No dia trinta de dezembro de 2014,
peguei um voo em Santiago, no Chile, para chegar a Punta Arenas, na região de
Magalhães, Antártida Chilena. Sozinha, pousaria nessa cidade no extremo sul e
pegaria um ônibus para chegar a Puerto Natales, cidade pequena, ponto de parada
para ir ao Parque Nacional Torres del Paine. Assim o fiz. Cheguei a Punta Arenas
em um verão austral de 10 graus positivos, temperatura razoável, se não fosse
por um vento desvairado que entra pelos poros de seu corpo e se acomoda até
entre seus átomos. Não fosse por isso, a temperatura seria completamente
aceitável.
Eu estudo muito antes de ir para um
destino distante. E mais ainda quando é tão inóspito como esse. E não leio
apenas os livros de história e o que os poetas e escritores escreveram sobre o
lugar. Faço coisas práticas para a viagem: imprimo os mapas, leio os guias de viagem
e entro nos sites e blogs de viajantes. A internet tem sido um mapa precioso
para me guiar. E também meu celular: liguei-o e já me disse onde estava: Região
de Magalhães, Antártida Chilena.
Já sabia que ao sair do aeroporto,
teriam várias vans estacionadas à frente e elas levavam os turistas até as
companhias de ônibus. Três companhias fazem o trajeto entre Punta Arenas e
Puerto Natales, cada uma tem sua loja e seu embarque em locais separados, na
cidade. À frente do aeroporto, olhando as muitas vans, decidi por uma porque o
motorista me pareceu confiável. Fui até ele, até o momento só eu interessada em
contratar seus serviços. Minutos depois chegou um grupo com uns dez japoneses.
Eu não sabia qual a melhor companhia de ônibus, mesmo com tudo que tinha lido
sobre a viagem, mas os japoneses disseram para ele qual delas eles queriam. Eu
fui na onda: pensei “os japoneses são muitíssimos mais espertos do que eu”. Na
verdade, depois fiquei sabendo que era a companhia mais barata, não a de ônibus
mais confortáveis. Paciência. Na van, fui sentada ao lado do motorista, ele me
contando a história da cidade. Ao chegar à companhia de ônibus, os japoneses,
apressados como são, pegaram suas malas e saíram. Eu peguei a minha por último.
Não pagaram o motorista. Ele foi cobrá-los, o japonês a quem ele se dirigiu
apontou para outro, ele chegou nesse e pediu o dinheiro e o homem lhe deu o
dinheiro da passagem de todos. Fiquei pensando que lógica era essa: eles só
dariam o dinheiro se ele pedisse ou foi um puro esquecimento?
No ônibus, já acomodada em direção a
Puerto Natales, pude pensar um pouco na história do lugar. Punta Arenas começou
como um pequeno povoado, um ponto de apoio aos navegadores, logo depois que
Fernão de Magalhães entrou por um canal estreito, navegou por dias e saiu no
outro lado, no Pacífico. O primeiro homem que deu uma volta completa ao mundo,
de um canto ao outro. O mundo com seus mares e oceanos, ficou para ele, sem
fronteiras. Enquanto navegavam, avistaram muitos fogos na terra, fogueiras que
o povo nativo acendia para iluminar a noite e espantar o frio. Isso fez esse
desbravadores chamarem a terra de Tierra
del fuego. Em expedição futura, quando os espanhóis aportaram, encontraram
marcas de pés gigantes, o que deu origem ao mito do abominável homem das neves.
Os índios usavam sapatos grandes, feitos de pele e couro de animais, que lhes
permitiam se locomover melhor na neve. Quando os europeus descobriram isso, o
nome patagon e o mito, que tinham
construído para esses habitantes ainda desconhecidos, já haviam deixado
pegadas, fama. Os índios viraram os patagões, de patas grandes, embora não as
tivessem. Enfim, mostra que grande é a imaginação do ser humano.
