domingo, 8 de agosto de 2010

Dia de tristeza infinda: Saramago morreu

Gostar é a melhor maneira de ter, ter é a pior maneira de gostar
Saramago foi um homem simples, um serralheiro que aprendeu tarde a ler, e depois, como uma surpresa, começou a escrever livros. De serralheiro, passou a entalhar palavras. Escrevia como vivia: de um jeito simples. Conta uma história que seu editor, ao receber o manuscrito do primeiro livro, queria colocar pontos, vírgulas, parágrafos, em sua escrita. Mas ele não aceitou. E então, ficou para nós essa escrita como uma associação livre, que toca para além do Eu.

Escuto agora todas as matérias sobre sua morte. A imprensa, quase unanimemente, diz: era tão pobre, de família tão pobre, tinha tão poucos recursos. Por acaso um escritor sai da riqueza? Por acaso sai da academia? Um escritor sai de sua história.

Há cerca de três anos quase morreu. Mas sua mulher Pilar lutou contra. Ele dizia a ela que tinha chegado a hora. Ela respondia que não. Já tinha desistido de escrever, mas como ela não aceitava que ele morresse, resolver escrever mais um livro. E saiu A viagem do elefante. Que tem como epígrafe: a Pilar, que não me deixou morrer.

Escreveu outros depois desse.

Em dezembro do ano passado, no avião, abro a revista da TAP e começo a ler uma entrevista feita recentemente com José Saramago. Nela faz o mais belo panorama de sua vida, de sua escrita e de seu encontro amoroso com sua atual mulher, a jornalista espanhola, Pilar.

Relata que tem dois lugares no mundo, Lisboa e sua ilha de Lanzarote e não sabe mais qual deles é seu lugar no mundo: a Lisboa, onde se fez homem e escritor ou Lanzarote, a ilha que escolheu para viver.

Das viagens que fez pelo mundo, respondendo a uma pergunta da jornalista Ana Sousa Dias, diz que a viagem mais importante é a viagem “das pessoas e das coisas, no tempo”. E conta sobre as casas que construiu: “Fizemos esta casa, fizemos outra em Lisboa. Nunca tive casas, nunca tive bens de raiz, e agora tenho tudo, a começar por uma mulher extraordinária que foi a grande sorte de minha vida. E não é pela comodidade da pessoa que envelhece e que tem a seu lado alguém a quem quer, a quem ama e que sabe que é amado e querido por essa pessoa. Não é isso. Escrevi em “Cadernos de Lanzarote que se tivesse morrido com 67 anos, antes de conhecê-la, teria morrido mais velho do que sou agora, porque ela veio trazer – nem sei dizer o quê – a felicidade, sim, mas a felicidade é uma palavra curta, veio trazer outra coisa, um sentido de vida novo. Mesmo assim, isso não diz tudo”.

Em parte sua afirmativa que Pilar tem todos esses méritos é mentira: são seus próprios recursos – e os jornalistas do mundo só falam de sua ex-pobreza – que lhe permitiram viver com tanta sorte e ser feliz com uma mulher. Mas atrás dessa mentira/ficção que conta-nos, fala uma verdade: a verdade mais estrutural de todo ser humano, de que somos orientados para o Outro. Vivemos pelo Outro e até deixamos de morrer pelo Outro.

Embora Saramago tenha tantos recursos, viveu a vida não como Poros e sim como Pênia – estou fazendo analogia com o mito de nascimento do amor – sempre pobre, simples, dormindo em chão duro, pelos caminhos. Por isso a surpresa de ter escrito livros, por isso a surpresa de ter tido casas.

Sei que ele como um serralheiro das palavras, esculpiu com sua obra, seu nome no mundo, mas hoje, especialmente hoje, não estou aceitando sua morte. E penso que a literatura nunca será a mesma. Estou muito, muito triste: nada mais de novos livros de Saramago, nada mais de entrevistas com Saramago nos dias que virão.

Campo Grande, 18 de junho de 2010
Andréa Brunetto

Um comentário:

  1. Saramago morreu e com ele foi embora uma das mentes mais férteis que a literatura abrigou. Fica agora o consolo das páginas já escritas que de tão cultas podem ser lidas e relidas em outros ângulos, criando assim uma obra infinita.
    Parabéns pela poética do texto!

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