quarta-feira, 31 de agosto de 2016

Há viagens das quais nunca regressamos. A Bélgica que ainda vive em mim


Sempre a Bélgica ficará para mim como um lugar de muitos dias nublados e frescos, de caminhadas pelo campo, de fotos tiradas pelos caminhos, de canais e crepes, de uma língua tão difícil que nunca consegui aprender. Estive lá em diferentes momentos, nas várias estações do ano e escolhi a primavera como a mais bonita.
Estive lá antes de Theo e depois dele. Com ele foi melhor, conheci o país e andei por muitas cidades. Em algumas, literalmente. Ele registrou-me em um clube de marcha atlética, participei de várias. Andei mais de cinquenta quilômetros em três marchas, em três cidades diferentes.  
Para mim as quatro cidades que mais gostei de conhecer: Gand, Damme, Tongeren e Dinant. No Século X, uma violenta tempestade varreu a costa do Mar do Norte e abriu um canal perto da cidade de Bruges, ao final desse canal se formou uma vila de pescadores. Assim surgiu a cidade de Damme. Pequena, linda, rodeada de moinhos e canais; do alto da torre da igreja, avistei a cidade de Bruges e o Mar do Norte. A beleza de Tongeren não enche tanto os olhos, mas reconheci seu grande valor histórico. Foi entreposto dos romanos, via de comunicação entre os vários reinos conquistados. Mas ali os romanos encontraram um povo nativo bravio, que ofereceu resistência. Ambiorix colocou Júlio Cesar para correr. Uma vez, pelo menos.
Dinant é para encher nossos olhos de beleza, construída à beira do rio Meuse, com uma catedral colada a uma grande rocha, cheia de flores e casinhas lindas. Mas foi palco de uma batalha horrível na I Guerra Mundial. Ela foi capturada pelos alemães, e contra-atacada pelos franceses. Eles combateram na cidade. Os alemães incendiaram vinte civis. Escrevo só para que vocês não pensem que é novidade do Estado Islâmico essa barbárie que é incendiar pessoas. E depois, os alemães mataram 674 civis desarmados, novamente cidadãos de Dinant.
E, finalmente, Gand. Cidade bonita, repleta de canais, com arquitetura gótica abundante, uma catedral imponente, várias construções imponentes, evidenciando uma cidade que já foi das mais importantes da Europa, dos Séculos XI ao XVI. Nela nasceu e foi batizado Carlos V, o Imperador do Império Românico-Germânico. É a cidade de Theo.  
Andei muito pelo país, entre as torres de Bruges e Gand, sob o céu flamengo, com o vento forte do Mar do Norte no rosto. O país plano, o céu flamengo, o vento do Mar do Norte, o território mapeado entre as torres de Bruges e Gand, são as marcas que Jacques Brel coloca de seu país em suas músicas. Jacques Brel é um cantor de língua francesa muito conhecido, inclusive no Brasil, sobretudo por sua música Ne me quitte pas. Eu não sabia, antes dessas viagens, que ele era de família paterna flamenga e que compôs essa música em flamengo, depois traduziu para o francês. Temos uma versão em português dela, cantada por Raimundo Fagner. 
A Bélgica é uma junção territorial de dois povos, duas línguas. Os valões falam o francês e os flamengos, da região de Flandres, falam o flamengo, que é um holandês com galicismos. Perguntei a Theo se a diferença entre o holandês falado na Holanda e o falado em Flandres era muito grande. Resposta: pelo que estou estudando do português, a diferença é menor do que o português de Portugal e do Brasil.

Em Bruxelas, eu adorava andar pelas ruas próximas da estação de trens. No geral, ruas próximas a estações ou rodoviárias não são muito cheirosas, mas em Bruxelas cheiravam a chocolate. E não qualquer chocolate, o verdadeiro chocolate belga, o melhor. Depois da estação, subia as escadas e virava à direita, seguia pela Rua Kantersteen e encontrava uma das melhores lojas de chocolates, que fazia um chocolate artesanal desde 1919, o cheiro maravilhoso inundava o quarteirão todo. Nenhuma cidade do mundo por onde andei tem esse cheiro. Bruxelas é doce, cheira a chocolate por tudo.
Estávamos, eu e Theo, jantando em um dos restaurantes da Rua de Bouchers e ele começou a me contar histórias dessa rua de restaurantes, de como ela era há trinta anos. Sentia uma nostalgia da Bruxelas de outrora, com menos trânsito, onde todas as pessoas se conheciam, se cumprimentavam. Contava-me histórias da Bélgica da época em que seus pais eram vivos. Contou-me histórias da II Guerra Mundial que lhe foram contadas por seu pai, quando ele era pequeno. Eu lhe disse que isso tinha de ser escrito, tinha que se transformar em um livro. No ano anterior, eu havia publicado meu primeiro livro e estava esboçando umas ideias para o segundo, estava pesquisando sobre a II Guerra Mundial para um capítulo desse segundo livro. Por isso meu segundo livro foi dedicado a Theo. Por isso e pelo amor de outrora. Quando tivemos essa conversa durante o jantar, ele pediu-me que o ajudasse a escrever esse livro nostálgico de seu país de antes. Disse sim e passei a anotar tudo que me contava. Tenho isso ainda comigo: apontamentos para um livro futuro que não existiu, memórias, cenas da vida desse homem e de seu pai, empobrecido e humilhado durante a guerra, recortes de vidas que não foram minhas e nunca serão. O que fazer com esses retalhos de um livro inexistente sobre a Bélgica?
Continuo me interessando muito por esse país, sua capital, a Grand Place tão milenar, suas ruas e seus invernos gelados, com flocos de neve que correm na horizontal a te perseguir pelas ruas. Sinto saudades dessa língua tão difícil, que não consegui aprender mais do que algumas palavras, de sua culinária maravilhosa, de seus chocolates insuperáveis. Mas, sobretudo, sinto falta das pessoas, de sua curiosidade contida, de sua reserva um pouco medrosa, de seus sorrisos envergonhados. Miguel Souza Tavares, no romance “No teu deserto”, escreve que há viagens das quais nunca regressamos.  Tudo está em mim, ainda. Intensamente. Não se esquece um lugar onde se foi feliz.



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