A esse canal estreito que tinha
descoberto, Magalhães deu o nome de Canal de todos os santos: foi o primeiro
nome do Estreito de Magalhães. Esse português que renunciou a sua cidadania,
porque D. Manuel I teve mentalidade estreita e não quis financiar sua expedição
para os Mares do Sul. O rei espanhol Carlos V. o fez, deu-lhe navios, tripulação
e provisões, e acreditou em seu projeto de encontrar uma travessia que
permitisse ligar dois oceanos. Fernão tinha quarenta anos, por uma causa
renegou um rei, uma língua e uma nação. E a descoberta coube à Espanha, feita
por um navegador português. Tivesse D. Manuel pessimismo menor e maior visão,
hoje na Patagônia se falaria a nossa língua.
E tanto Fernão deu-se a essa causa que dela morreu, seis meses depois.
Ele e sua frota atravessaram o estreito e saíram no Pacífico, navegaram margeando
ilhas onde hoje são as Filipinas. Reduziram a velocidade para passar por outro
estreito, ao lado da Ilha Mactan. Foram atacados pelos nativos e Magalhães foi
morto em seu próprio navio, que ele escolheu o nome: Vitória. Perdeu a vida e
eternizou seu nome na história, pois o rei espanhol soube valorizar seu feito e
rebatizou o canal descoberto por ele, de Estreito de Magalhães.
Depois de Magalhães, a Patagônia
Chilena com seu estreito de Magalhães virou o grande atrativo dos navegadores,
única passagem de ligação entre o Pacífico e o Atlântico, até séculos depois a
engenharia humana fazer o Canal do Panamá. Anos depois de Magalhães, o pirata inglês
Francis Drake foi o segundo homem a fazer a volta ao mundo, atravessando o
canal. E para dar-se ares de importante, entrou no canal pelo Pacífico, foi até
o Atlântico e voltou para reencontrar o Pacífico e fazer dupla travessia de uma
vez só. E também deixou seu nome eternizado lá: o espaço de mar entre o
continente e a Antártida é chamado de Passagem de Drake. Essa passagem marítima
é onde se dá a pior navegação do mundo, as piores correntes que de lados
opostos se encontram e aumentam pelo pior vento do mundo. Só não sei o porquê a
Cartografia resolveu nomear essa parte do mar de Passagem de Drake se ele não
atravessou por lá e sim pelo Estreito de Magalhães. Enfim, Drake queria se dar
ares de importante na dupla travessia e os cartógrafos fizeram algo maior do
que ele mesmo, esse pirata destemido, fez: na escritura cartográfica o fizeram
navegar até mesmo onde sua coragem não o levou.
Assim, quando no hall do aeroporto de Punta Arenas, os agentes de viagem
vieram me oferecer cruzeiro para os Mares do Sul, se aproximando das banquisas
de gelo da Antártida, lembrei-me dessa história e respondi de jeito nenhum. Se
nem Francis Drake teve coragem para tal, vou ser eu? De jeito nenhum.
E depois de Drake, outros piratas e
frotas espanholas, holandesas, suecas e inglesas apareceram por lá. Em 1831,
Robert FitzRoy, o capitão inglês do HMS Beagle,
em sua segunda expedição ao fim do mundo, levou o naturalista Charles
Darwin e os mistérios das espécies do mundo começaram a ser decifrados.
Estou eu no ônibus olhando as
paisagens desoladas de uma planície quase infinita, com vegetação rasteira,
poucas árvores, retorcidas pelo vento a ponto de fazerem nós entre seus galhos,
umas tantas já mortas, outras lutando bravamente contra o vento para
sobreviver, pela janela pareceu-me que o terreno era calcário. Ali, naquela
planície, sobreviver é só para os fortes, os muito fortes. É uma paisagem
desolada. Nenhum restaurante, nenhum posto de combustível, quase sem
construções por duzentos e cinquenta quilômetros. Converso com uma mulher
sentada ao meu lado, mora em Puerto Natales, tem um curativo na mão esquerda.
