quarta-feira, 20 de outubro de 2021

Uma conversa no encontro de dois oceanos

 


            Um homem desconhecido com o qual conversei em um navio, próximo do ponto mais meridional da terra, depois da cidade posicionada no fim do mundo, contou-me que tinha ido até aquela cidade para turismo. Apaixonou-se por ela, pela língua e resolveu fazer dela sua casa. Voltou para Riga, na Letônia, organizou suas coisas e se mudou para Ushuaia dois meses depois. Abriu uma fábrica de sardinhas e agora era feliz nessa cidade escolhida pelo seu coração.  Está ali porque  todo eslavo que chegava à Patagônia, as agências de viagem o chamavam para ser intérprete de russo. Logo essa língua, que não era a sua, era a do vizinho conquistador. Já tinha outras duas, a maternal e o castelhano que tinha amado, não essa. Mas ganhava dinheiro falando russo. Estava no navio como intéprete de um casal de Moscou. E eu quis saber mais sobre Riga.

Isso aconteceu anos atrás, antes de eu ir até a Estônia e navegar pelo Mar Báltico. Quando estive tão perto de Riga, ficava lembrando do que ele tinha me contado sobre ela. Cheguei a Tallin, a trezentos quilômetros de Riga e não quis ir conhecê-la, a cidade abandonada por ele.

Com seus imensos olhos azuis, brilhando de alegria, contou-me que ainda acordava, às vezes e por segundos, e achava que estava no bairro em que morava na infância, o Zolitude. Eu perguntei se, em espanhol, era solidão – a sonoridade da palavra era tão parecida – e disse que sim. Depois se mudou e foi morar em uma casa perto da biblioteca da cidade, e também da ponte Akmens (anotei tudo que ele me falou em meu diário de viagem).  Depois dos segundos nostálgicos com a solidão da infância, acordava para sua cidade atual, para a casa de Ushuaia, em que, de uma janela do andar de cima, enxergava, à distância, a cordilheira reinando sobre tudo.

Fiquei pensando em alguns momentos, nos dias seguintes, sobre o que me contou sobre seus sonhos com o bairro da infância, o nome fazia parecer um chiste, chamava-se Zolitude. Meu interesse era freudiano. E lembro que cheguei à conclusão, à época, que sua saudade era do infantil perdido, não da cidade. Deve ter sido por isso que estando perto dessa cidade abandonada por ele, nem quis ir conhecê-la.

E lembrei novamente do letão de olhos azuis, anos atrás, pesquisando sobre os escritores da região báltica. Descobri que houve um letão aventureiro e caçador, que escreveu quatro livros sobre suas aventuras na América do Sul. Deixou Riga e foi conhecer a Argentina, no começo do século XX. Um tanto entediado com Buenos Aires, acabou chegando ao Centro-Oeste do país, veio caçar oncas-pintadas no Pantanal. Sasha Siemel foi dar uma palestra na Pensilvânia sobre suas aventuras nesse fim de mundo do Pantanal; casou-se com uma fotógrafa americana e foi morar com ela em Corumbá. Moravam em uma casa flutuante, ancorada às margens do Rio Miranda. Deu palestras e escreveu livros sobre suas errâncias.

Sasha Siemel, no começo do século passado, de Riga para o fim do mundo que era Corumbá, vivendo num barco, no Rio Miranda, escreveu um livro em que o garoto letão, que morava na Zolitude e passou a morar perto da biblioteca, e nela entrava toda semana, encontrou e resolveu retomar os passos do aventureiro escritor. Mas diferente do conterrâneo, gostou de Buenos Aires, da Argentina, e resolveu descer até o extremo sul. E fez de outro fim do mundo, o seu mundo. Esse romance que inventei, encadeando duas vidas, fiz para responder à pergunta que me surgiu: será que ele leu os livros de Sasha Siemel?  Um romance é a história de um destino completo, escreveu Macedônio Fernandez. Lembrei agora do portenho, já que pensei em Buenos Aires.

