sábado, 5 de março de 2016

UM POETA E UM CASTELO. E DUAS MULHERES. TALVEZ TRÊS



Mesmo que agora busque um novo laço
com que prender-me, é certo que do antigo
Não me liberto do apertado abraço
Um fogo apaga outro, sempre digo:
E tu, que és meu carrasco nesse passo,
Faz que assim seja, Amor, mas não comigo.
Gaspara Stampa

O presente texto é o desfecho de meses de leitura da obra de Rainer Maria Rilke e da visita a um castelo onde ele começou a gestar uma obra imprescindível para a história da poesia, o Castelo de Duíno, em Trieste. E lá, no castelo, vinha à memória da autora dessas páginas, trechos do ensino de Lacan, no qual ele relacionou o ato analítico com a poesia. Ainda há mais um motivo para escrever o texto: a descoberta, lá, de que Marie Bonaparte frequentou o castelo, tendo ainda livros de psicanálise que retratam seus períodos de leituras freudianas, espalhados pelos cômodos do castelo. A autora foi para encontrar Rilke, e o inesperado foi encontrar Freud.

A poesia é uma violência à língua
Em seu seminário O saber do psicanalista, proferido no final de 1971 e em 1972, na capela do Hospital Sainte-Anne, Lacan está às voltas com a lógica matemática. É preciso revirar a coisa, diz em sua aula de 6 de janeiro de 1972, ainda que a lógica “possa tornar o mundo odioso”, permite não se deter no senso comum, em um sentido fácil. A lógica permite a Lacan apreender o objeto a como “inteiramente estranho à questão do sentido”. Uma outra razão, e escreve RESON[i], como Francis Ponge, como esse grande poeta o faz. Em seguida, após apresentar o poema de Tudal – que já estava citado em Função e Campo da Fala e da linguagem em Psicanálise – diz que ele é um poeta “não desprovido de talento”. Francis Ponge, para Lacan, é um grande poeta[ii], e Antoine Tudal, um poeta menor. Nessa aula desse seminário, há um elogio a um poeta, e certo menosprezo ao outro. Por que? Essa questão me ocupou enquanto estudava para o seminário que proferi em agosto de 2015, no Fórum do Campo Lacaniano de Fortaleza.
Ensaio uma resposta: Ponge garatuja com as palavras. Nessa aula, ele mesmo, Lacan, brinca com o poeta, papua, papuasia. Ele quer abordar a linguagem na sua função topológica (aula de 3 de março de 1972). Isso lhe permitiu, inclusive, fazer sua proposição da lógica da sexuação. “Isso permitiria à psicanálise operar sobre o real, único a estar mais além da linguagem”.
Em Rumo a um significante novo (1977), afirma que a psicanálise tem efeitos de sentido – ela tem relação a isso que é o significante – e isso faz dela uma escroqueria. Mas não mais escroqueria que a poesia. “A poesia se funda precisamente nessa ambiguidade da qual falo e que qualifico de duplo sentido”. (aula de 15 de março de 1977) A poesia faz uma violência à cristalização do uso da língua. A poesia amorosa marca essa violência, alega Lacan. E para isso cita Dante. “A poesia joga inocentemente com o imaginariamente simbólico e com isso ela mostra a verdade sobre a relação sexual”. E, mais adiante nesse seminário, dirá que a verdade é poética, assim como uma interpretação, ela desmancha um sentido.
Por isso Lacan diz que o psicanalista pode ser um poata, um poeta do ato. É a aposta de Lacan de que o ato analítico pode ser uma violência ao sentido, como a poesia também o é, ao sentido e, consequentemente, à língua. “É à medida que uma interpretação justa desmancha um sintoma, que a verdade se especifica em ser poética”. (aula de 19\04\77)

