quarta-feira, 31 de agosto de 2016

A riqueza de um país que já foi um império. Um museu a céu aberto


Na semana passada, a Itália foi notícia pelos terremotos que atingiram o centro do país, várias cidades atingidas. Amatrice é a mais conhecida, mais turística. As cidades atingidas ficam cerca de 100 km de Roma. Fiquei me lembrando desse país em que estive por três vezes, por isso a crônica da semana, a primeira de várias, tem como tema o país.
Estive na Itália pela primeira vez em julho de 2010. Juntamente com Alba, minha amiga de andanças pelo mundo, cortamos de trem o país de norte a sul, de Milão a Capri. De Nápoles a Capri, de navio, claro. Em partes do trajeto tivemos a companhia de Andréa Helena, Rainer e Inês. Depois, em 2012, nos primeiros dias de uma primavera ainda com cara de inverno, fria e chuvosa, eu e Fabiana Silvestre andamos pelo norte do país e chegamos a Roma para passar a páscoa. No ano passado, novamente com Fabiana, e também Silvana e Patrícia, fomos a Milão, Trieste, Pádua, Veneza, Livorno, depois pegamos o navio para a Córsega e entramos novamente em solo italiano na ilha da Sardenha. De lá, da cidade de Olbia, pegamos o avião para Roma, onde passamos alguns dias. Enfim, como se pode ver, o país tem muitos lugares lindos para serem conhecidos. E eu, pensando agora, tenho muitas amigas que se dispõem a conhecer o mundo, e especialmente a Itália, comigo. Fabiana Silvestre é uma delas. Toda vez que vai a Europa, quer ir à Itália, digo que tem outros países lindos a serem conhecidos, mas ela quer novamente a Itália.
Antes de viajar para lá pela primeira vez, estudei muito sobre o país e li romances que se ambientavam no solo italiano. Conto aqui um pouco como foi minha primeira andança em terras italianas. Li o que dois autores escreveram sobre a Itália: Rainer Maria Rilke e Stendhal. Nenhum deles italiano, mas estrangeiros que se apaixonaram pelo país. Como eu. Que me desculpem a comparação presunçosa.
A paixão do escritor Stendhal pela Itália é bem conhecida. Por todo o país, pela sua história, pelo temperamento dos italianos. Em contraposição a sua França, à época de Napoleão. Ele escrevia que enquanto a Itália produzia os Rafael, os Ticiano, Correggio, Petrarca, a França produzia "esses bravos capitães do Século XVI, hoje tão desconhecidos, que mataram tantos inimigos".
Ele dizia que em contraponto ao motivo monetário das guerras da França, da Inglaterra e da América, os italianos disparavam tiros por motivos passionais. Na verdade, ele ressalta muito esse caráter passional dos italianos.
Isso já é notório, o temperamento dos italianos. E no país todo. Talvez mais ainda no sul. Os italianos são acolhedores, mas exagerados, brigam alto nas ruas, gesticulam. São curiosos. Um exemplo, mas poderia dar vários: estava no supermercado, escolhendo alguns cachos de uva e um senhor chega falando alto comigo, praticamente gritando. Eu demoro para entender que ele estava dizendo, na “briga” comigo, que eu estava comprando uvas verdes, não era época para aquelas uvas que eu pegava estarem maduras. E toda essa fala, gritos, gesticulando, era para falar comigo, pedir de que país eu vinha.
Sou de família paterna italiana, cresci escutando a família falar italiano; estudei italiano durante a faculdade e alguns anos depois de formada. Retomei meus livros e cadernos de italiano por seis meses antes da viagem e cheguei lá e depois de dois dias imersa no idioma, já estava falando razoável. Não imaginava que saberia falar, que teria essa fluência. Agradável fluência
Roma é um museu a céu aberto. Em cada esquina, uma ruína, uma história. A Fontana de Trevi não tinha aquele encanto como nos filmes, e o calor era insuportável nesse julho de 2010. O sol parecia mais ardente do que o nosso. Há hordas de turistas por tudo, não se consegue tirar uma foto que não apareça pelo menos umas cinquenta pessoas. Mas peguei um taxi e o taxista me mostrou uma fachada de uma casa qualquer que tinha sido projetada por Brunesleschi. Aonde um taxista poderia me dar uma aula de arquitetura? Se não em Roma, é improvável.
Eu e Andréa Rodrigues levantamos uma manhã em Florença antes das seis horas da manhã para encontrar a cidade vazia, tirar umas fotos do rio Arno sem uma multidão e para ficar à frente na fila de quarteirões para entrar na Galeria Uffizzi.
Tinha me prometido nessa segunda vez na Itália: nas grandes cidades turísticas, em julho, não dá para ir. Chega. Mas saí de lá e só lembrei-me da beleza do país e, esquecendo o que prometi a mim mesma, apareci em Roma em julho do ano passado. Calor insuportável, o asfalto das calçadas até derretia sob meus pés, multidões se trompando nas ruas, o ar condicionado não funcionava direito em lugar nenhum. E mesmo assim, lembro mais do museu etrusco que fui pela primeira vez, da beleza da vista a partir da Vila Borghese, que ainda não tinha conhecido, da ópera La Traviata, que assistimos na igreja São Paulo Entre Muros. Roma é assim: não importa quantas vezes você vá, sempre tem coisas que não viu ainda.
E você sai irritada de lá, com tanta desorganização, calor, gente, bagunça, promete que não volta – pelo menos não em julho – por um bom tempo, mas depois esquece tudo. E passam-se uns meses e já está lá você, suspirando por ela, sentindo saudades do sorvete que tomou em frente à Fontana de Trevi, só se lembra do gosto maravilhoso do sorvete, esquece que teve que enfrentar fila, empurrar uns quantos que queriam passar na sua frente, esquece que teve que esperar horas para tirar uma foto só com umas dez pessoas aparecendo junto com você. E em Florença, esquece que teve que madrugar para ficar em uma fila.
Como as grandes paixões, da Itália lembramos com nostalgia das coisas inesquecíveis, as outras são comezinhas, não nos impedem de voltar. Para os passionais recomendo irem à Itália, para os que não são, recomendo ir à Itália, pois para viver a vida, e não apenas sobreviver, é preciso se apaixonar. Vão para Roma, percam-se nas ruas estreitas e medievais próximas da Praça de Espanha, da Via Condotti, do Panteão, comam suas massas, conversem com os italianos, tentem entender seu jeito exagerado. Sinto-me, sempre, um pouco em casa.  