quarta-feira, 27 de dezembro de 2017

El patio de los vientos perdidos




Alguns meses antes de ir à Cartagena das Índias, verão de 2016, preparei-me para a viagem relendo Cem anos de Solidão, romance de Gabriel Garcia Marquez, ambientado nas ruínas e no calor sufocante de sua cidade amuralhada. Também reli meus livros de Álvaro Mutis, as aventuras de Maqroll, o Gaveiro, personagem onipresente em vários de seus livros, singrando com diferentes navios os mares e rios do mundo, sobretudo o mar do Caribe.
Pesquisando na internet, descobri um novo autor, Roberto Burgos Cantor, nascido em Cartagena das Índias, e que ambienta nela sua novela “El patio de los vientos perdidos”. Só com esse nome, que já é uma poesia, quis lê-lo. Quando estive em Cartagena, nas duas livrarias em que fui, não o encontrei. Nem em uma que estive em Bogotá. Mas não o esqueci. Como não consegui comprá-lo por esses sites de venda de E-books, quem sabe não o encontro em PDF nessa selva virtual? Também não tive sucesso. Pesquisando resenhas e comentários sobre o livro, encontrei o do escritor Cristo Garcia Tapia. Escrevi-lhe que procurava o livro de Burgos, se ele o tinha em versão digital, pois não tinha conseguido comprá-lo na Colômbia, nem no Brasil e nem importá-lo. Respondeu-me dizendo que conhecia o autor e iria me colocar em contato com ele. Assim o fez; de início, o próprio Roberto Burgos Cantor escreveu-me e, depois, uma pessoa indicada por ele – talvez sua editora – pedindo meu endereço e dizendo-me que me enviariam o livro.
Nem estava acreditando. Passaram-se uns dois meses, o livro não chegou e já estava meio obcecada com ele. Tinha até sonhado que estava sentada em minha poltrona de leitura, com ele às mãos, lendo-o em um domingo de sol e muito vento. Recebo um email de Adriana, com quem tinha trocado e-mails, dizendo que o livro foi enviado com o número errado de minha rua, tinha sido devolvido e estava em São Paulo. Deu-me o localizador dos correios. Liguei em São Paulo, localizaram-no para ser devolvido, disse meu endereço certo, mas o homem dos correios não podia fazer nada, iria seguir a burocracia e o livro voltaria à Colômbia. Eis “El pátio de los vientos perdidos” perdido para mim. Respondi para Adriana que quando fosse à Espanha iria compra-lo, pois já tinha verificado que estava editado lá. Mas o autor insistiu e pediu-me novamente o endereço. Mais dois meses e o recebo em meu consultório. Nisso tudo foi um ano.
Recebi “El pátio de los vientos perdidos” com uma dedicatória de Roberto Burgos Cantor: “Para Andréa, com a persistência de um abraço, e o desejo de que dessa vez ele chegue. Roberto”. Chegou. Demorou um ano, passou por endereços falsos e corretos, pela selva digital, pela ajuda de Cristo Tapia, e além da minha persistência, teve a do autor de que seu livro chegasse até mim.
E o livro chegou em uma edição comemorativa de 30 anos de publicação. Na capa, os elogios de Álvaro Mutis ao livro e uma frase de Garcia Márquez, dizendo que gostaria de ter podido escrever alguns capítulos desse livro. Depois de ler “El patio de los vientos perdidos” essa afirmativa é perfeita compreensível: o livro é maravilhoso, quase todo uma poesia. Germania de la Concepción Cochero abre um bordel em uma casa com um pátio aberto para o pântano, a mirar os caranguejos, os peixes pulando no ar no começo da tarde, a partir desse lamaçal podia-se contemplar o céu, espesso de garças e gaivotas, que ao acaso mandam sinais. A casa tomava como sua 200 milhas de mar, entre o pátio e a praia. Entre as populações ribeirinhas, nos canais do rio, escolheu as mulheres que trabalhariam em sua casa.
