domingo, 8 de agosto de 2010

Desejos secretos

A história de Sidonie C., a paciente homossexual de Freud

Acabei de ler essa biografia que retrata a vida da “jovem homossexual”, paciente de Freud, e gostaria de comentá-la com vocês. Não é uma resenha, pois vou mesmo comentar até o final do livro, e dizer porque a achei uma pessoa detestável. Então, já vou avisando que quem for ler o livro, pare de ler este texto agora, pois contarei até a página final. Bom, aos que querem continuar, vamos lá....

Escrito por Inês Rieder e Diana Voigt, duas escritoras vienenses, que chegaram a Margarethe Csonka - esse é o nome verdadeiro da paciente de Freud – pois eram amigas da filha de Sylvie Dietz, uma das melhores amigas de Gretl. O livro foi publicado em Viena em 2000, embora o prefácio das autoras seja assinado em 1999. Nesse momento a biografada estava viva, com 99 anos, e não gostaria que, enquanto vivesse, seu nome verdadeiro fosse revelado. Então Rieder e Voigt optaram em nomeá-la como Sidonie Csillag. Logo em seguida, Sidonie-Gretl falece, aos cem anos de idade. Então, no prefácio desse nova edição, as autoras contam seu nome verdadeiro, como tinha sido autorizado pela biografada que o fizessem apenas após sua morte.

O pai de Sidonie – vou chamá-la assim, como está nomeada em todo o livro – é um húngaro que, após o casamento, vai viver em Viena. Começa a fazer sua fortuna trabalhando como administrador nas refinarias de óleo mineral dos Rothschild e vai, posteriormente, fundar sua própria refinaria de petróleo na Galícia. Antal Csillag é um petroleiro e casado com Emma, uma mulher extremamente bonita, a mãe que Sidonie vai atribuir a culpa por todos seus sofrimentos. Até mesmo quando já tem 96 anos, a mãe já se foi há anos e ela não se questiona sobre suas escolhas: a culpa é da mãe. Isso fica impressionante no livro todo: sua desresponsabilização pela própria história, pelas próprias escolhas.

Embora, é claro, a mãe seja uma mulher vaidosa demais, fútil demais, competidora com todas as outras mulheres que passem na frente. A filha, sobretudo. Isso Freud já tinha mostrado em seu artigo, embora não tenha contado detalhes das histórias que Sidonie contou a ele. Por exemplo, ela contou a Freud que foi a uma estação de águas passar uns dias com a mãe, e sua mãe flertou com vários homens e a apresentou a eles como sua irmã mais nova. E há outras histórias do mesmo gênero que não relatarei aqui.

A biografia é repleta de fotografias, começa com uma de Sidonie ainda menina. Tenho que concordar com Freud que era muito bonita. E, logo em seguida, uma foto da Baronesa Leonie Puttkamer, a “dama de reputação duvidosa”. Ela vem de uma família nobre alemã, empobrecida, sustentada por um ou outro homem rico até se casar com um que se apaixona por ela. Ela, então, pode envolver-se nos relacionamentos que realmente a interessam: sua paixão pelas mulheres.

Aqui já vou fazer uma leitura minha que não aparece no livro: creio que essa nobreza da dama tem importância enorme para Sidonie: Antal, seu pai, é judeu, mas vai batizar todos os filhos na religião católica; é húngaro, o que pressupõe uma certa desvalorização diante dos vienenses, que se consideram a mais fina flor do império recém decaído. Fica evidente essa nostalgia de um poder que já se foi. Sidonie, posteriormente, se casará com um homem que vê pela primeira vez como cavaleiro na hípica e que descobre ser um oficial da ex-monarquia. Esse homem, que vai trabalhar para os nazistas, esconde seu desprezo por eles, pois continua a acreditar na monarquia passada, sonhada, idealizada. E a própria Sidonie é também assim a vida inteira: quando o irmão casa-se com uma camponesa francesa que salvou sua vida, escondendo-o por dois anos em um celeiro, durante a guerra, ela acha isso muito decaído; acha trabalhar também uma coisa nada aristocrática (e como não conserva seu patrimônio, gasta ele todo, tem de trabalhar. Seus irmãos não, trabalharam sempre. Nisso ela é exatamente igual a mãe e não percebe). Faz um elogio ao regime de Franco, pois visita a Espanha várias vezes e chega a morar lá. E por aí, vai...

Essa baronesa a quem Sidonie vai ter um amor contemplativo, ao estilo do amor cortês - exatamento como Lacan define no Seminário X, sem ter à época todos os detalhes do caso que agora podemos saber – além de tudo é de uma fina família alemã. Ela vai ser acusada pelo marido de tentar envenená-lo (o que as biógrafas querem saber de Sidonie se é verdade e ela não diz nada, fica em silêncio) e, já na cadeia, nessa história rumorosa que tomou conta da Viena dos Anos 20, o marido a denuncia por lesbianismo. Crime à época. Sidonie vai ajudá-la em tudo, arranjando advogado, escondendo as cartas que evidenciam o lesbianismo, etc. Mas o que gostaria de salientar: não há, nos mais de 8 anos em que Sidonie fica próxima de Leonie, um beijo sequer, um contato físico mais próximo. Também será assim com Fritzl, o homem ao qual ela se apaixonará e que lhe faz uma declaração de amor e morre na semana seguinte.

