domingo, 20 de novembro de 2016

Na selva amazônica colombiana, um homem procura o amor



Arturo Cova é um homem que não se tornou o que poderia ter sido, descendia do infortúnio e o destino implacável lhe retirou a prosperidade, empurrou-o para os pampas. Começa sua estória nos contando que antes nunca foi apaixonado por mulher alguma, “jogou seu coração ao acaso e ganhou a violência”. Nada soube das “delícias embriagadoras, da confidência sentimental”, mas ambicionava “o dom divino de um amor ideal” que incendiaria sua alma e seu corpo como a chama na madeira. E eis que ele conhece Alícia.
“Quando os olhos de Alícia me trouxeram a desventura, havia já renunciado a esperança de sentir um afeto puro. Em vão meus braços – tediosos de liberdade – se estenderam para muitas mulheres, implorando por elas, sucessivamente. Ninguém adivinhava meu sonho. E seguia em silencio meu coração.”
Alícia chegou até ele fugindo de um casamento arranjado por sua família. E amava um primo com quem também não poderia ficar. E se entregou a Arturo facilmente: “se entregou sem vacilações, esperançada no amor que buscava em mim”.  Depois ele continuou querendo-a. Ela lhe respondeu: morrerei sozinha, minha desgraça se opõe a seu porvir. Mesmo assim, fugiu com ele para a floresta amazônica colombiana, para a vida dura dos colonos e indígenas escravizados pela febre da borracha.
Mesmo vivendo dia-a-dia com Alícia, olhava e seduzia as outras mulheres que iam aparecendo pelo caminho, seguindo sua vida de homem de coração endurecido, que compensa em fidalguia o que não pode dar em ternura, com a convicção íntima de que vive como enamorado sem o estar, e de que “essa idiossincrasia cavalheiresca o empurrará até o sacrifício” por uma dama que não é a dele, e por um amor que não conhece.
“A fama de galã ganhou no ânimo de muitas mulheres, graças ao costume de fingir, para que minha alma se sinta menos sozinha. Por toda parte fui buscando no que distrair minha inconformidade, e ia de boa fé, desejoso de renovar minha vida e me resgatar da perversão; porém em qualquer lugar onde pus minha esperança me encontrei lamentavelmente vazio, embelezado pela fantasia e repudiado pelo desencanto. E assim, enganando-me com minha própria verdade, consegui conhecer todas as paixões e sofro o fastio, e sigo desorientado, caricaturando o ideal para sugestionar-me com o pensamento de que estou próximo da redenção. A quimera que persigo é humana, e bem sei que dela partem os caminhos para o triunfo, para o bem-estar e para o amor. Mas se passaram os dias e se foi consumindo minha juventude sem que minha ilusão reconhecesse a derrota; e vivendo entre mulheres sensíveis, não encontrei a sensibilidade, nem entre as enamoradas, o amor, nem a fé entre as crentes. Meu coração é como uma rocha coberta de musgo, donde nunca falta uma lágrima. Hoje me viu chorar, não por fraqueza de ânimo, que bastante rancor o tenho na vida; chorei por minhas aspirações enganadas, por meus sonhos desvanecidos, pelo que não fui, pelo que jamais serei.”

E tudo isso só até a metade do livro. Continuo avidamente a segunda parte, que não pode descumprir a promessa dessa escrita formidável. La Vorágine é a única novela de José Eustasio Rivera e, também, uma obra clássica da literatura colombiana do começo do Século XX. Trouxe também, de minha viagem a Colômbia, em julho, seu livro de poesias Tierra de Promisíon y otros poemas. Em abril de 1928, voltando de Cuba, enviado para um congresso internacional sobre imigração, parou em Nova York, famoso como poeta, novelista, político e diplomata, sentiu-se mal, foi internado e morreu do que pareceu ser uma recidiva de malária.   