Rilke e o Duíno
Rainer Maria Rilke escreveu suas Elegias do Duíno entre 1912 e 1922. Dez anos para gestar alguns dos mais belos poemas que alguém já escreveu. Seu livro retrata o amor, as perguntas sobre a existência, sobre o tempo, a busca do absoluto, a angústia diante da morte, a solidão, a nostalgia e o amor perdido. O homem, esse anjo terrível, que “vive sem amparo neste mundo definido”. Depois de passar por Roma, Nápoles, Florença, atormentado por seu amor infeliz por Lou Andreas-Salomé, chega a Trieste e ao castelo.
Escreveu as primeiras elegias no Castelo do Duíno, nos arredores de Trieste, quase fronteira com a Eslovênia. O castelo é majestoso, construído sobre um rochedo, numa ponta de terra que avança mar adentro, com todas suas janelas penduradas sobre o Mar Adriático. Nele, Rilke perdeu o bloqueio criativo em que estava e começou a gestar essa obra. O Castelo é propriedade há séculos da família de nobres Torres e Tasso, e já foi local de veraneio para muitos escritores, artistas e nobres através dos tempos. Uma parte da Divina Comédia foi escrita lá; depois de uma temporada de férias nele, em 1914, Francisco Ferdinando saiu do castelo, pegando o trem para ser assassinado em Sarajevo.
Sabemos da paixão que Rilke declarou por Lou Andreas-Salomé. Escreveu para ela as palavras mais lindas que um homem pode escrever a uma mulher.  “Apaga-me os olhos: ainda posso ver-te, tranca-me os ouvidos, ainda posso ouvir-te.” E continua para, no fim do poema, afirmar que a traz em seu sangue. E em outro, escreve que o amor de um ser humano por outro é a experiência mais difícil para cada um de nós, “o mais superior testemunho de nós próprios, a obra absoluta em face da qual todas as outras são ensaios”. Quando a conheceu tinha vinte e dois anos, ela era quinze anos mais velha que ele. Estava casada, já tinha descartado a proposta amorosa de Nietzsche, já tinha fugido de casa e da terra pátria, a Rússia. E já era uma escritora conhecida. Ainda não tinha se aproximado de Freud e da Sociedade Psicológica das Quartas-feiras. Depois de um desentendimento com ela, ele viaja à Itália. Rilke chegou a mudar de nome sob a influência dela: ela achava que René não lhe ficava bem, não para um poeta que iria ter a projeção que ele teria no futuro. Foi ela a primeira pessoa a ver nele o escritor que ele iria se tornar. Mas não queria se separar do marido, o acomodou em uma casa próxima de sua casa e se encontravam muito, viajavam juntos, foram duas vezes juntos a amada Rússia, terra natal dela. Uma vez os três, Rilke, Salomé e o marido. E a segunda vez só Rilke e Salomé. Para essa viagem ele se preparou, estudou sobre a Rússia. E ela o apresentou a Tolstói.
Se essas primeiras elegias foram gestadas em um momento de turbulência em seu relacionamento com Lou Andreas-Salomé, se ela foi a inspiração para a elegia (“sim, as primaveras precisavam de ti”) o nome de mulher que aparece na primeira elegia é o de Gaspara Stampa. O poeta escreve que está distraído, à espera da amada. E se a nostalgia vier, ele cantará as amantes, essas abandonadas “que te parecem mais ardentes que as apaziguadas”. E mais adiante: “Com que fervor lembraste Gaspara Stampa, cujo exemplo sublime faça enfim pensar uma jovem qualquer, abandonada pelo amante: por que não sou como ela? Frutificarão afinal esses longínquos sofrimentos? Não é tempo daqueles que amam libertar-se do objeto amado e superá-lo, frementes?”
Gaspara Stampa (1524-54), poetisa do Século XVI, nascida em Pádua, apaixonada aos vinte e quatro anos por um conde, por quem tinha uma devoção desesperada. Tiveram um relacionamento breve e depois ele não mais retribuiu seu amor. Ela endereçou a ele, Conde Collaltino, seus poemas de amor. E o intitulava de “meu ilustre senhor”. “Extinta” sua paixão pelo conde, se apaixona por Bartolomeu Zen, e escreve para ele quatorze sonetos de amor. O amor pelo veneziano Bartolomeu suplantou seu sentimento desesperado pelo conde? Creio que a epígrafe desse texto, parte de um soneto de Gaspara, responde a pergunta.
Ela morreu aos trinta anos, depois de quinze dias de uma febre intensa que não cedia. Dois anos depois que Collaltino tinha se casado. Na verdade, sua febre intensa foi o amor. Uma amante, uma ardente, febril, diferente de uma apaziguada, como Rilke retrata em sua primeira elegia.


Marie Bonaparte e o Duíno
Essa princesa grega e dinamarquesa, aparentada de várias famílias reais da Europa, sobrinha-bisneta de Napoleão Bonaparte, riquíssima, conheceu Freud quando tinha cerca de quarenta anos. Estava à beira do suicídio e sua análise com Freud, que durou mais de 15 anos, não apenas salvou sua vida, mas lhe trouxe uma paixão e entusiasmo que carregou até o final: a psicanálise. E é graças a ela que Freud e sua família não foram exterminados pela Gestapo e que a obra freudiana pôde deixar a Áustria e chegar intacta a Londres. Ela investiu sua energia, seu dinheiro e seu tempo para fazer a psicanálise prosperar. Foi a grande embaixadora da Sociedade Psicanalítica de Paris, afirma Elizabeth Roudinesco. Sua importância para a psicanálise ter prosperado na França também é inquestionável.
Em 1949, Eugênia, a filha de Marie, casa-se em segundas núpcias com o Príncipe Raymond de Thurn and Taxis. O príncipe é o herdeiro do castelo de Duíno. E três anos depois nasce Carlos Alessandro della Torre e Tasso[iii]. É esse neto que foi entrevistado pela jornalista italiana Francesca Graziano e que conta a ela várias histórias dessa avó famosa. Não há no livro nada que conte sobre suas estadias no castelo.
Segundo Roudinesco, “com essa mulher que o cumulava de presentes, Freud manifestou o seu extraordinário gênio clínico. Gostava tanto dela que, para recompensar sua fidelidade, ofereceu-lhe, como fizera a Lou Andreas-Salomé, um dos famosos anéis reservados aos membros do Comitê Secreto”. Assim, tanto Lou Andreas-Salomé quanto Marie Bonaparte, as duas mulheres a quem Freud tinha tanta confiança, se enlaçam, cada uma a sua maneira, à história do Castelo de Duíno. E também, indiretamente, Gaspara Stampa, pois Rilke a colocou no castelo, em sua primeira elegia do Duíno.

