domingo, 14 de agosto de 2016

Andaluzia, a herança moura da Espanha. Córdoba e Granada. Parte I

                  

                         No voo de Lisboa a Madri, li no jornal El país, uma matéria intitulada ‘Bélgica se evapora’. Um país, duas etnias. E a região de Flandres, nesse momento, mais rica e industrializada, queria sua autonomia, se separar dos valões, de língua francesa, a parte mais pobre. No dia seguinte, já no hotel em Madri, li a notícia sobre um grupo de catalães que queimaram a foto do Rei Juan Carlos, pedindo o fim da monarquia, em mais um movimento de busca de autonomia e separação que a Catalunha já mantém há tempos. Sem falar dos ataques do ETA, que a policia espanhola conseguiu, naqueles dias, frustrar, prendendo os mentores que há anos estavam escondidos no sul da França. Esta busca de autonomia, tendo como critério a raça, seria um reflexo da intolerância que vem aumentando nos dias atuais? De uma busca da comunidade dos mesmos? Foi esta a pergunta, a partir dessas três notícias de jornal, que me fiz no café da manhã de meu primeiro dia Espanha, nessa viagem rumo ao sul.
 Há nove anos escrevi essas considerações que estão no parágrafo acima. Estava muito preocupada com o recrudescimento dos movimentos sectários na Europa. Nem é preciso dizer que em quase uma década as coisas estão piores.
Em Madri peguei o trem à Andaluzia, fui conhecer a herança moura da Espanha: Granada, Córdoba e Sevilha. Ernesto Sábato, o famoso escritor argentino, em seu livro “España en los diarios de mi vejez”, contou sua ida a Madri em 2002, com mais de 90 anos e acreditando que seria sua última viagem ao país. Ele sentiu certa decepção e, sobretudo, uma nostalgia da Madri de outrora.  Sábato pegou o trem rápido em Madri e foi a Sevilha. Escreve sobre o trem luxuoso e de grande velocidade, diferente do de suas lembranças, mas que dava para ver os olivais e o entardecer. Também fui de AVE, o trem rápido de que ele fala. Rápido, confortável, mas perdi os olivais ao entardecer.
Al andaluz é o nome que os árabes deram à Península Ibérica. De 711, quando o chefe berbere Tariq, cruzou o estreito de Gibraltar, até 1492 quando os reis católicos reconquistaram a península, Portugal e Espanha foram governados pelos árabes. Fernando, de Aragão, e Isabel, de Castela, estragaram com seu fanatismo essa civilização na qual as três religiões monoteístas conviveram em relativa harmonia. Eles expulsaram os árabes, e os que não foram expulsos foram escravizados – até hoje, por exemplo, Lisboa tem efeito disso: o bairro dos mouros, que eram escravizados, está lá, com o mesmo nome, a mouraria. Os judeus foram expulsos também e a inquisição instaurada com muita ferocidade. Tinha estudado tudo isso para essa viagem rumo ao sul. 
                                               
Granada e Córdoba são cidades em que a população é mais fechada para o estrangeiro em comparação com Sevilha; vivem do turismo, mas mesmo assim, mantêm muita reserva aos que vem de fora. Na estação de trens de Córdoba havia uma exposição sobre a diversidade. Os dados apresentados sustentavam que 10% da população da Espanha era de estrangeiros. Sem a mínima condição de provar o contrário, eu achei que esse índice estava subfaturado. E mais, a Espanha se fez de estrangeiros: de árabes, romanos, de europeus de outros lugares. É uma terra de muitas línguas desde o começo.
Em Granada enfrentei fila de madrugada para conseguir ingressos para entrar na Alhambra. Acordei ainda escuro, peguei o ônibus e, sem escutar o som dos sinos de Granada ao amanhecer, como Garcia Lorca diz em seu poema, esperei três horas para comprar ingressos. Junto com mais dois mil turistas do mundo inteiro. Já dentro da Alhambra, a fortaleza vermelha, eu tive um pouco de decepção, apostava que estivesse mais preservada. Mesma decepção que em Córdoba: Medina Zahara estava em restauração, pois estava quase toda destruída. Tinha lido um romance sobre ela – À sombra das romanzeiras, de Tariq Ali – e esperava encontrar algo desse passado que o autor retratara. No táxi, indo à estação de trens, o motorista diz que se parece que os reis católicos destruíram esse passado mouro – creio que ele percebeu minha decepção, sem que eu a tivesse formulado mais precisamente – os mouros destruíram o passado romano.
A história da mesquita de Córdoba é a seguinte: construída a partir do ano de 785, por Abderraman I, e inspirada na mesquita de Damasco, sua fundação se sobrepôs à igreja de São Vicente. E depois, Fernando e Isabel reconquistaram a cidade e construíram a catedral sobre a mesquita. É a história de toda dominação: quem vence, tenta apagar as conquistas do vencido. Anos depois de voltar dessa viagem, lendo o escritor árabe mais famoso na atualidade, Eduard Said, eu entendi essa história da igreja\mesquita de outra forma. Said diz que todas as culturas se apropriam de coisas uma das outras, se misturam e que isso é uma coisa boa. Penso mesmo que esse é o melhor tratamento contra o fanatismo, contra a pureza étnica. A igreja de Córdoba, que antes foi uma mesquita, é a prova não só do passado glorioso árabe na Europa, mas, sobretudo, dessa experiência única que durante séculos resultou em boa convivência e não em intolerância. Também isso tem de ser lembrado: o mundo gira, as coisas mudam e a história nos ensina só no a posteriori. À época, os intolerantes e fanáticos eram os católicos, que chamavam os outros de infiéis.
Em Córdoba, entre uma sinagoga e a famosa mesquita\igreja, está a estátua de Maimônides, filósofo e médico judeu, nascido lá, em Córdoba. Em Murcia nasceu o maior filósofo de língua árabe, Ibn Arabi, que depois se mudou para Sevilha. Foi um período da história em que a língua da literatura, da ciência e do poder era árabe.
E cheguei a Sevilha, o melhor da Andaluzia: a capital desse império árabe. Aberta para o mundo, com sua torre de ouro à beira do rio Guadalquivir. Minha amiga fotógrafa Alba enlouqueceu com a beleza de suas praças cheias de azulejos e tirou centenas de fotos. Mas de Sevilha falarei em minha próxima crônica.
Já que estou falando sobre intolerância, não poderia terminar com outro personagem que Federico Garcia Lorca. O grande poeta foi uma das vítimas da Guerra Civil Espanhola, assassinado à época da ditatura de Franco, por ser de esquerda e, dizem alguns historiadores, também por ser homossexual. Nasceu em Granada, mas amou mesmo Sevilha. A cidade para viver, segundo ele, era Sevilha e para morrer era Granada. Escreveu sobre o vento sul, ardente, que tocava sua carne, sobre o amor, a vida, a esperança, o azul do vento do sul.
Como ainda hoje, a orientação sexual de uma pessoa continua sendo motivo para alguém assassiná-la, terminarei com um poema de Federico Garcia Lorca. Em homenagem a ele, esse grande poeta andaluz, e a todas as vítimas dessa absurda intolerância humana.
“Se o amor nos engana, quem na vida nos alenta?
Se a esperança se apaga e a Babel começa, que tocha ilumina os caminhos da terra?
Se o azul é um sonho, que será da inocência?
Que será do coração se o amor não tem flechas?

Se a morte é a morte, que será dos poetas e das coisas adormecidas?”

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