritor peruano, foi laureado com o Prêmio Nobel da Literatura de 2010. Autor de tantos livros, foi candidato a presidente de seu país; perdeu para Fujimori. Enquanto isso a escolha dos peruanos se mostrou errada para eles mesmos. Vendo as coisas hoje, pareceu-me que Llosa saiu vitorioso: deixou o Peru, foi viver na Europa e escreveu vários livros depois da campanha fracassada.. E agora vem esse prêmio, que é dele, dos peruanos e de todos nós, latino-americanos. E da literatura.

Seja com os mineiros ou nesse episódio, precisamos de tempo para compreender. É próprio da vida humana, construída na história, que o sentido se dê só depois.

Então Vargas Llosa, com suas estórias inventadas, de criaturas insubmissas diante da vida – é como ele em um ensaio começa a definir sua literatura – e com esses mineiros chilenos, que saíram do subsolo profundo, o ser humano pôde ser um pouco maior nesses dias. Voltando à pergunta ‘vitória de quem?’, respondo: a vitória é deles e é nossa; da América Latina. Quando a capacidade de laço social, quando essa energia que Freud chamou de pulsão de vida, vence, a vitória é da civilização.

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