E deixando o castelo
E também podemos pensar em uma quarta mulher envolvida com o castelo, essa que vos escreve, que leu toda essa história e quis ir até lá, andar por seus cômodos e olhar o Adriático, esse gigante azulado que bate sobre as rochas, sobretudo nas grandes noites de verão, “as grandes noites de verão, e as estrelas, as estrelas da terra”, escreveu Rilke. Para ela, essas estrelas também pareceram maiores nessas noites que passou em Trieste. Talvez influenciada por Rainer Maria Rilke, talvez influenciada pela história, achou que a estrelas brilhavam para ela.  

Referências bibliográficas
Graziano, Francesca. Marie Bonaparte, la Principessa della psicoanalisi. Trieste: Edizioni Fenice Trieste, 2005.
Lacan, Jacques. Função e Campo da Fala e da linguagem em Psicanálise. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.
_______ O saber do psicanalista (1971-72). Inédito.
______ Rumo a um significante novo. Opção Lacaniana. São Paulo: Edições Eólia, número 22, agosto de 1998.
Ponge, Francis. A mimosa. Coleção Poetas do mundo. Tradução e notas de Adalberto Müller. Brasília: Editora da UnB, 2003.
Rilke, Rainer Maria. Elegias de Duíno. Rio de Janeiro: Editora Globo. 4 ed. Tradução Dora Fereira da Silva. s/d.
Rilke, Rainer Maria; Andréas-Salomé, Lou. Correspondência amorosa. Lisboa: Relógio d’Água, 1994.
Roudinesco, Elizabeth; Plon, Michel. Dicionário de Psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.
Stampa, Gaspara; Labé, Louise; Browning, Elizabeth Barrett. Três mulheres apaixonadas. São Paulo: Cia das Letras, 1999.
Thurn und Taxis, Marie von. Ricordo di Rainer Maria Rilke. Trieste: Edizioni Fenice Trieste, 2005.



[i] A homofonia entre résonner [ressoar] e raisonner [raciocinar] permite o jogo de palavras entre réson e raison.

[ii] E não apenas para Lacan. Ponge ganhou vários prêmios literários e ganhou reconhecimento na França e no mundo. Foi lido, debatido, e muitas teses e livros de autores famosos tiveram por tema sua obra. Dentre elas assinalo a de Derrida e de Haroldo de Campos. Ponge brinca com os significantes, e usa a palavra em sua sonoridade como Manoel de Barros também o fez. Em seu livro A mimosa, usa o arbusto, a mimosa pudica, e diz o porquê: minha sensualidade infantil acordou sob os sóis da mimosa. E desfia os significantes: mimosa, mimosa sans moi, mimésis, le mimosa et moi, le mimosa lui-mêmê. E ainda: como em tramaga há trama, em mimosa há mimo [como dans tamaris il y a tamis, dans mimosa il y a mima]. É uma poesia tão difícil de ser traduzida. Nessa edição que tenho, abundam notas de rodapé. E não poderia ser diferente. Uma pequena curiosidade: em agosto passado, no seminário que proferi em Fortaleza, comentei a citação de Lacan sobre Francis Ponge e falei da mimosa pudica. Em meu Estado, MS, a mimosa é chamada de Dorme-dorme. Os colegas cearenses deram dois nomes pelos quais o arbusto é conhecido no Estado: Acorda-Malícia-teu-pai-morreu. E também: Maria-fecha-a-porta-que-teu-pai-vem-bêbado. Enfim, de pudica, no Ceará, a mimosa virou malícia, outro deslizamento possível. E tem pai que não acaba mais nas nominações. Um brinde a poética cearense.    

[iii] Em algumas partes desse livro que consulto, o sobrenome está em inglês [Thurn and Taxis] e noutras em italiano [Torre e Tasso].

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