São Paulo, a acelerada cidade de tantos gostos e desgostos





Fui a São Paulo na terça-feira passada. Como era feriado aqui em nosso Estado, era uma manhã mais calma do que as outras, trânsito calmo, aeroporto tranquilo, e cheguei a São Paulo em uma terça-feira de dia útil – e os feriados seriam inúteis? – numa cidade gigantesca, acelerada e fervilhante. Fui com Fabiana e encontramos Márcia já no aeroporto, vinda de Aracaju, para assistirmos ao show de Andrea Bocelli. Não estávamos no ritmo acelerado, pois eram dois dias “inúteis”, para aproveitarmos as coisas “inúteis” da vida: o show de Andréa Bocelli, três museus e alguns restaurantes para mangiare bene. Escrevo assim, em italiano, para já entrar no clima do show. Fazer tudo isso em dois dias, só sendo paulistano: acelerando.
Eu e minhas amigas passamos dois dias andando de Uber em São Paulo. Fizemos muitas perguntas sobre o aplicativo. Vários dos motoristas começaram a trabalhar com o Uber depois de perderam seus empregos em fábricas, grandes magazines, shoppings, e estavam contentes de estar ganhando dinheiro com o novo trabalho. E, disseram, também os passageiros estavam contentes, pois as tarifas do Uber são bem mais acessíveis que o do taxi comum. Realmente, se nesses dois dias tivéssemos tomado taxis normais, simplesmente teríamos gasto uma fortuna. Disse-nos um deles que um dos candidatos não chegou ao segundo turno, que em determinado momento da eleição teve chances, porque sustentou que iria acabar com o Uber. Nem os motoristas, nem os passageiros queriam isso. E o outro candidato – isso foi conclusão minha e de minhas amigas – não permaneceu porque tentou desacelerar São Paulo. Todos os motoristas reclamaram de multas tomadas nas marginais por excesso de velocidade. Eu argumentei: mas não diminuíram os acidentes, sobretudo os com mortes? Nenhum dos motoristas com os quais conversamos aceitaram que a velocidade na Marginal precisava ser cinquenta quilômetros por hora, por exemplo. Eu repetia a pergunta: e as mortes? Não é bem assim, era sempre a resposta. Enfim, cada um conclua essa história que conto como achar melhor. Eu só posso entender uma coisa: São Paulo não aceita ser desacelerada.
Quanto aos motoristas de taxi e Uber que tomávamos, era entrar no carro e Márcia perguntava: você é de Recife, você é do Ceará? Você é de Alagoas? Márcia é nordestina – de nascimento é carioca – e sabe reconhecer todos os sotaques. Se um sujeito era do interior do Ceará e não de Fortaleza, por exemplo. Mas conto tudo isso só para mostrar que o Nordeste está em São Paulo. Então por que aquilo que se passou na última eleição, de os paulistanos acusarem os nordestinos de terem elegido uma presidente de esquerda? Nem sentido tem isso. A não ser o do preconceito. E para encerrar essa história de Uber e nordestinos, um último fato. Na quinta-feira, dia de ir embora, Carolina, uma jovem motorista do Uber, que estava em seu segundo dia de trabalho no aplicativo, veio nos buscar no hotel. Antes trabalhava como gerente de uma loja de eletrodomésticos, marca bem conhecida, e foi demitida depois de quase uma década. Perguntei se era paulistana. Sim, mas filha de nordestinos. Enfim, a impressão que tive é que a São Paulo que trabalha, que produz, que faz a cidade acontecer, é nordestina.