Há viagens das quais nunca regressamos. A Bélgica que ainda vive em mim


Sempre a Bélgica ficará para mim como um lugar de muitos dias nublados e frescos, de caminhadas pelo campo, de fotos tiradas pelos caminhos, de canais e crepes, de uma língua tão difícil que nunca consegui aprender. Estive lá em diferentes momentos, nas várias estações do ano e escolhi a primavera como a mais bonita.
Estive lá antes de Theo e depois dele. Com ele foi melhor, conheci o país e andei por muitas cidades. Em algumas, literalmente. Ele registrou-me em um clube de marcha atlética, participei de várias. Andei mais de cinquenta quilômetros em três marchas, em três cidades diferentes.  
Para mim as quatro cidades que mais gostei de conhecer: Gand, Damme, Tongeren e Dinant. No Século X, uma violenta tempestade varreu a costa do Mar do Norte e abriu um canal perto da cidade de Bruges, ao final desse canal se formou uma vila de pescadores. Assim surgiu a cidade de Damme. Pequena, linda, rodeada de moinhos e canais; do alto da torre da igreja, avistei a cidade de Bruges e o Mar do Norte. A beleza de Tongeren não enche tanto os olhos, mas reconheci seu grande valor histórico. Foi entreposto dos romanos, via de comunicação entre os vários reinos conquistados. Mas ali os romanos encontraram um povo nativo bravio, que ofereceu resistência. Ambiorix colocou Júlio Cesar para correr. Uma vez, pelo menos.
Dinant é para encher nossos olhos de beleza, construída à beira do rio Meuse, com uma catedral colada a uma grande rocha, cheia de flores e casinhas lindas. Mas foi palco de uma batalha horrível na I Guerra Mundial. Ela foi capturada pelos alemães, e contra-atacada pelos franceses. Eles combateram na cidade. Os alemães incendiaram vinte civis. Escrevo só para que vocês não pensem que é novidade do Estado Islâmico essa barbárie que é incendiar pessoas. E depois, os alemães mataram 674 civis desarmados, novamente cidadãos de Dinant.
E, finalmente, Gand. Cidade bonita, repleta de canais, com arquitetura gótica abundante, uma catedral imponente, várias construções imponentes, evidenciando uma cidade que já foi das mais importantes da Europa, dos Séculos XI ao XVI. Nela nasceu e foi batizado Carlos V, o Imperador do Império Românico-Germânico. É a cidade de Theo.  
Andei muito pelo país, entre as torres de Bruges e Gand, sob o céu flamengo, com o vento forte do Mar do Norte no rosto. O país plano, o céu flamengo, o vento do Mar do Norte, o território mapeado entre as torres de Bruges e Gand, são as marcas que Jacques Brel coloca de seu país em suas músicas. Jacques Brel é um cantor de língua francesa muito conhecido, inclusive no Brasil, sobretudo por sua música Ne me quitte pas. Eu não sabia, antes dessas viagens, que ele era de família paterna flamenga e que compôs essa música em flamengo, depois traduziu para o francês. Temos uma versão em português dela, cantada por Raimundo Fagner. 
A Bélgica é uma junção territorial de dois povos, duas línguas. Os valões falam o francês e os flamengos, da região de Flandres, falam o flamengo, que é um holandês com galicismos. Perguntei a Theo se a diferença entre o holandês falado na Holanda e o falado em Flandres era muito grande. Resposta: pelo que estou estudando do português, a diferença é menor do que o português de Portugal e do Brasil.