Para mim, a casa era a protagonista da novela. Era possível caminhar entre os caranguejos, na lama salgada, entre a casa e o mar, nessa casa em que as mulheres da vida prometiam uma vida melhor, ainda que só por alguns instantes, uma vida de ilusão, que combatesse as ruínas dessa cidade em que, em outro tempo, as muralhas protegeram as mulheres dos piratas - em que as roupas para secar sacolejam como bandeiras nos mastros, em que o vento com areia chicoteia as pernas.
O livro é todo escrito com poesia, a geografia do pátio e dos sentimentos é de uma beleza que chega a doer. Várias páginas li e reli inúmeras vezes, como se lê os poemas. Gostaria que todos vocês lessem e sentissem o que senti ao ler esse livro. Temo que esteja exagerando meu apego ao livro porque o quis muito tempo, esperei por ele muito tempo e chegou até mim depois de tê-lo perdido. Por isso citarei a seguir dois trechos que gostei demais. E cada um faz sua análise deles. Eu, por mim, já digo que não posso emprestar esse exemplar para ninguém: não sai da minha casa.
“...y si por lo menos lo décimos para espantar la de malas y no dejar que más adelante pasados los años nos coma el rencor por no ser lo que quisemos ser envejecidos de soledad sobreaguando em las babas de la rutina y la venganza del desconsuelo que nos impone la mentira de que todo en la vida es la mismísima vaina y la libertad de estar juntos maltratada se fui sin estropício ay remember es muy tarde y sería tonto abolir las dificultades las que callábamos em la creencia de que se perdía tempo em resolverlas y las saltamos piedrecita em el zapato que no se le pone nombre y nos tuerce el caminado...”.
E ainda mais um trecho de poesia: “...coincidimos en aceptar que este mundo no es el que nos merecemos que no lo inventamos remember que es maluco y nos toca mamárnoslo y él nos mama y no hay otro pero este no hay otro lo décimos hoy carcomida la ilusión por los castillos derruidos y la sensasión de no tener lugar nacía en el crecimiento del afecto que no cabía la estrechez nos destripaba y assistíamos al derrumbe del sueño convencidos de que no perderíamos el nuestro y jugábamos a sobreaguar será que la felicidade no existió remember que ansiamos algo que no se conoce que nadie ha probado y nos confundimos y vamos de pretexto en pretexto parapetos y estuve contento el  contento de que tú existieras y nos hubiéramos visto y estabas ahí....”.
E se lê assim, sem ponto, sem vírgulas, sem espaço, com a mesma ânsia posta nas frases de quem se destripa a procura da felicidade. Existe ou não existe? Pergunte-se sem ao menos respirar, rapidamente, diante de um mar revolto, de um lamaçal repleto de caranguejos, de um aguaceiro de dezembro, de garças e gaivotas, sob o céu do Caribe, de uma cidade amuralhada, corroída pelas ruínas, em um pátio de ventos perdidos onde as mulheres vendem o corpo e também as ilusões.
O livro demorou um ano para chegar até mim, pegou atalhos, retornou ao seu país, voltou para mim. E, chegando ao seu destino, eu o li de um fôlego só. Escrevo-lhes para dizer que se algum dia estiverem diante de alguma livraria e encontrarem “El patio de los vientos perdidos” comprem sem pestanejar. É uma lástima que não esteja traduzido em português. Quanto ao meu exemplar, já aviso, avaramente, não empresto para ninguém.