Fomos ao MASP, na Avenida Paulista. A coleção permanente do museu é um espetáculo: quadros importantíssimos. E muitos deles doados para o acervo do museu há décadas. Anotei algumas doações: Ovídio de Abreu doou um Van Dyck, pintor flamengo importantíssimo. Os quadros de Van Dyck valem milhões. Henryk Spitzman doou quadros de Cézanne e Gauguin para o museu. E também a Família Sotto Mayor doou vários quadros. E a Companhia Antártica. Todas essas doações são de pelo menos quarenta anos atrás. E doações recentes? Nenhuma. Os ricos de agora não doam para os museus? Parece que não. Nisso, talvez nossos milionários não querem parecer com os europeus e também, em menor grau, com os americanos. Na Avenida Paulista, onde os empresários de agora constroem patos gigantes, aliás plagiados de um artista norueguês, os do passado faziam doações para as artes.
Fiquei pensando isso depois do show de Andrea Bocelli e da posição dele, dos dividendos de sua riqueza. Antes dele entrar no palco, passou um filme no telão: mostrava o trabalho de um instituição que leva o seu nome, no Haiti. Uma instituição que ampara as crianças em suas necessidades de saúde, educação, moradia. Ficamos sabendo que ele faria um show em Aparecida, para todos, à frente da catedral. E alguns dias depois um show que ele estaria doando para a instituição Santa Marcelina. E ainda mais, ontem vi que ele foi escutar um coral em um presídio. Um homem engajado que paga bem o preço de sua fama e riqueza. Pessoal, inclusive. Com tudo isso, até o perdoei que ele tenha começado e terminado o show, diante de um estádio lotado, e não tenha dito nem Boa noite Brasil, Boa Noite São Paulo. Já o perdoei.
O que é imperdoável, no Brasil do momento, é que os milionários não paguem dividendos de suas grandes fortunas, como em quase todos os países da Europa se faz – e Bocelli deve pagar, e ainda investe um tanto dela no Haiti - que os políticos se aposentem com oito anos, que estes não diminuam suas regalias parlamentares, que os altos cargos da justiça ganhem tanto em proporção ao que ganha o povo, que os rentistas ganhem tanto com os juros altos. E, para terminar, diante da necessidade – que ninguém duvida – de que é preciso conter gastos, seja a saúde, a educação e a segurança pública que vão pagar o pato. Estamos caminhando para onde?
São Paulo, a capital da solidão, como Roberto Pompeu de Toledo a adjetiva em seu livro sobre essa cidade gigantesca, caminha aceleradamente para onde? Ela está uns passos mais acelerada que Campo Grande, mas diante do que o Brasil vive, estamos todos indo para o mesmo lugar. É uma pena, pois somos um país de tantas riquezas.
Andrea Bocelli já é um artista consagrado no mundo inteiro, com uma voz espetacular, um tenor com grande presença de palco. Isso tudo já era esperado. A surpresa: a jovem cantora Anitta, cantora de funk, entrou no palco e cantou Somewhere Over the rainbow. Lindamente vestida (vestido sóbrio e bonito) e maquiada, com uma voz linda cantou essa música ímpar. E sozinha. Recebeu um começo de vaias, mas o público foi escutando sua voz e abdicou de seu preconceito e a apladiu muito. Na segunda música, já cantou com o tenor, em português. E depois cantou Vivo per Lei, e sua voz acompanhou a do tenor. Uma diva.
Dois dias em São Paulo foi uma grande viagem, de grande aprendizado, de muitas artes. Por isso, a foto que mais gostei de todas que tirei foi esta à frente de um quadro de Portinari, com esse homem trabalhador, sabedor de sua força e de seu poder. Um homem altivo, que não abaixa a cabeça e segue adiante. Portinari tão bem retratou os trabalhadores da colheita do café, do milho, os retirantes. Esse povo explorado, o trabalhador. Eu, você, a maior parte desse país.