Em Bruxelas, eu adorava andar pelas ruas próximas da estação de trens. No geral, ruas próximas a estações ou rodoviárias não são muito cheirosas, mas em Bruxelas cheiravam a chocolate. E não qualquer chocolate, o verdadeiro chocolate belga, o melhor. Depois da estação, subia as escadas e virava à direita, seguia pela Rua Kantersteen e encontrava uma das melhores lojas de chocolates, que fazia um chocolate artesanal desde 1919, o cheiro maravilhoso inundava o quarteirão todo. Nenhuma cidade do mundo por onde andei tem esse cheiro. Bruxelas é doce, cheira a chocolate por tudo.
Estávamos, eu e Theo, jantando em um dos restaurantes da Rua de Bouchers e ele começou a me contar histórias dessa rua de restaurantes, de como ela era há trinta anos. Sentia uma nostalgia da Bruxelas de outrora, com menos trânsito, onde todas as pessoas se conheciam, se cumprimentavam. Contava-me histórias da Bélgica da época em que seus pais eram vivos. Contou-me histórias da II Guerra Mundial que lhe foram contadas por seu pai, quando ele era pequeno. Eu lhe disse que isso tinha de ser escrito, tinha que se transformar em um livro. No ano anterior, eu havia publicado meu primeiro livro e estava esboçando umas ideias para o segundo, estava pesquisando sobre a II Guerra Mundial para um capítulo desse segundo livro. Por isso meu segundo livro foi dedicado a Theo. Por isso e pelo amor de outrora. Quando tivemos essa conversa durante o jantar, ele pediu-me que o ajudasse a escrever esse livro nostálgico de seu país de antes. Disse sim e passei a anotar tudo que me contava. Tenho isso ainda comigo: apontamentos para um livro futuro que não existiu, memórias, cenas da vida desse homem e de seu pai, empobrecido e humilhado durante a guerra, recortes de vidas que não foram minhas e nunca serão. O que fazer com esses retalhos de um livro inexistente sobre a Bélgica?
Continuo me interessando muito por esse país, sua capital, a Grand Place tão milenar, suas ruas e seus invernos gelados, com flocos de neve que correm na horizontal a te perseguir pelas ruas. Sinto saudades dessa língua tão difícil, que não consegui aprender mais do que algumas palavras, de sua culinária maravilhosa, de seus chocolates insuperáveis. Mas, sobretudo, sinto falta das pessoas, de sua curiosidade contida, de sua reserva um pouco medrosa, de seus sorrisos envergonhados. Miguel Souza Tavares, no romance “No teu deserto”, escreve que há viagens das quais nunca regressamos.  Tudo está em mim, ainda. Intensamente. Não se esquece um lugar onde se foi feliz.



terça-feira, 30 de agosto de 2016

Monschau, a cidade de contos de fadas que aspira a ser de outra época


Era uma vez um sábado ensolarado de um mês de maio de uma primavera na Bélgica. Começo assim, como se começam os contos de fadas, pois Monschau é uma cidadezinha alemã de contos de fadas, congelada em um tempo medieval, com suas casas de madeirame, dividida por um riacho e com calçamento de séculos passados. Tudo nela aspira a ser de outra época, tudo nela parece ter saído de um livro de estórias infantis.
Monschau fica na Alemanha, do outro lado da fronteira com a Bélgica, na província da Renânia do Norte-Vestfália. Está localizada na Serra Eifel, uma cadeia de morros que aspira a ser montanha, mas não chega nem a setecentos metros de altura.  Deixando a cidade de Eupen, na Bélgica, passa-se pelo Parque Natural Hautes Fagnes, deixamos para trás as Ardenas Flamengas e chegamos ao Eifel. É uma região de florestas e colinas, e casas no campo à beira da estrada regional, e muitas flores. Dizia a quem guiava o carro: pare aqui, por favor, vou tirar uma foto. Não só uma, mas várias vezes pedi o mesmo. Mais alguns quilômetros nessa estrada reta e quase plana, repleta de árvores tão floradas que se intrometiam nos dois lados da pista, e de flores silvestres que adocicavam o ar, e cruzamos a fronteira: uns vinte quilômetros de minutos depois, chegamos a Monschau.
Quando se está em Gent, na Bélgica, não é longe. Duas ou três horas de viagem e chegamos. Um bom motorista e que conheça o caminho também se faz necessário. Senão se vai pela rodovia federal e perdem-se as estradas estaduais e vicinais e perde-se, também, a beleza do caminho. Saímos de Gent e paramos para tomar café perto de Bruxelas. Em Gent se falava flamengo, nessa parada, perto de Bruxelas, francês. Seguimos pela estrada que vai a Liège. Depois seguimos por uma estrada regional, a E 61, e chegamos a Eupen. É a última cidade na Bélgica antes de entrar no parque natural e cruzar a fronteira com a Alemanha. Nessa cidade, ainda na Bélgica, não se falava nem flamengo nem francês e sim alemão. Gent, Bruxelas e Eupen, três cidades de um país e se falam três idiomas diferentes. Como eles se entendem? Não se entendem. Eupen é uma cidade pequena, menos de vinte mil habitantes, muito antiga e sem cor. As casas foram feitas de blocos de cimento marrom e cinza e assim ficaram com a passagem dos séculos. Sem graça. Pode-se perfeitamente, depois de estar com os olhos cheios da beleza do caminho, passar por ela sem parar. Continuamos.
Depois de Eupen, segue-se pela N 67 e atravessa a fronteira e, em seguida, está Monschau. É organizada para receber os turistas: na entrada da cidade está o estacionamento para os ônibus e carros. Tudo lotado. Não fomos os únicos a desejar passar um sábado de primavera no Século XVIII. O riacho que atravessa a cidade é, na verdade, o rio Ruhr. Quando cruza Monschau, ele é estreito e pequeno, um pouco mais que um filete de água, porém em alguns lugares mais adiante, é bem caudaloso, expande-se e alarga e vai morrer no Reno. A cidade vive da manufatura de objetos de vidros e da fabricação de mostarda. A fábrica de mostarda tem mais de cem anos, mas não senti nenhuma vontade de visitar. Mas pode-se experimentar a mostarda pelas lojas da cidade. E também vive do turismo.
Andamos pelas ruas de calçamento do Século XVIII, tiramos fotos da Casa Vermelha, construída em 1752 por Johann H. Scheibler. No centro da cidade, uma praça, o riozinho, uma colina acima, com as ruínas de um castelo, muitos cafés, o cheiro de chocolate quente se esparramando por toda a praça. E muitas lojas de artesanatos, muitas roupas de cama, mesa e banho bordadas de rendas. Muito lindas, mas não comprei nenhuma, pois se trouxesse para meus amigos, iriam achar que eu comprei no Ceará, pois eram muito parecidas: a mesma delicadeza e até mesmo os pontos parecidos.
Uma coisa engraçada aconteceu, e lembro como se fosse uma piada que fiz, mas não sei por que assim o quis. Eu e Theo tínhamos uma língua em comum, o francês, que não era nem a sua língua materna, nem a minha. Quando chegamos a Monschau, comecei a falar com ele em alemão – mesmo com as limitações que tenho no idioma - e simplesmente mudamos de língua. Ele respondeu nessa língua, a qual também falava bem em função de seu trabalho, e quando cruzamos a fronteira, voltando, retornamos ao francês. Hoje não temos mais nenhuma língua em comum, nem a do amor. Sobretudo essa.