segunda-feira, 11 de setembro de 2017

Julian Barnes, um escritor transgênero

                Ano passado conheci um homem que aprecia música clássica e é um grande conhecedor dela. Eu, que no máximo gosto de algumas sinfonias de Mahler, Wagner e as estações de Vivaldi, escutei tudo o que ele me sugeriu. Paramos de nos falar ano passado e voltamos somente mês passado. Ele me indicou alguns vídeos no YouTube de um compositor que adora: Chostakovich. Inclusive assisti a abertura do filme De olhos bem fechados, de Kubrick, com música de Chostakovich.
Peguei para ler o livro O Ruído do Tempo, de Julian Barnes, e seu personagem é Dmitri Dmitrievich Chostakovich. Descubro que ele foi o mais celebrado compositor da União Soviética e também o mais coagido e intimado pelo Estado. Em janeiro de 1936, Stalin assistiu a apresentação da sua aclamada ópera Lady Mcbeth de Mtsensk, em Moscou, e saiu intempestivamente da apresentação antes do final. Dias depois apareceu uma crítica no jornal Pravda chamando a obra de Chostakovich de chinfrim, escrita provavelmente pelo próprio Stalin.
O Ruído do Tempo é um livro que mostra perfeitamente como a arte colide com o poder. Um episódio dentre muitos contados nesse romance. Em 1950, quando Chostakovich foi a Nova York, como enviado russo para um congresso sobre a paz, chegou a cogitar em se jogar da janela de seu quarto de hotel. Um ano antes, um russo em busca de asilo o tinha feito. Ele, Chostakovich, cogita a possibilidade, mas não o faz também porque sabe que o Estado destruiria sua obra e teria seu nome colado a alguma história deturpada que construiriam. Tentou viver e construir uma obra em um regime que não permitia os amores, a liberdade, em que dizer a verdade se tornou impossível.
Em um evento promovido pelo jornal Guardian, a propósito da publicação de O Ruído do Tempo, Julian Barnes questionou porque o designaram como “romance biográfico”. Segundo ele, todos os romances o são, são o estudo de uma vida, seja de Anna Karenina, de Madame Bovary ou de uma pessoa real como Chostakovich. E também sustentou que trabalhava de maneira instintiva, que não lhe interessavam os gêneros literários, que ele era um “escritor transgênero”.
O Ruído do Tempo é um livro maravilhoso, instrutivo de como as tiranias destroem a verdade, o amor, a liberdade. Barnes escreve que seu personagem esperava que a música o libertasse, e em determinado momento, que a morte o libertasse. Há um questionamento de a quem pertence a arte. Lenin escreveu que a arte pertencia ao povo. Barnes escreve sua tese sobre a quem pertence a arte e coloca na boca de seu personagem. A arte não pertence ao povo e ao Partido. “A arte é o murmúrio da História, ouvido sobre o ruído do tempo.”

Escrevo essa pequena resenha para todos, mas em primeiro lugar para meu quase amigo que me apresentou Chostakovich. Para retribuir a gentileza, apresento-lhe esse Ruído do Tempo, de Julian Barnes.

quarta-feira, 31 de maio de 2017

O dia depois de amanhã

           O fim do amor é como a explosão de um planeta. O outro não lhe quer mais, o amor que chegou ao fim para um, acaba com o mundo de quem ainda ama.
           A explosão dos polos. Geleiras derretem. O caos. O gelo derretido se transforma em grandes ondas. Você é arrastado. Um turbilhão indescritível de material se chocando. O fim do mundo.
           Submerso, no fundo de tudo que se decompõe, é preciso emergir do caos que o rodeia. O dia seguinte ainda será uma geleira decomposta? E o dia depois de amanhã?
            Uma promessa descumpriu-se. O amor é uma promessa: jura que vai amar, que vai estar junto, que vai caminhar junto, que vai casar e depois desonra tudo.
            Como continuar sendo quem se é com tanta desonra?
            E no dia depois de amanhã, quando já tiver destituído esse amor e encontrar o próximo, o que trará para o novo dos destroços do velho mundo explodido, dos polos derretidos, dos mares revoltos?
             Um mundo se acabou, uma nova ordem se fez a partir do caos, o que disso tudo serve para o dia depois de amanhã?