São Petersburgo III - Uma nervosa aventura para deixar o país



São Petersburgo, apesar de ser uma cidade linda, possui muita pobreza e só agora está se abrindo para muitas coisas do mundo ocidental. Sua moeda estava bem desvalorizada perto do real e tudo era barato para nós. Foi um alívio, depois de passar pela Noruega, em que um prato de macarrão era uma pequena fortuna - não só o macarrão, tudo, até mesmo a comida no supermercado custava uma pequena fortuna - chegamos a uma cidade em que nosso dinheiro dava até para comprar souvenirs para os amigos.
É difícil se comunicar com eles. A maioria das pessoas não fala nem algumas palavras em inglês. Tivemos que resolver quase tudo na mímica. Quase perdemos o trem por conta dessa dificuldade do idioma. Eu e minhas amigas chegamos a São Petersburgo a partir de um voo de Estocolmo e sairíamos uma semana depois, de trem. Descobrimos que havia um novo trem de alta velocidade, saindo de lá e chegando a Helsinque. Foi construído pelo governo finlandês, pois muitos finlandeses trabalhavam na Rússia e assim faziam o trajeto com rapidez e conforto. Compramos o bilhete na Estação Central de São Petersburgo sem que a vendedora soubesse uma palavra do inglês. Colocamos no papel o dia da viagem, o horário, de onde e para onde iria – seguindo todas as informações pesquisadas na internet, pois lá na estação não tinha um folder que informasse sobre esse trem, o Allegro- e compramos. Mas a vendedora não disse que esse trem, que era finlandês, parava em outra estação, se disse, foi no perfeito russo e não entendemos. Depois fomos perceber que a estação era velha e antiga e os dormentes também, daqui não sairia um trem-bala de jeito nenhum.
 Tivemos a sorte de chegar à estação mais de uma hora antes e mostrávamos o bilhete para todo mundo, procurando a plataforma de saída, pois nada apontava para o trem Allegro. Um funcionário da estação viu que estávamos erradas, ele era faxineiro, estava varrendo o chão. Um homem determinado, pois dois ou três policiais estavam ali, explicando a nós, quatro mulheres, em russo, que o trem não saia daquela estação.

Esse homem chegou ao burburinho, pegou uma de nossas malas e fez sinal para segui-lo. Descemos um metrô tão fundo, abaixo do rio Neva, pegamos outro, e uma segunda baldeação e tudo o seguindo. Ele pagou até os bilhetes de metrô para a gente, para ser mais rápido, e nos deixou no outro canto da cidade, em outra estação ferroviária - essa maravilhosa, internacional, com o trem finlandês. Se ele não tivesse feito isso, o trem estaria perdido. Indo de taxi não iria dar tempo, e para entender todo esse trajeto teríamos demorado bem mais. Depois, olhamos pelo mapa e entendemos que atravessamos a cidade inteira.
Em poucos lugares do mundo, e poucas pessoas que conheço fariam isso para quatro mulheres desconhecidas, que não sabiam falar a língua dele. Poucas pessoas teriam tanta disponibilidade para fazer isso para pessoas estranhas. Léa é uma pessoa muito comunicativa e espiritualizada, teve a primeira conversa com esse homem – ela em português e ele em russo - e acreditou na boa energia e no bom caráter dele.
E demos um dinheiro para ele, pela gentileza, por ter pagado os bilhetes de metrô, embora saibamos que não há dinheiro que pague o que ele nos fez. Quando chegamos à outra estação, já mais aliviadas, fomos cumprimentá-lo estendendo a mão. Acho que, até no calor da emoção, devemos tê-lo abraçado. Ele era um homem bem sério e inibido e ficou muito envergonhado com nossa efusão. Não sei se entendeu que éramos brasileiras, mas se entendeu, deve ter nos achado um pouco loucas.  
Só não perdemos o trem pela rapidez de decisão desse homem, pela sua gentileza, sua decisão de ajudar naquela situação. Nenhum dos funcionários da estação nem os policiais que viram nossa aflição fizeram nada. Isso mostra que um homem decidido faz toda a diferença. De vez em quando lembro-me dele, até mesmo suas feições ficaram gravadas em minha memória.  
E no trem chique, moderno e todo tecnológico, passamos pelo carimbo de passaporte pelos russos e, depois, na fronteira, a polícia finlandesa pediu os passaportes. Estávamos novamente entrando na União Européia. Contei essa história para alguém de minhas relações, logo depois do ocorrido, e ele me escreveu: quatro mulheres com energia boa e mesmo sem entender uma palavra, esse homem percebeu isso.

