domingo, 20 de novembro de 2016

São Petersburgo III - Uma nervosa aventura para deixar o país



São Petersburgo, apesar de ser uma cidade linda, possui muita pobreza e só agora está se abrindo para muitas coisas do mundo ocidental. Sua moeda estava bem desvalorizada perto do real e tudo era barato para nós. Foi um alívio, depois de passar pela Noruega, em que um prato de macarrão era uma pequena fortuna - não só o macarrão, tudo, até mesmo a comida no supermercado custava uma pequena fortuna - chegamos a uma cidade em que nosso dinheiro dava até para comprar souvenirs para os amigos.
É difícil se comunicar com eles. A maioria das pessoas não fala nem algumas palavras em inglês. Tivemos que resolver quase tudo na mímica. Quase perdemos o trem por conta dessa dificuldade do idioma. Eu e minhas amigas chegamos a São Petersburgo a partir de um voo de Estocolmo e sairíamos uma semana depois, de trem. Descobrimos que havia um novo trem de alta velocidade, saindo de lá e chegando a Helsinque. Foi construído pelo governo finlandês, pois muitos finlandeses trabalhavam na Rússia e assim faziam o trajeto com rapidez e conforto. Compramos o bilhete na Estação Central de São Petersburgo sem que a vendedora soubesse uma palavra do inglês. Colocamos no papel o dia da viagem, o horário, de onde e para onde iria – seguindo todas as informações pesquisadas na internet, pois lá na estação não tinha um folder que informasse sobre esse trem, o Allegro- e compramos. Mas a vendedora não disse que esse trem, que era finlandês, parava em outra estação, se disse, foi no perfeito russo e não entendemos. Depois fomos perceber que a estação era velha e antiga e os dormentes também, daqui não sairia um trem-bala de jeito nenhum.
 Tivemos a sorte de chegar à estação mais de uma hora antes e mostrávamos o bilhete para todo mundo, procurando a plataforma de saída, pois nada apontava para o trem Allegro. Um funcionário da estação viu que estávamos erradas, ele era faxineiro, estava varrendo o chão. Um homem determinado, pois dois ou três policiais estavam ali, explicando a nós, quatro mulheres, em russo, que o trem não saia daquela estação.

Esse homem chegou ao burburinho, pegou uma de nossas malas e fez sinal para segui-lo. Descemos um metrô tão fundo, abaixo do rio Neva, pegamos outro, e uma segunda baldeação e tudo o seguindo. Ele pagou até os bilhetes de metrô para a gente, para ser mais rápido, e nos deixou no outro canto da cidade, em outra estação ferroviária - essa maravilhosa, internacional, com o trem finlandês. Se ele não tivesse feito isso, o trem estaria perdido. Indo de taxi não iria dar tempo, e para entender todo esse trajeto teríamos demorado bem mais. Depois, olhamos pelo mapa e entendemos que atravessamos a cidade inteira.
Em poucos lugares do mundo, e poucas pessoas que conheço fariam isso para quatro mulheres desconhecidas, que não sabiam falar a língua dele. Poucas pessoas teriam tanta disponibilidade para fazer isso para pessoas estranhas. Léa é uma pessoa muito comunicativa e espiritualizada, teve a primeira conversa com esse homem – ela em português e ele em russo - e acreditou na boa energia e no bom caráter dele.
E demos um dinheiro para ele, pela gentileza, por ter pagado os bilhetes de metrô, embora saibamos que não há dinheiro que pague o que ele nos fez. Quando chegamos à outra estação, já mais aliviadas, fomos cumprimentá-lo estendendo a mão. Acho que, até no calor da emoção, devemos tê-lo abraçado. Ele era um homem bem sério e inibido e ficou muito envergonhado com nossa efusão. Não sei se entendeu que éramos brasileiras, mas se entendeu, deve ter nos achado um pouco loucas.  
Só não perdemos o trem pela rapidez de decisão desse homem, pela sua gentileza, sua decisão de ajudar naquela situação. Nenhum dos funcionários da estação nem os policiais que viram nossa aflição fizeram nada. Isso mostra que um homem decidido faz toda a diferença. De vez em quando lembro-me dele, até mesmo suas feições ficaram gravadas em minha memória.  
E no trem chique, moderno e todo tecnológico, passamos pelo carimbo de passaporte pelos russos e, depois, na fronteira, a polícia finlandesa pediu os passaportes. Estávamos novamente entrando na União Européia. Contei essa história para alguém de minhas relações, logo depois do ocorrido, e ele me escreveu: quatro mulheres com energia boa e mesmo sem entender uma palavra, esse homem percebeu isso.

Estou terminando de ler o livro de Iván Bunin, “Dias Malditos” e ele escreve “na Rússia, Deus e o diabo se sucedem um ao outro, constantemente”. Passei uma semana lá, e a sucessão não foi tão constante, pois do segundo nem tive notícias, só do primeiro. E lembro-me das feições dele até hoje. 

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