domingo, 12 de fevereiro de 2017

Panamá Papers: a corrupção e o cinismo são ilimitados




          Em parte de minhas férias li esse livro escrito pelos jornalistas alemães Bastian Obermayer e Frederik Obermaier. Os dois jornalistas do Süddeutsche Zeitung, o jornal alemão, começaram a receber, de uma fonte anônima, e-mails com documentos do Banco do Panamá Mossack Fonseca. E a cada dia recebiam mais e-mails com documentos scanneados de aberturas de contas, troca de mensagens, operações financeiras de milhões e bilhões de dólares, etc. E foram percebendo a importância do material recebido, políticos, empresários e artistas do mundo inteiro com dinheiro escondido no banco do Panamá. E perceberam a gravidade da evasão de divisas em milhares de offshores mantidas pelo banco.
       Os documentos chegaram a mais de dois terabytes e não teriam como ler e investigar tudo. Começaram a trabalhar com um Consórcio Internacional de Jornalistas de Investigação (ICIJ), e depois foram convidando jornalistas de todo o mundo para participar dessa pesquisa inicial. Mais de 100 jornalistas, alguns brasileiros, inclusive, estiveram nessa pesquisa denominada Panamá Papers.
         Os parentes próximos de praticamente todos os ditadores da África têm contas com milhões de dólares na Mossack Fonseca. O melhor amigo de Putin, o violoncelista Sergei Roldugin, padrinho de sua filha mais velha, tem offshores com bilhões de dólares. Só em uma operação, um banco de Malta, recebeu dinheiro de Moscou e enviou à Mossack 200 milhões de dólares. Os filhos do primeiro ministro do Paquistão têm milhões em contas lá. A mulher do primeiro ministro da Islândia também – ele pediu demissão do cargo ano passado, quando o escândalo veio a público. Todos os dirigentes da FIFA têm também. O cunhado de Xi Jinping, o presidente da China também.
          Em função de uma investigação interligada entre a Argentina e o Estado de Nevada, nos EUA, os dois jornalistas se debruçaram sobre os papéis em busca de evidências de que Cristina Kirchner e seu falecido marido tivessem conta na Mossack Fonseca, sendo culpados de evasão de divisas, confirmando a suspeição da investigação judicial em curso. Não encontraram pistas e concluíram que o casal não tinha conta fantasma no Mossack Fonseca. Mas Maurício Macri tem. Duas. E Lionel Messi também. No nome dele e de seu pai.
        O pai de David Cameron também tem. O ex-primeiro ministro britânico respondeu aos jornalistas do SZ que a conta de seu pai não dizia respeito a ele, não tinha feito nenhuma movimentação nela. Mas não foi bem isso que os jornalistas descobriram.
              Minha grande decepção: o filho de Kofi Annan também tem. Logo ele que sempre criticou tanto a evasão de divisas e seu efeito catastrófico para o povo africano. Um continente tão rico quanto injusto, com ditadores milionários e o povo morrendo de fome.
               Uma história do livro que achei uma lição do tanto que alguém pode ser cínico. O quadro de Modigliani ´O Homem sentado apoiado em uma bengala´ foi roubado pelos nazistas de um colecionador judeu, em Paris, durante a II Guerra Mundial. Sumiu e apareceu em diversos momentos nas últimas décadas. Anos atrás apareceu em uma exposição de uma galeria em Nova York. Maestracci, o herdeiro do colecionador, entrou na justiça americana pedindo o quadro ao dono da galeria que o expôs, a Nelly Nahmad Gallery. Nelly Nahmad, o milionário, responde diante de um juiz que o quadro não era dele, estava emprestado de uma firma chamada International Art Center. Com isso, Maestracci retira o processo. Com o Panamá Papers, ano passado, se descobre que essa firma tem conta no Mossack Fonseca e pertence a Nelly Nahmad. Como alguém tem a coragem, o cinismo de, diante de um juiz, e do herdeiro de um quadro em que seu proprietário foi roubado pelos nazistas e, provavelmente, foi perseguido, dizer ‘o quadro não é meu’, sendo seu?
          Também se percebe que muitos milionários abrem firmas e contas fantasmas para comprar mansões, iates, obras de arte etc. Não vamos tão longe, Joaquim Barbosa, o ex-ministro do STF comprou um apartamento em Miami no valor de 335.000 dólares, abrindo offshore na Mossack Fonseca. E sem pagar o imposto de transferência do dinheiro. Isso nem aparece no livro. É coisa tão pequena diante dos escândalos listados lá. Mas pudemos ler isso na imprensa brasileira ano passado, quando o escândalo estourou. É só digitar no google Joaquim Barbosa Panamá Papers e a história está toda lá.
              E também encontramos no google a lista de todos os políticos e empresários brasileiros que tinham conta lá. O primeiro deles, Eduardo Cunha.
                 Enfim, com tudo isso quero dizer que é muito instrutivo ler esse livro. Indico a todos. A corrupção gigantesca e permanente de tantos seduzidos pelo poder e pelo dinheiro, sem o mínimo de ética e de respeito às leis está tão evidente. Dá nojo saber, mas não se pode virar as costas a isso.