Estou terminando de ler o livro de Iván Bunin, “Dias Malditos” e ele escreve “na Rússia, Deus e o diabo se sucedem um ao outro, constantemente”. Passei uma semana lá, e a sucessão não foi tão constante, pois do segundo nem tive notícias, só do primeiro. E lembro-me das feições dele até hoje. 

São Petersburgo II - Hermitage, um imperial palácio de inverno se transforma em museu




O Hermitage é o maior museu da Rússia e um dos maiores do mundo. Seu acervo tem mais de três milhões de peças. No site de divulgação do museu há a informação de que ele tem a maior coleção de quadros do mundo. Encontrei uma página na internet em que é feito um cálculo: se você parar alguns minutos diante de todas as obras, demorará quatro meses para visitá-lo inteiro. À beira do Rio Neva, em São Petersburgo, engloba dez edifícios completos. O principal é o Palácio de Inverno:  moradia dos Czares da Rússia. Tudo nele é grandioso: a quantidade de obras, de edifícios, de filas para entrar. E exagerado: ouro pelo teto, nas paredes, nas fechaduras, nas pias, nas janelas. Como já foi a moradia dos czares, tudo nesse palácio-casa-museu reflete a grandiosidade desse país.

Mesmo com filas grandiosas que contornavam todos os edifícios e continuavam pelo pátio em frente ao museu, eu e minhas amigas entramos pela lateral, pois já tínhamos comprado os ingressos pela internet. Então o segundo conselho é esse: ir a esse museu somente com os ingressos já comprados. O primeiro conselho: não é possível para alguém que gosta de arte não conhecer o Hermitage. É uma necessidade. E uma orgia visual, sai-se do museu até tonto. E mais outro conselho: se você não for sozinho, combine uma estratégia para reencontro em algum lugar fora dele para o caso de se perder de suas companhias. Eu e minhas amigas nos perdemos. Primeiro me perdi de Márcia e Léa, e horas depois, de Alba. Já de noite, depois do dia inteiro andando por esse museu – noite só pelo horário do relógio, pois lá, no verão, não escurece - saí e andando sozinha pela rua, escutei meu nome sendo gritado de um barco quase no meio do canal. Márcia e Léa saíram do museu minutos antes e pegaram um barco para andar pelos canais da cidade e passar de barco em frente ao museu. Com minha perfeita mímica, fiz sinal ao piloto, que já estava partindo, de que eu também queria ir. Ele, falando tudo em russo, entendeu tudo, e pude subir ao barco. Assim terminou meu passeio pelo Hermitage.
Enquanto andava pelos corredores, salas e escadas suntuosas, com exagero de ouro por tudo, lembrava-me das aulas de história e dos romances russos que já tinha lido. A miséria do povo, a fome, uma aristocracia que voltou suas costas a essa miséria, as condições climáticas adversas que aumentavam os problemas, tudo isso fez uma revolução, uma tomada de poder pelo povo que foi sanguinária. A última dinastia russa, os Romanov, foi assassinada: Nicolau, Alexandra, os filhos, os criados e o médico da família foram assassinados no ano seguinte à revolução.
 Nicolau II, o último czar da Rússia, vivendo suntuosamente nesse palácio, não enxergou a insatisfação do povo, fazia jantares exagerados, gastava demais, não coibiu o antissemitismo que proliferava no país e exigia do povo pagar altos impostos. Seu reinado luxuoso e insensível, cheio de decisões erradas, terminou com a revolução bolchevique. Com Lênin e Stalin, também sabemos como terminou décadas depois, esse governo que se disse do povo: em um totalitarismo que virou as costas a ele. A história sempre se repete? E o povo sempre fica no mesmo lugar?
Não é apenas pelo Hermitage que escrevo isso para vocês, nem pela votação de uma contenção de gastos que só atinge o povo - essa não na Rússia, mas no Brasil dos dias atuais – mas por um livro que estou lendo e do qual só consigo desgrudar de suas páginas para trabalhar. E depois volto para elas: Dias Malditos, de Iván Bunin. Foi o primeiro autor russo a ganhar um Prêmio Nobel da Literatura (em 1933). Esse livro tem como subtítulo “Um diário da revolução”, é um relato desesperado do dia-a-dia após a revolução de 1917. O desespero das pessoas nas ruas, os rostos atormentados, a fome. Os bombardeios à noite. O frio. Como ele se refugiava de todo esse horror? Tendo bons sonhos, construindo em seus sonhos um mundo que não existia durante o dia. Um exemplo: no dia 3 de abril escreve que o tempo está melhorando, não está mais tão frio e ele teve um sonho lindo, estava em um mar branco como o leite e tendo um céu azul estrelado. E dias depois outro sonho: vagões de trem, mares e países bonitos, vento fresco batendo no rosto. E mais um para finalizar, um sonho que veio depois de um dia em que publicaram grande lista de fuzilados: ao invés de paisagens, sonha com um poema em que um corcel corre livre pelos campos, livre.
Em uma coisa se assemelhavam seus sonhos e seus dias malditos: ânsia de liberdade. Queremos sempre o mesmo?