Theo perguntou se eu queria como presente uma toalha de renda, disse não; se eu queria levar alguns potes de mostarda, disse não. Estava em uma cidade de contos de fadas, perdida em séculos passados, com um homem a quem tanto quis, vivendo um dia de conto de fadas em um sábado de primavera. Depois o tempo avançaria, mas ali, naquele momento, eu não precisava de nada mais. E assim foi. Mesmo nessa cidade que aspira a ser de outro tempo, ao sopé de uma colina que aspira a ser montanha, o tempo não para. Ainda bem, é sua maior dádiva. Mas mesmo assim, não posso voltar a ela, com receio de não vê-la com os olhos de outrora. Eu e ela nos desencontramos e nos desentendemos, cada uma falando uma língua, cada uma em século diferente. Não posso mais ir lá, mas vocês podem. E precisam. Ela dá a dimensão de como é ser outra pessoa, viver em outro tempo, falar outra língua, ser estrangeiro de si mesmo, nem que seja por um dia. E ela continua lá, cheirosa, graciosa, eterna, esperando vocês. O tempo fez uma curva lá e parou e está esperando a todos que ainda não foram.  

domingo, 14 de agosto de 2016

Sevilha, capital da Andaluzia, a sedutora cidade para se morrer de amor. Por ela, inclusive...


E cheguei a Sevilha, a capital da Andaluzia: quarenta minutos de trem rápido a partir de Córdoba. É mais aberta para o mundo, com pessoas mais acolhedoras do que em Córdoba e Granada. Foi essa a minha impressão, pelo menos. Perguntei a vários sevilhanos porque lá as pessoas eram diferentes; em situações diversas, disseram-me que mesmo para eles, o povo de Córdoba e Granada era fechado, que eles, sevilhanos, aceitam mais os estrangeiros, estão mais acostumados. Creio que a história é mais antiga. É uma cidade de porto, dali Colombo saiu para descobrir novos mundos. Na Torre de Ouro tem muitos quadros, de vários séculos, que mostram as pessoas indo à torre à espera de novos navios que chegavam pelo rio Guadalquivir. A Torre do Ouro é uma construção mourisca do Século XII, à beira do rio, construída com a função de vigilância a todas as embarcações que entravam no canal.
A Praça de Espanha é um dos exemplos mais ricos e lindos da arquitetura andaluza. Só vê-la valeu a viagem. E tem também a Giralda e a Catedral, a terceira maior do mundo. Somente a vi por fora, pois estava complicado entrar: havia uma greve de funcionários que estava fechando a maioria das portas. Não me incomodei de só tirar fotos de fora, pois já soube na primeira manhã em que andei pelas ruas de Sevilha que teria de voltar. Então, paciência.
Frederico Garcia Lorca, o grande poeta andaluz, escreveu que Sevilha é uma cidade para se ferir, para sempre se ferir. Mas é uma cidade para viver. E quanto a Córdoba, diz que é uma cidade para morrer. Escreve isso em mais de um poema.
Acordava cedo, animada, e enquanto minha amiga ainda dormia, saía para andar horas pelas ruas estreitas do centro antigo. A cidade que mais gostei de visitar na Andaluzia, sem sombra de dúvida. Comprei um xale flamenco de seda pura, verde, de tanto verde que é quase fosforescente, bordado com imensas rosas brancas. São caríssimos, mas em um minuto de loucura, comprei. Usei-o poucas vezes, mas segue sendo meu amuleto dessa viagem inesquecível.  E não só isso, trouxe de Sevilha a maior parte das lembranças de viagem: duas reproduções da Torre do Ouro, que estão penduradas em minha sala; uma miniatura da torre está em meu consultório, e também uma estatueta de uma dançarina flamenca. Tudo, com um bocado de sacrifício, chegou inteiro.  
                                                          