terça-feira, 17 de janeiro de 2017

Amanhã, com a chuva, será outro dia



Os Tambores da chuva, de Ismail Kadaré, é um livro para mostrar que um poderoso exército pode fracassar diante da determinação do inimigo. É para mostrar que toda dominação tem seus limites e, creio eu, que numa guerra o ser humano mostra o seu pior, sua crueldade, sua barbárie, seu desprezo pelo próximo e, mais ainda, para o estranho, estrangeiro, cristão, muçulmano, outro, héteros, o diferente. E para qualificar essa baixeza do ser humano-guerreiro não serve nem ao menos dizer que vira animalesco, pois os animais não mostram vingança, crueldade, vaidade. Numa guerra intestina, o ser humano é humano e não animalesco. E sempre perde, todos perdem. Assim entendi o romance. Se é que se pode tirar uma moral da guerra.
Na segunda metade do século XV, o exército otomano faz um cerco a uma fortaleza cristã na Albânia, pequeno país dos Balcãs. É a cidadela do herói nacional albanês Gjergi Kastriot Skënderbeu. Sei pela história que essa fortaleza cristã defendida por Skënderbeu foi atacada quatro vezes, no período de vinte e cinco anos, e só sucumbiu na quarta vez. O cerco contado no livro ocorreu depois da tomada de Trebizonda e antes da de Constantinopla pelos turcos. Então, no começo do livro, quem sabe um pouco da história da Albânia, já sabe que esse cerco será fracassado e que os turcos, ao final, recuarão derrotados.
O paxá Tursum, comandante-chefe do cerco, posto como um general para o ocidente, precisa conquistar a cidadela para não cair em desgraça junto ao sultão. Estão mais de três meses nesse cerco, já tentaram quase tudo. Um novo e moderno canhão que iria derrubar os muros. Não derrubou. Várias tentativas de soldados invadirem subindo pelos muros; bolas de piche catapultadas para dentro da cidadela. Os turcos constroem um túnel, os albaneses percebem e o afundam com todos os soldados que estavam nele sendo soterrados. Nada funcionou. Então a cúpula dos assessores do paxá, junto com o próprio, decide o próximo passo: infectar animais com doenças e jogarem para dentro da cidadela. O risco é que uma peste negra – outra, pois tinham vivido recentemente uma – espalhe-se pelo mundo. Mesmo assim, tentam: ratos contaminados por doenças são jogados para dentro da cidadela. Não se sabe exatamente como, mas os sitiados conseguiram debelar a ameaça. Os ataques são ferozes, porque o paxá é um homem encurralado. A gente se pergunta quem está mais encurralado, os que estão nas trincheiras ou os que estão presos na cidadela. Kadaré escreve: “não há ataque mais feroz do que aquele desferido por um homem encurralado”.