Antes desse episódio com Fritzl, Sidonie estava às véspera do casamento com Klaus, filho de um rico industrial vienense, a quem a família fazia muito gosto que ela se casasse, e ela no desespero, sabendo que não tinha desejo por homens, que lhe causava asco uma língua em sua boca, bem como aquela “coisa” que os homens têm entre as pernas, e ela tentou o suicídio dando-se um tiro no coração. Foi sua terceira tentativa de se matar: a segunda foi com uma ingestão de remédios e a primeira já está descrita por Freud. Mas não deu certo nem na terceira, pois a bala passa milimetricamente ao lado do coração, perfura o pulmão, ela quase morre, fica internada por tempos, sobrevive e morre aos cem anos.

O mais detestável que eu achei foi sua visão sobre o extermínio dos judeus. Isso foi uma coisa quase insuportável de ler: ela não se considera judia, pois nasceu e já foi batizada na religião católica então é uma injustiça ser considerada judia pelos nazistas. Não há uma indignação pelo genocídio, só há indignação muito pontual, quando, por exemplo, Wjera, a mulher que ela ama, tem o marido judeu enviado para Dachau. Essa mancha que foi o Holocausto não a atinge. E isso ela sendo judia. Isso que atinge a humanidade como um todo. É assim que Imre Kertész vê: só não são culpados por Auschwitz os que morreram lá, até mesmo ele, um sobrevivente, é culpado. Sidonie não é culpada de nada. E nem fica indignada. A única parte em que ela fica indignada com Deus é quando morre seu macaquinho Chico: “após a morte de Chico, cheia de amargura, deixara de acreditar em Deus”. E isso anos depois do Holocausto! Chega, não vou dizer mais nada sobre isso, porque já é evidente. Mas tem outras situações idênticas a essa.

Wjera Rothballer era uma mulher que Sidonie amou contemplativamente por anos, e com a qual teve, depois, um caso. Bela, tal como Leonie Puttkamer, era filha de uma aristocrática família de Nuremberg. Sidonie passa a ter relações sexuais com ela muitos anos depois do fim da Segunda Guerra; ela viúva, o marido morreu debilitado logo após ser libertado de Dachau, envolve-se com Sidonie. Ela se afasta de Sidonie meses depois, enviando uma carta dizendo a Sidonie que nunca mais se aproxime dela. Sidonie vai tentar em vários momentos retomar, mas nem a porta de seu próprio apartamento Wjera abre para Sidonie. E Sidonie conta que era porque brigavam muito, pois Wjera não gostava de seu cachorro. Será que ela quer que acreditemos nisso ou ela própria acreditou? Não sei, tenho dúvidas.

O livro vale a pena ser lido, pois as duas autoras são precisas ao contar a história de Sidonie, situá-la historicamente no contexto europeu, explicar quem são os personagens. Se a história tem brechas, como por exemplo, esta que relatei acima, é pela posição da biografada: a última coisa que quer saber é da verdade. A única falha que atribuo às autoras é que quando falam do envio de alguém – não lembro agora quem foi no contexto da história de Sidonie – para Auschwitz não conseguem dizer o nome, apenas colocam “campo de extermínio na Polônia”. Auschwitz soa pesado demais, um palavrão, palavra que queima escrevê-la e amenizam com o tal campo de extermínio. E também elas não se posicionam em momento nenhum em julgar Sidonie, ao contrário, são um tanto condescendentes com ela. Mas não vou analisar a posição das autoras, pois não tenho dados para tal.

Mas a cena das últimas páginas em que iria mostrar para vocês que ela continua no ressentimento e vingança ao pai – é assim que Lacan diz no Seminário X – transposto para o que ela fala de Freud, não vou contar, senão perde a graça. E assim vocês ficam com vontade de ler o livro. Mesmo que ela seja a última pessoa que alguém gostaria de ter como vizinha. Pelo menos foi essa a conclusão a que eu cheguei.

Andréa Brunetto, Campo Grande 05 de outubro de 2008.

2 comentários:

  1. Gostei dos textos do teu blog. Vou aparecer aqui mais vezes. Eu também tenho um blog, se quiseres aparecer serás bem vinda: www.vida-na-turquia.blogspot.com
    Um abraço

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  2. Terminei de ler a "biografia" ontem, e minha sensação é de que a personagem é uma figura típica da aristocracia Vienense e que passou "à margem da história", não se sentia judia e possivelmente era uma pessoa com dificuldades para estabelecer um vínculo íntimo e profundo. Porém uma figura avançada pra sua época,ao menos no tocante a (homo)sexualidade...

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