Nasceu em Sevilha um mito que correu mundo, saiu de lá - houve tentativas de saber quem seria o sujeito que deu corpo ao mito, mas nunca se conseguiram os dados históricos – o maior amante de todos os tempos, Don Juan, o Sedutor de Sevilha, que conquistava todas as mulheres e amava a cada uma delas como se fosse a única. O personagem foi criado pelo frade espanhol Tirso de Molina, porém baseado em lendas que já se espalhavam pela cidade. Depois de Sevilha, ela correu mundo pelas letras de muitos escritores. Mas deve ter deixado marcas na cidade, em que seus homens precisam ser muito galantes. Era eu pedir um endereço e o prestativo senhor me levava até onde eu queria, começava a chover e outro me oferecia um canto de seu guarda-chuva até eu chegar ao hotel.  Um senhor a quem eu e Alba pedimos informação sobre a melhor parada para chegar ao nosso hotel, desceu do ônibus conosco e fez questão de levar-nos até a porta do hotel. E assim eram as informações que pedíamos a todos esses sevilhanos donjuanescos.
Sevilha ainda espera meu retorno, com seu passado presente, seus azulejos coloridos, seus Dons Juans. E, claro, com os poemas imortalizados de Garcia Lorca: Sevilha, de longos ritmos e labiríntica, uma cidade para se viver. E morrer de amor. Por ela, também.


Andaluzia, a herança moura da Espanha. Córdoba e Granada. Parte I

                  

                         No voo de Lisboa a Madri, li no jornal El país, uma matéria intitulada ‘Bélgica se evapora’. Um país, duas etnias. E a região de Flandres, nesse momento, mais rica e industrializada, queria sua autonomia, se separar dos valões, de língua francesa, a parte mais pobre. No dia seguinte, já no hotel em Madri, li a notícia sobre um grupo de catalães que queimaram a foto do Rei Juan Carlos, pedindo o fim da monarquia, em mais um movimento de busca de autonomia e separação que a Catalunha já mantém há tempos. Sem falar dos ataques do ETA, que a policia espanhola conseguiu, naqueles dias, frustrar, prendendo os mentores que há anos estavam escondidos no sul da França. Esta busca de autonomia, tendo como critério a raça, seria um reflexo da intolerância que vem aumentando nos dias atuais? De uma busca da comunidade dos mesmos? Foi esta a pergunta, a partir dessas três notícias de jornal, que me fiz no café da manhã de meu primeiro dia Espanha, nessa viagem rumo ao sul.
 Há nove anos escrevi essas considerações que estão no parágrafo acima. Estava muito preocupada com o recrudescimento dos movimentos sectários na Europa. Nem é preciso dizer que em quase uma década as coisas estão piores.
Em Madri peguei o trem à Andaluzia, fui conhecer a herança moura da Espanha: Granada, Córdoba e Sevilha. Ernesto Sábato, o famoso escritor argentino, em seu livro “España en los diarios de mi vejez”, contou sua ida a Madri em 2002, com mais de 90 anos e acreditando que seria sua última viagem ao país. Ele sentiu certa decepção e, sobretudo, uma nostalgia da Madri de outrora.  Sábato pegou o trem rápido em Madri e foi a Sevilha. Escreve sobre o trem luxuoso e de grande velocidade, diferente do de suas lembranças, mas que dava para ver os olivais e o entardecer. Também fui de AVE, o trem rápido de que ele fala. Rápido, confortável, mas perdi os olivais ao entardecer.
Al andaluz é o nome que os árabes deram à Península Ibérica. De 711, quando o chefe berbere Tariq, cruzou o estreito de Gibraltar, até 1492 quando os reis católicos reconquistaram a península, Portugal e Espanha foram governados pelos árabes. Fernando, de Aragão, e Isabel, de Castela, estragaram com seu fanatismo essa civilização na qual as três religiões monoteístas conviveram em relativa harmonia. Eles expulsaram os árabes, e os que não foram expulsos foram escravizados – até hoje, por exemplo, Lisboa tem efeito disso: o bairro dos mouros, que eram escravizados, está lá, com o mesmo nome, a mouraria. Os judeus foram expulsos também e a inquisição instaurada com muita ferocidade. Tinha estudado tudo isso para essa viagem rumo ao sul. 
                                               