Cortou-se. Os pontos foram dados no pequeno hospital de Puerto Natales, mas os
cuidados para não infeccionar, ela foi ter em Punta Arenas. Só nessa hora
fiquei com medo: se eu passar mal, tiver qualquer problema de saúde, nem meu
seguro Assist-Card daria jeito. Ela se surpreendeu por eu estar sozinha, disse
que minhas amigas chegariam em três dias. Trabalhava em um restaurante com uma
grande loja de artesanato e souvenirs,
disse-me que eles teriam ceia de virada do ano. No dia seguinte pela manhã, fui
lá e comprei meu lugar na ceia.
O taxista que me levou ao hotel
também se surpreendeu por eu estar sozinha e me deu seu telefone: se eu
precisasse de algo, poderia ligar para ele. Percebi que ficou um tanto
encantado por mim, mas foi muito simpático e gentil, guardei o telefone.
Dirigiu pela avenida costeira ao fiorde; o primeiro posto de combustível que vi
(a cidade só tem dois) foi da Petrobrás. No Hotel Saltos del Paine fui tão bem
recebida por uma atendente jovem, tão simpática e que me explicou tudo o
necessário. Com a mulher da mão cortada, de quem não lembro mais o nome, o
taxista e a jovem atendente Ana - o posto da Petrobrás também - esqueci a
sensação de desamparo que a paisagem desolada me deu. O hotel ficava a uma
quadra do porto, fui a pé em direção a ele e havia uma imensa placa de aviso de
como proceder em caso de tsunamis. O desamparo não voltou porque passei dias
ignorando a placa. Quando Márcia e Alba chegaram, Márcia, que é a pessoa mais
engraçada que eu conheço, me disse: você não nos disse dessa placa “corra que o
perigo vem aí” – minhas amigas estavam em Santiago e conversávamos pelo whats.
O Parque Nacional Torres del Paine é um
espetáculo, passamos um dia inteiro lá. Um conselho: há ônibus na estação
rodoviária da cidade, com preço de passagem de circular, que fazem um pedaço do
trajeto do parque, dá para se ir assim, sem gastar tanto. E não dá para achar
que um dia basta para conhecer o parque. Tudo é tão grandioso que nem cabe nas
fotografias. Mas já dei por visto.
Quando estava no ônibus, além da
planície quase infinita, ao longe, via-se a Cordilheira dos Andes, a separar a
Argentina do Chile e um monte mais alto, praticamente vertical, sem escarpas.
Confirmei com a minha vizinha de banco: é o FitzRoy? Ela me respondeu que sim.
Era para eles a fronteira, para mostrar que ali já era a Argentina. Outro
europeu que se eternizou ali: a pior montanha, mais vertical, pior escalada do
mundo, tem o nome do navegador Robert FitzRoy. Tudo na Patagônia chilena é o
maior: o vento, as marés, a montanha íngreme, a paisagem desolada. E o
desamparo humano. Se na Patagônia Argentina, Blaise Cendrars escreveu que a
tristeza imensa que sentia cabia na imensidão do lugar, nessa região do Chile,
Gabriela Mistral usou adjetivos parecidos: infinita, desolada. Escreveu: “O
vento faz de minha casa uma ronda de soluços, e de alaridos, quebra, como um
cristal, meu grito na planície branca, de horizontes infinitos, e vejo morrer
imensos ocasos dolorosos”. É parte de seu poema desolação. Depois de falar de
tantos homens europeus que foram para lá e deixaram seus nomes em tudo,
recordo-me de uma mulher simples, uma chilena do norte que foi ao sul de seu
país escrever os mais belos poemas sobre a Patagônia, uma professora e poetisa,
única mulher da América Latina a ganhar o Prêmio Nobel da Literatura. Sua frase
para designar a Patagônia: uma terra onde o vento não tem primaveras.
Ainda mais um conselho: enfrentem o
desamparo que tal viagem evoca e não deixem de, pelo menos uma vez na vida,
fazer parte dessa imensidão. Minhas idas à Patagônia não terminaram. Tenho de
ir ao parque El Chaltén, perto de El Calafate e ver FitzRoy de perto. Procuro
companhia para essa viagem, mas tem de ser das fortes.
Nenhum comentário:
Postar um comentário