São Petersburgo I - A monárquica e chique cidade imperial russa



Quando o policial, na imigração, pediu-me de onde eu vinha, por estar distraída ou pelas minhas limitações do inglês, respondi “venho do Brasil”. Ele disse não. Pedi desculpas, disse que falava mal o inglês, não tinha entendido que queria saber de onde era meu voo. Respondi Estocolmo. Não sei se por isso ou por outro motivo, passei rapidamente pela polícia. São filas demoradas para entrar na Rússia, muitas perguntas. A mim, depois de pedir desculpas e dizer que não falo bem inglês, foi rápido. Fui dispensada bem antes do que minhas amigas.
E chegamos a São Petersburgo, cidade linda, de muitas cúpulas douradas, à beira do Rio Neva. Próxima do Golfo da Finlândia, no Mar Báltico. Já tinha lido tanto sobre ela, em tantos romances, tantos escritores. Ivan Turgueniev ambienta nela a maior parte de seus dramas políticos e amorosos. Nela, a aristocracia, que vivia de um jeito nababesco, com uma família real exageradamente rica e gastadora, ficou com os olhos fechados aos anseios do povo e foi o clima propício para a revolução bolchevista, que depois de um tempo, também virou às costas ao povo. Meu pai, que é um grande leitor da história russa, dos romances russos, tinha me dito, antes da viagem: você vai conhecer um povo que foi oprimido desde sempre, um povo muito sofrido.
 Encontrar nosso hotel foi difícil. Era em um andar de um prédio imponente, antigo, sem restauração. Entrando no prédio, as escadas eram depredadas, estragadas, um elevador velho que tive medo de subir. Chegando ao primeiro andar, em uma das portas, era nosso hotel. Dentro era totalmente reformado, moderno, bem decorado. Não acreditava que assim o seria. E assim foi quase tudo em São Petersburgo: uma mistura de novo e velho, de coisas depredadas, precisando de restauração, com preciosidades. Mesmo em sua rua principal, a Nevsky Prospekt, tudo é assim: algumas construções lindas e outras sem cor, sem cuidado, gastas pelo tempo. A Igreja do Sangue Derramado, situada à margem do canal Griboedov, foi construída onde o Czar Alexandre II foi assassinado e se tornou um armazém durante o período comunista. Ainda guarda marcas desse período de descaso.
Estive na cidade por uma semana durante o verão, e pude observar suas noites brancas, como Dostoievski descreve em sua novela. Escurecia – e mesmo assim, não completamente – às três horas da madrugada e às cinco horas já estava completamente claro. O jeito era passear pela cidade, andar de barco.
Não conseguíamos nem conversar com as pessoas. Mesmo em nosso hotel, só uma atendente falava inglês. Tivemos que resolver quase tudo na mímica. E além de tudo, eles têm outro alfabeto. Senti-me uma analfabeta absoluta. Só reconhecia as imagens. Saia entrando nas lojas, olhando dentro, para ver se encontrava um mercado. Nos passeios de barco, museus, enfim, em todos os passeios turísticos, só se falava em russo. A maioria dos turistas era do próprio país. Assim o percebi. Foram dias e dias tentando me comunicar na mímica. Para algumas coisas é bem difícil fazer mímica, porém as pessoas eram tão simpáticas, tão acolhedoras, sempre querendo ajudar, adivinhar o que você queria, que eu e minhas amigas, não tivemos problemas sérios. Um dia cheguei ao hotel comendo um chocolate, nos dias seguintes, ganhava das atendentes um chocolate. Não há marcas conhecidas nos supermercados, tudo é produção local.