Granada e Córdoba são cidades em que a população é mais fechada para o estrangeiro em comparação com Sevilha; vivem do turismo, mas mesmo assim, mantêm muita reserva aos que vem de fora. Na estação de trens de Córdoba havia uma exposição sobre a diversidade. Os dados apresentados sustentavam que 10% da população da Espanha era de estrangeiros. Sem a mínima condição de provar o contrário, eu achei que esse índice estava subfaturado. E mais, a Espanha se fez de estrangeiros: de árabes, romanos, de europeus de outros lugares. É uma terra de muitas línguas desde o começo.
Em Granada enfrentei fila de madrugada para conseguir ingressos para entrar na Alhambra. Acordei ainda escuro, peguei o ônibus e, sem escutar o som dos sinos de Granada ao amanhecer, como Garcia Lorca diz em seu poema, esperei três horas para comprar ingressos. Junto com mais dois mil turistas do mundo inteiro. Já dentro da Alhambra, a fortaleza vermelha, eu tive um pouco de decepção, apostava que estivesse mais preservada. Mesma decepção que em Córdoba: Medina Zahara estava em restauração, pois estava quase toda destruída. Tinha lido um romance sobre ela – À sombra das romanzeiras, de Tariq Ali – e esperava encontrar algo desse passado que o autor retratara. No táxi, indo à estação de trens, o motorista diz que se parece que os reis católicos destruíram esse passado mouro – creio que ele percebeu minha decepção, sem que eu a tivesse formulado mais precisamente – os mouros destruíram o passado romano.
A história da mesquita de Córdoba é a seguinte: construída a partir do ano de 785, por Abderraman I, e inspirada na mesquita de Damasco, sua fundação se sobrepôs à igreja de São Vicente. E depois, Fernando e Isabel reconquistaram a cidade e construíram a catedral sobre a mesquita. É a história de toda dominação: quem vence, tenta apagar as conquistas do vencido. Anos depois de voltar dessa viagem, lendo o escritor árabe mais famoso na atualidade, Eduard Said, eu entendi essa história da igreja\mesquita de outra forma. Said diz que todas as culturas se apropriam de coisas uma das outras, se misturam e que isso é uma coisa boa. Penso mesmo que esse é o melhor tratamento contra o fanatismo, contra a pureza étnica. A igreja de Córdoba, que antes foi uma mesquita, é a prova não só do passado glorioso árabe na Europa, mas, sobretudo, dessa experiência única que durante séculos resultou em boa convivência e não em intolerância. Também isso tem de ser lembrado: o mundo gira, as coisas mudam e a história nos ensina só no a posteriori. À época, os intolerantes e fanáticos eram os católicos, que chamavam os outros de infiéis.
Em Córdoba, entre uma sinagoga e a famosa mesquita\igreja, está a estátua de Maimônides, filósofo e médico judeu, nascido lá, em Córdoba. Em Murcia nasceu o maior filósofo de língua árabe, Ibn Arabi, que depois se mudou para Sevilha. Foi um período da história em que a língua da literatura, da ciência e do poder era árabe.
E cheguei a Sevilha, o melhor da Andaluzia: a capital desse império árabe. Aberta para o mundo, com sua torre de ouro à beira do rio Guadalquivir. Minha amiga fotógrafa Alba enlouqueceu com a beleza de suas praças cheias de azulejos e tirou centenas de fotos. Mas de Sevilha falarei em minha próxima crônica.
Já que estou falando sobre intolerância, não poderia terminar com outro personagem que Federico Garcia Lorca. O grande poeta foi uma das vítimas da Guerra Civil Espanhola, assassinado à época da ditatura de Franco, por ser de esquerda e, dizem alguns historiadores, também por ser homossexual. Nasceu em Granada, mas amou mesmo Sevilha. A cidade para viver, segundo ele, era Sevilha e para morrer era Granada. Escreveu sobre o vento sul, ardente, que tocava sua carne, sobre o amor, a vida, a esperança, o azul do vento do sul.
Como ainda hoje, a orientação sexual de uma pessoa continua sendo motivo para alguém assassiná-la, terminarei com um poema de Federico Garcia Lorca. Em homenagem a ele, esse grande poeta andaluz, e a todas as vítimas dessa absurda intolerância humana.
“Se o amor nos engana, quem na vida nos alenta?
Se a esperança se apaga e a Babel começa, que tocha ilumina os caminhos da terra?
Se o azul é um sonho, que será da inocência?
Que será do coração se o amor não tem flechas?

Se a morte é a morte, que será dos poetas e das coisas adormecidas?”

Colômbia, país de tantas riquezas, de tantas histórias, de tanta cultura


        Estou na Colômbia há duas semanas. Enquanto vocês lêem essa crônica,  estarei ainda em Bogotá, quase voltando para casa, quase no fim da viagem. Vim para um congresso de psicanálise e, como estou no país pela primeira vez, aproveitei para conhece-lo. Muitos colegas e amigos psicanalistas também estão no país, conjugando estudo e turismo.
        Já saí do Brasil entrando no clima colombiano. De São Paulo a Bogotá, vim com o time Nacional, de Medellín. Os jogadores estavam contentes porque ganharam o jogo contra o São Paulo. Passei quase uma semana em Cartagena, cidade maravilhosa - como já relatei em crônica anterior - e no dia treze de julho cheguei a Medellín para o Congresso de psicanálise. Nesse dia, o Nacional, time dessa cidade, ganhou novamente do São Paulo. A cidade parou, na rua todos parados à frente de uma televisão; no parque Lleras havia um telão para quem queria assistir o jogo.
        Além do time Nacional, Medellín é a cidade de nascimento de Fernando Botero, pintor e escultor colombiano famoso por pintar figuras rotundas, dizendo mais claramente, gordas. Creio que Botero e Garcia Marquez são os dois colombianos mais conhecidos no mundo. O Museu Botero em Bogotá é gratuito, exigência do artista para que seu povo pudesse ter livre acesso a sua obra. Em Medellín tem uma praça com vinte e três esculturas suas. Na praça movimentada, as pessoas não só olham, elas encostam, interagem com as obras de arte gigantescas. Sentam-se nas beiradas, em uma delas, em que a mulher-escultura está deitada de barriga pra baixo, sentam-se em suas costas. Se um artista quer estar entre o povo, Botero conseguiu isso plenamente.
                                                                            