E assim se passaram mais de três meses, o verão está terminando, o calor atroz começa a ceder e a cidadela continua impenetrável. A última tentativa é descobrir o aqueduto e cortar a água para a cidadela. Depois de muito tentar, cavando, conseguem e cortam a água. Passam-se alguns dias. Abrem a barriga dos soldados capturados nas torres da cidadela e o médico turco já percebe a falta da água. Se chover, os albaneses se fortalecem novamente e eles, turcos, terão de recuar. Isso justifica o nome do livro: os tambores, numa madrugada, anunciam a chuva. Tursum sabe que acabou, acabou o cerco e acabou sua vida. Sua desonra é tanta que antes de se matar, chama uma das mulheres de seu harém, grávida dele, e pede que coloque no filho que terá seu nome e conte a ele a história de quem ele foi. E se mata. Nem essa glória seu nome terá, pois no difícil trajeto de volta para casa, no chacoalhar das carroças, a jovem perde o bebê. Nessa parte, o autor foi bem cruel com seu personagem: não sobrou a ele nada, nem descendência, nem nome, nada.
Dois pontos principais que gostaria de marcar. O primeiro é uma pergunta que o intendente-chefe turco faz ao cronista da guerra: O projeto de extermínio de um povo é realizável? E ele mesmo, intendente, responde: mais do que destruir fortalezas, é preciso desnacionalizar os povos e fazer sua língua e religião desaparecerem. Qual é mais importante tentar apagar, a língua ou a religião? Conclui que é a língua e para exterminar um povo, sua língua deve ser proibida de ser escrita. É difícil proibir de ser falada, mas de ser escrita é possível. Essa é a verdadeira dominação que o Império Otomano sempre tentou em todos os povos conquistados: apagar a língua. Skënderbeu, o herói albanês é um exemplo disso: ele e os três irmãos, filhos de um nobre albanês, foram raptados ainda garotos e obrigados a se aculturarem. Um se matou, outro se tornou eremita e Skënderbeu torna-se soldado do exército turco. Começa a construir a fama de excelente soldado nos campos de batalha. Falava perfeitamente a língua turca, já era um oficial até conseguir uma chance de fugir e voltar ao seu povo. Creio que essa é a discussão que Ismail Kadaré traz e que responde mais ou menos assim: não se apaga a língua materna, não se extermina o passado, as raízes de um sujeito.
E o segundo ponto que quero marcar é como as mulheres são objetos a serem consumidos em todas as guerras. Enquanto esperavam a conquista da cidadela, os soldados turcos saqueavam as vilas vizinhas e as mulheres eram capturadas para o gozo sexual desses tensos soldados no campo de batalha. Eram tão continuamente estupradas que raramente duravam mais do que dois dias. Quando o vencedor invade, as mulheres do povo subjugado são estupradas. Essa história acontece em todas as guerras, em todos os séculos. Mês passado, no facebook estavam todos se escandalizando porque os familiares com jovens pediram permissão para sacrificá-las antes que os soldados sírios rompessem o cerco em Aleppo. Por que isso não muda através dos séculos?