Foram dias quentes, de muito sol e noites claras, de comida boa e pessoas simpáticas e acolhedoras. Gente simples, pobres, trabalhadores. Eu não precisava saber língua nenhuma para entender isso. Mas foi lá, nessa semana, que decidi que voltaria ao país falando o russo. Quero fazer, em viagem futura, o trajeto da ferrovia transiberiana – pelo menos um trecho, pois ela tem mais de nove mil quilômetros - conhecer o Lago Baikal, ler alguns romances russos no original e, sobretudo, conversar com as pessoas. Há mais de um ano sigo nesse empreendimento tão difícil: estudando russo. Já conheço o alfabeto, declino verbos, falo e compreendo frases curtas. Em poucas viagens em minha vida, aprendi tanto e saí tão determinada a aprender uma língua tão difícil. Um país gigantesco, com uma história tão complexa, de tantas batalhas, guerras, sofrimento do povo. Qual país do mundo tem tantos escritores geniais como a Rússia? Que cidade foi tão retratada em romances como São Petersburgo? Enquanto andava pela Nevsky Prospekt, estava no ambiente de Anna Karenina, o maior romance já escrito. E como a cidade, em parte, parou no tempo, eu estava naquele tempo. E não no meu. Voltarei a essa cidade imperial em alguns anos e falando a língua deles. Quem me acompanha?

Conhecer o norte da França é uma aula de história e um exagero de beleza




François-René de Chateaubriand nasceu em Saint-Malo, na Bretanha. Hoje, norte da França. É um escritor que descobri meio por acaso – como, aliás, muitos deles – pois é atualmente pouco lido, um escritor que só os mais “velhos” conhecem. É do século XVIII e da virada do XIX; foi diplomata francês à época de Napoleão, foi embaixador em Londres, viajou até os EUA em uma época dos desbravadores. Foi ao Oriente, à África. Escreveu sobre suas viagens nesse mundo tão inóspito. Era um viajante, um homem visionário que relatou as aventuras de sua vida – políticas, amorosas e, também, como viandante – em um diário intitulado Memórias do Além-Túmulo.   
Depois que comecei a ler sua obra, quis conhecer sua cidade Saint Malo e sua região amada, a Bretanha. Suas descrições sobre a Bretanha e sobre sua cidade eram deslumbrantes. Descreveu Saint-Malo como a cidade onde a lua encontrava a terra se deitando no mar. Saint-Malo, na costa norte da França, é uma dentre várias cidades do que é denominado A Costa Esmeralda, balneário de luxo dos franceses. Como tornar essa viagem viável?
E eu tinha outro desejo que era conhecer o Monte Saint-Michel, na Normandia, vizinho à Bretanha. Quanto ao Monte Saint-Michel, também tinha uma ideia que era ir a Avranches, de onde se pode ver o monte. No Jardim das plantas, na praça da pequena cidade de nove mil habitantes, se tem uma excelente vista do monte. Assim o escritor Maupassant relata em um de seus contos: o personagem fica sentado confortavelmente nesse parque e vendo o pôr-do-sol cair sobre o Monte Saint-Michel. De Avranches dá para ir a pé até o monte.
Eu fiquei meses com esses dois lugares na mente, tentando encontrar um jeito de ir de trem, a partir de Paris – de onde deveria sair, pois estava em um congresso – e nada dava certo, pois para Avranches as linhas de trens eram complicadas e não havia trens rápidos.
Abandonei a ideia de ir a Avranches e fomos para Rennes, a capital da Bretanha. Eu, Priscila, Duda, Fernanda, Alba e Heloisa, pegamos um TGV, o trem francês de alta velocidade, até Rennes. Ficamos hospedadas lá, nessa cidade linda e antiga e perto de Saint-Malo e também do monte. Em um dia fomos de ônibus ao monte e, no outro, de trem passar o dia em Saint-Malo. E em outros tantos dias andamos por Rennes.