            Diante da Praça das esculturas, está o Museu da Antióquia, com três andares de um acervo riquíssimo, muitas obras de Botero e de outros pintores e escultores que ele foi doando em diferentes momentos para o museu. Há uma sala especial para as crianças, chamada Sala Pedrito, em homenagem a seu filho Pedro, morto aos quatro anos em um acidente de carro. Ele pintou muitos quadros para fazer esse luto e para elaborar, com sua arte, essa dor sem nome que é perder um filho.
            Nos dias em que passei em Medellín, só consegui ver a Praça das Esculturas e o Museu da Antióquia.  Nos demais dias fiquei trancafiada em um congresso. Mas só essas duas coisas valem a ida a Medellín, cidade que fica trinta minutos de avião de Bogotá.
              Não posso dizer que conheci bem a Colômbia, mas Fernanda pode. Minha amiga, psicanalista de São Paulo,trouxe a família, seu marido Flavio e as lindas filhas Zoe e Bia. Todos acompanharam a mãe - que elas dizem ser ligada em 220 V - pela Colômbia toda. Pegaram voos, ônibus, subiram em teleféricos, acamparam, passaram por cidades grandes e pequenas desse país montanhoso e de estradas sinuosas. Pergunto a Bia o que foi o mais emocionante e ela me diz que foram duas coisas. O teleférico em Manizales parou com todos lá em cima e ficaram uns vinte minutos parados, trancados, até ele ser  consertado. Bia contou, com surpresa, que uma mulher já adulta, para se acalmar, ficava chamando o próprio pai que não estava lá. Bia tem sete anos e gosta de fazer algumas coisas sozinha. No hotel de Medellin, ela descia sozinha para tomar o café da manhã enquanto o resto da família ainda dormia. Deve ter ficado decepcionada com a insegurança de uma mulher adulta rogando a um pai ausente. A segunda coisa emocionante que me contou foi que pegaram um taxi que andava em alta velocidade e subiu em uma calçada. Nem velocímetro esse taxi tinha. Aliás, o país tem grande devoção a Virgem del Carmen, uma versão de Nossa Senhora. É a padroeira dos condutores, tem santinhos dela nos táxis, nas igrejas, por tudo. Um país com uma santa padroeira dos condutores e com um jeito louco de dirigir. Em Cartagena, os condutores, incluindo motoqueiros, buzinavam o tempo inteiro. Passamos os dias tentando entender a lógica das buzinas, mas não tem lógica nenhuma. Nao se respeita faixa de pedestres, se vira à esquerda, à direita, quase não tem semáforos. É um trânsito um tanto louco. Entendi que o jeito, ao entrar num táxi, mesmo aqui em Bogotá, é rogar à santa e Seja o que Deus quiser.
        Para Zoe perguntei que lugar ela gostou. Resposta:  El Jardin. É um pequeno povoado a 140 km de Medellín. Ficaram hospedados em um hostel simples, de frente a praça da cidade. Às 3h00 da madrugada, o padre da cidade tocava o sino para as pessoas acordarem. Às 4h00 começavam a varrer a rua. É uma cidade um pouco perdida no tempo, em que os moradores se reuniam de manhã e à tarde para, todos juntos, tomar a aromática, um chá de camomila, e conversarem. Nao importava idade, não tinham pressa.
          Bia e Zoe, criadas em uma cidade como São Paulo, podiam ir à praça e brincar na rua com os cachorros. A cidade fazia jus ao seu nome: plena de canteiros de rosas.
                                                                   
          Hoje andando pelo centro antigo de Bogotá, a Candelária - Bogotá é uma cidade gigante, de quase 10 milhões de habitantes - senti que eles não têm a pressa dos que andam, por exemplo, no centro de São Paulo ou de Nova York.
          É uma cidade acolhedora, com pessoas gentis, simples, com uma riqueza cultural e linguística impressionantes. Tem 84 grupos de povos indígenas, ainda são falados 64 idiomas. A culinária é excelente.
         Nao conheci tão bem a Colômbia como Fernanda e sua família, só me faço a pergunta como demorei tanto tempo pra vir pela primeira vez a esse país. Só sei que voltarei outras vezes. O único problema é que Medellín e Bogotá - ainda mais Bogotá - são cidades muito altas. Ao chegar é preciso tempo para se adaptar. Estou em Bogotá a mais de 30 horas e respiro como se tivesse acabado de fazer uma caminhada de 6 km. O ar é mais rarefeito, é preciso tempo para os pulmões se acostumarem. É o conhecido mal das alturas, o soroche.
           Perguntei a Zoe: você conta para suas colegas na escola tudo o que já viveu em suas viagens? Respondeu que não, que eles nem acreditariam.