Com esses comentários nem preciso dizer o quanto o livro é bom, e se vocês me acompanharam na leitura até aqui, não podem deixar de ler Os tambores da chuva. Torço muito para que Ismail Kadaré ganhe o Prêmio Nobel de Literatura desse ano.

sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

O mestre e a Margarida


         



      O diabo chega a Moscou comunista de 1930 e começa seus intentos – que ninguém sabe bem qual é - destruindo primeiramente os escritores. Os dois primeiros comunistas poetas que descobrem que o estrangeiro Woland é o capeta perdem a cabeça, um literalmente, decepada por um bonde, e o outro, enlouquecendo. Ninguém acredita quando o poeta diz que conversou com o capeta e ele esteve presente quando Pôncio Pilatos deu sua sentença. O poeta fica confinado no manicômio e uma das coisas que descobre lá é que era mau poeta e deve parar de escrever.    
          E o diabo, que chama-se Woland, é um estrangeiro e não russo, chega a Moscou acompanhado de seus anjos decaídos e outras criaturas demoníacas: Behemot, Abaddon, Azazel, uma feiticeira ruiva, que sempre andava nua, de beleza perfeita se não fosse por uma cicatriz horrenda no pescoço, e outra figura patética, Korôviev, um baixinho, de óculos e terno xadrez, todo meticuloso. É a descrição perfeita de um burocrata. Este é o séquito infernal que bagunçará os alicerces de Moscou. Behemot é descrito no Livro de Jó como um monstro gigante ou como um leão monstruoso ou um grande touro. Segundo a tradição judaica, esse “animal” é o monstro da terra, em oposição a Leviatã, do mar. Pelo que eu pesquisei, não é um servo do diabo, mas no romance de Mikhail Bulgákhov assim o é, e mostra-se como um enorme gato. O enorme gato Behemot é um dos servos do satanás.
     Em “O mestre e a margarida”, Mikhail Bulgákov faz uma sátira do regime comunista, uma ferrenha crítica disfarçada, mas tão disfarçada, que o que ele denuncia está às claras: no seu show no teatro da cidade, Woland deu dinheiro estrangeiro para os “pobres” moscovitas, ofereceu novos vestidos e perfumes estrangeiros para as mulheres, que aceitaram imediatamente. Quando saem do espetáculo, na rua perto do teatro, os vestidos desaparecem e estão nuas – versão que Bulgákov dá para A nova roupa do rei – e o dinheiro era dinheiro de tolos, pois vira papel. E um dos ajudantes do diabo sai com essa pérola: os moscovitas continuam os mesmos. Forma que o autor usa para mostrar a hipocrisia: apoiam publicamente o comunismo com seu desprezo pelo dinheiro e consumismo dos “inimigos”, mas é disso que gostam. E nesse show todas as hipocrisias são reveladas, os corruptos, os que têm amantes, os que roubam o partido.  Depois, a investigação concluirá que foi uma hipnose de todos que estavam no teatro, mesmo quando tantos funcionários do teatro dizem que é coisa sobrenatural, do mal, não podem acreditar: não acreditam em Deus e nem em Diabo.
            Enfim, o diabo serve para mostrar as incongruências dos moscovitas, do comunismo, de Stalin. Fiquei pensando quem seria o diabo: o diabo é Stalin? O diabo foi o comunismo? É o ser humano com suas hipocrisias e falsidades? E gana de poder?
            Só quem não se corrompe pelos oferecimentos do diabo é Margarida, que sofre porque é casada com um homem a quem não ama, que lhe dá todos os bens materiais que ela precisa, perfumes e roupas, pois é um homem importante na hierarquia – mais uma vez Bulgákov mostra a hipocrisia do partido – e ama um escritor a quem não pode ter, pois está desaparecido. Ela vive um inferno, pois não esquece o Mestre um minuto. O escritor amado por Margarida é assim designado por ela. No romance, então, o mestre não é o diabo. Parece-me até mesmo, na segunda parte do livro, que o mestre é o amor. Margarida quer esquecer esse amor, se não pode reencontrar o Mestre, que o esqueça, que volte a pensar em outras coisas, a encontrar alegrias em outras coisas na vida. Margarida queria o dom do esquecimento da dor de um amor. O diabo envia Azazel para lhe oferecer um pacto. Ela aceita, mas ao invés de esquecer o Mestre, o diabo lhe oferece uma nova tentativa de fazer dar certo o amor, com a condição de que ela ocupe por uma noite o lugar de acompanhante dele no baile anual do Inferno. Essa parte é hilária. Margarida vira Rainha Margot, a recepcionar todos os moradores do Inferno.
E depois Margarida e o Mestre se reencontram e podem ser felizes juntos. Mas nem assim eles conseguem o céu. A partir daqui não conto mais. Para não tirar a graça de vocês lerem a parte final, não conto mais nada.Sim, porque vocês têm de ler esse livro. Ele tem quase um século que foi escrito, mas não perdeu o humor. Eu ficava rindo sozinha em minha sacada no final de semana passado enquanto o lia. Recomendo muito a leitura.