O Monte Saint-Michel é um dos lugares mais turísticos do mundo, uma ilhota rochosa na foz do Rio Couesnon. Conta a história que no século VIII, após três aparições do Anjo São Miguel, o bispo de Avranches quis construir uma abadia no alto da rocha, nessa ilha minúscula tomada pela maré. De manhã, com maré baixa, pode-se ir a pé, de tarde, o rio começa a subir e só se volta de embarcação. O cenário é um espetáculo, muitos e muitos degraus para subir nessa rocha\ilha até chegar à abadia e sempre acompanhando, até aonde a vista alcança, o rio subindo às voltas do monte. Todas minhas revistas de viagem diziam que os restaurantes no monte tinham preços exorbitantes, e ainda mais, comprei um jornal da cidade, em Rennes e havia uma matéria em que os bretões reclamavam dos preços exorbitantes de tudo no Monte Saint-Michel. Eu e minha amigas, depois de concluir que os preços, mesmo em euros, eram exorbitantes, resolvemos fazer um almoço-piquenique no monte. E assim fomos, pegamos um ônibus bem cedo, andamos cerca de cento e cinquenta quilômetros, chegamos ao monte com nossa sacola de comida – antes que vocês pensem que estávamos umas “farofeiras” é preciso que diga que quase todo mundo teve a mesma ideia que a gente – e passamos o dia tirando fotos e olhando tudo com grande emoção. Eu ficava dizendo “nem acredito que estou aqui” e Duda, filha da Priscila, com nove anos, respondia “e eu nem acredito que estou na França”. Fernanda, praticamente uma fotógrafa profissional, embora seja psicanalista, levou seus equipamentos profissionais, junto com um tripé o qual era demorado montar. Era preciso ser paciente, todas éramos. Valeu a pena, temos as mais belas fotos do monte.

Em Saint-Malo contratamos um passeio de barco e passamos horas nesse mar verde de ondas fortes, em que, do mar, avistamos cidadezinhas cada uma mais linda que a outra, nessa Costa que é Esmeralda. Quando voltamos do passeio, andamos pela cidade, compramos souvenirs e o horário do trem se aproximava. Saint-Malo, em séculos passados, foi uma cidade esconderijo dos corsários, os piratas dos mares, toda muralhada, medieval e com muitos mirantes e faróis a perscrutar o mar. E não tive tempo para ir ao túmulo de Chateaubriand. Assim como, já em Paris, depois de ter deixado a Bretanha, sonhei que estava sentada em um banco de praça e, à distância, via o Monte Saint-Michel e muitas ovelhas pastando no campo antes de chegar ao rio. É uma paisagem que vi em muitas fotos. Fiz uma viagem, vi o monte, estive lá, mas persegue-me o que me falta: a vista a partir do Jardin des Plantes, de Avranches.

Começo minhas viagens com os livros, depois as coloco em prática e saio delas e elas não saem de mim. Dias atrás, lendo um trecho dos diários de Chateaubriand – são vários volumes, ainda estou lendo aos poucos, ano após ano – deparei-me com essa frase: “As ciências explicam tudo para a inteligência e nada para o coração”. Linda, não? Escrita pelo maior escritor francês do romantismo, em 1811, ano em que entrou para a Academia Francesa de Letras. A ciência, de lá para cá, evoluiu muitíssimo, mas o amor continua sendo o amor. E o ser humano continua sendo o ser humano. Com seus enigmas, seus segredos, seu insondável coração.