           Viajar é realmente uma grande aprendizagem, uma riqueza cultural que carregamos conosco. É uma descoberta do mundo, uma descoberta de nós mesmos e uma descoberta do outro, o estrangeiro. É colocar o outro diante de si, como escreveu William Blake. E, por vezes, temos a oportunidade de compartilhar um pouco de tudo que vivemos: a riqueza tem de ser compartilhada.

Cartagena das Índias, no Caribe do cólera, das batalhas e dos amores contrariados

                                                                                


          O pirata inglês Francis Drake chegou a Cartagena em 1586, com uma potente frota, desembarcou e saqueou a cidade histórica. Chegaram à noite em Bocagrande e caminharam até a Ponta do Judeu, onde é hoje o Clube Naval, encostado da cidade muralhada. Outro grupo de sua frota tentou aportar à altura do Forte de Boquerón, mas não conseguiu. Os piratas roubaram jóias e artilharia e Drake exigiu do governo 107.000 pesos para não destruir a catedral da cidade com um tiro de canhão. O governo cedeu e a catedral sobreviveu quase inteira, não fosse pelo sino roubado, que foi derretido e transformado em mais um canhão para os corsários. Retomo esse personagem histórico, presente em minha crônica anterior, sobre a Patagônia, para descrever uma das tantas batalhas travadas aqui em Cartagena das Índias.
        Assim como Drake, estou aportada em Bocagrande, uma península que me leva até a cidade histórica, cercada por muralhas. Bocagrande tem o mar de um lado e um lago do outro. Na verdade, é uma baía em que o mar entrou e a terra quase o fechou aqui. Esse corredor de três ruas vai do mar até a cidade histórica. Estou aqui atolada no calor cartaginês. Assim Gabriel Garcia Marquez sentiu-se ao chegar a Cartagena: atolado no calor de uma pensão, na cidade histórica.
         Heróica, assim foi chamada essa cidade que lutou pela independência dos espanhóis, com calor insustentável durante o dia e noites frescas, conjugando dois tempos, o atual e um passado, imorredouro, tem as construções mais lindas com as portas imponentes abertas para o mundo. Aqui Gabriel Garcia Marques ambientou O amor nos tempos do cólera. E dentre as muitas coisas que escreve sobre Cartagena, adjetiva-a como feita de glórias carcomidas e ruínas. Estava com minha amiga Alba no Banco de Colômbia para fazer câmbio, assistindo à televisão como proceder em caso de terremoto, enquanto esperava chamarem minha senha, quando entrou um homem todo vestido de um terno de linho branco e um chapéu Panamá e pensei: aquele deve ser Juvenal Urbino. É o médico, marido de Fermina Daza, personagem de O amor nos tempos do cólera. Nos arcos da Paróquia, lembro que foi ali que Lorenzo Daza carregou pelo braço Florentino Ariza e lhe disse que não entregava a filha Fermina, selando o impossível desse amor. Em uma de suas pensões, Gabo ficou hospedado e começou a escrever seu romance: tem hoje lá seu rosto desenhado na parede. Na universidade de Cartagena, começou a estudar Direito, mas a Heróica deve ter lhe inspirado tanto que a Colômbia perdeu um advogado a mais para ganhar um dos melhores escritores do mundo.
        É uma cidade das frutas a serem vendidas em cada esquina, sem fast-foods, com culinária maravilhosa. Come-se muito bem aqui. Só o que me faltou foi ter ficado hospedada dentro da cidade muralhada. É o meu conselho de hoje: mesmo que tenha de se ficar em hotel mais simples ou em um hostel, é melhor ficar dentro das muralhas.
                                                                                
        O povo é de um acolhimento, gentileza e alegria ímpar. Uma mulher muito feminista não vai gostar do que vou escrever: os homens são atirados, seguem-te na rua, chamam as mulheres de guapíssimas, roubam beijam, oferecem seu coração, dizem-se apaixonados. É um certo jogo de cena de conquista e flerte ao estilo do amor cortês, que espera que a mulher diga o não, contrariando-o. Assim nessa ficção enganosa em que se diz a verdade do desejo, os homens mostram-se calorosos e ardentes, como os homens do Caribe devem ser. E as mulheres se sentem lindas e adoradas.

        Para mim, depois que li O amor nos tempos do cólera, Cartagena ficou como a cidade dos amores contrariados, desatinados, sem futuro. Essa cidade cheia de histórias de guerras, de luta por independência dos espanhóis, de batalhas vencidas e perdidas contra os ataques de piratas, do cólera, da fome, do calor insuportável, será sempre um templo aos amores impossíveis. E, por isso mesmo, eternos. Nada dura mais na vida do  que o que não se realizou. É isso Cartagena das Índias: uma cidade irrealizada. Escrevo para vocês em tempo real: quem tem um amor irrealizado, venha viver alguns dias sua ruína de amor nessa cidade de ruínas. Quem não tem, traga sua ruína alguns dias para cá. De qualquer forma, para todos, venham para cá. Quanto a mim, eu não volto para casa.