No voo de
Lisboa a Madri, li no jornal El país, uma matéria intitulada ‘Bélgica se
evapora’. Um país, duas etnias. E a região de Flandres, nesse momento, mais
rica e industrializada, queria sua autonomia, se separar dos valões, de língua
francesa, a parte mais pobre. No dia seguinte, já no hotel em Madri, li a
notícia sobre um grupo de catalães que queimaram a foto do Rei Juan Carlos,
pedindo o fim da monarquia, em mais um movimento de busca de autonomia e
separação que a Catalunha já mantém há tempos. Sem falar dos ataques do ETA,
que a policia espanhola conseguiu, naqueles dias, frustrar, prendendo os
mentores que há anos estavam escondidos no sul da França. Esta busca de
autonomia, tendo como critério a raça, seria um reflexo da intolerância que vem
aumentando nos dias atuais? De uma busca da comunidade dos mesmos? Foi esta a
pergunta, a partir dessas três notícias de jornal, que me fiz no café da manhã
de meu primeiro dia Espanha, nessa viagem rumo ao sul.
Há nove anos escrevi essas considerações que
estão no parágrafo acima. Estava muito preocupada com o recrudescimento dos
movimentos sectários na Europa. Nem é preciso dizer que em quase uma década as coisas
estão piores.
Em Madri peguei
o trem à Andaluzia, fui conhecer a herança moura da Espanha: Granada, Córdoba e
Sevilha. Ernesto Sábato, o famoso escritor argentino, em seu livro “España en
los diarios de mi vejez”, contou sua ida a Madri em 2002, com mais de 90 anos e
acreditando que seria sua última viagem ao país. Ele sentiu certa decepção e,
sobretudo, uma nostalgia da Madri de outrora.
Sábato pegou o trem rápido em Madri e foi a Sevilha. Escreve sobre o
trem luxuoso e de grande velocidade, diferente do de suas lembranças, mas que
dava para ver os olivais e o entardecer. Também fui de AVE, o trem rápido de
que ele fala. Rápido, confortável, mas perdi os olivais ao entardecer.
Al andaluz é o
nome que os árabes deram à Península Ibérica. De 711, quando o chefe berbere
Tariq, cruzou o estreito de Gibraltar, até 1492 quando os reis católicos
reconquistaram a península, Portugal e Espanha foram governados pelos árabes. Fernando,
de Aragão, e Isabel, de Castela, estragaram com seu fanatismo essa civilização
na qual as três religiões monoteístas conviveram em relativa harmonia. Eles
expulsaram os árabes, e os que não foram expulsos foram escravizados – até
hoje, por exemplo, Lisboa tem efeito disso: o bairro dos mouros, que eram
escravizados, está lá, com o mesmo nome, a mouraria. Os judeus foram expulsos
também e a inquisição instaurada com muita ferocidade. Tinha estudado tudo isso
para essa viagem rumo ao sul.
Granada e
Córdoba são cidades em que a população é mais fechada para o estrangeiro em comparação
com Sevilha; vivem do turismo, mas mesmo assim, mantêm muita reserva aos que
vem de fora. Na estação de trens de Córdoba havia uma exposição sobre a
diversidade. Os dados apresentados sustentavam que 10% da população da Espanha
era de estrangeiros. Sem a mínima condição de provar o contrário, eu achei que
esse índice estava subfaturado. E mais, a Espanha se fez de estrangeiros: de
árabes, romanos, de europeus de outros lugares. É uma terra de muitas línguas
desde o começo.
Em Granada
enfrentei fila de madrugada para conseguir ingressos para entrar na Alhambra.
Acordei ainda escuro, peguei o ônibus e, sem escutar o som dos sinos de Granada
ao amanhecer, como Garcia Lorca diz em seu poema, esperei três horas para
comprar ingressos. Junto com mais dois mil turistas do mundo inteiro. Já dentro
da Alhambra, a fortaleza vermelha, eu tive um pouco de decepção, apostava que
estivesse mais preservada. Mesma decepção que em Córdoba: Medina Zahara estava
em restauração, pois estava quase toda destruída. Tinha lido um romance sobre
ela – À sombra das romanzeiras, de Tariq Ali – e esperava encontrar algo desse
passado que o autor retratara. No táxi, indo à estação de trens, o motorista
diz que se parece que os reis católicos destruíram esse passado mouro – creio
que ele percebeu minha decepção, sem que eu a tivesse formulado mais
precisamente – os mouros destruíram o passado romano.
A história da
mesquita de Córdoba é a seguinte: construída a partir do ano de 785, por
Abderraman I, e inspirada na mesquita de Damasco, sua fundação se sobrepôs à
igreja de São Vicente. E depois, Fernando e Isabel reconquistaram a cidade e
construíram a catedral sobre a mesquita. É a história de toda dominação: quem
vence, tenta apagar as conquistas do vencido. Anos depois de voltar dessa
viagem, lendo o escritor árabe mais famoso na atualidade, Eduard Said, eu
entendi essa história da igreja\mesquita de outra forma. Said diz que todas as
culturas se apropriam de coisas uma das outras, se misturam e que isso é uma
coisa boa. Penso mesmo que esse é o melhor tratamento contra o fanatismo, contra
a pureza étnica. A igreja de Córdoba, que antes foi uma mesquita, é a prova não
só do passado glorioso árabe na Europa, mas, sobretudo, dessa experiência única
que durante séculos resultou em boa convivência e não em intolerância. Também
isso tem de ser lembrado: o mundo gira, as coisas mudam e a história nos ensina
só no a posteriori. À época, os
intolerantes e fanáticos eram os católicos, que chamavam os outros de infiéis.
Em Córdoba,
entre uma sinagoga e a famosa mesquita\igreja, está a estátua de Maimônides,
filósofo e médico judeu, nascido lá, em Córdoba. Em Murcia nasceu o maior
filósofo de língua árabe, Ibn Arabi, que depois se mudou para Sevilha. Foi um
período da história em que a língua da literatura, da ciência e do poder era
árabe.
E cheguei a
Sevilha, o melhor da Andaluzia: a capital desse império árabe. Aberta para o
mundo, com sua torre de ouro à beira do rio Guadalquivir. Minha amiga fotógrafa
Alba enlouqueceu com a beleza de suas praças cheias de azulejos e tirou
centenas de fotos. Mas de Sevilha falarei em minha próxima crônica.
Já que estou
falando sobre intolerância, não poderia terminar com outro personagem que
Federico Garcia Lorca. O grande poeta foi uma das vítimas da Guerra Civil
Espanhola, assassinado à época da ditatura de Franco, por ser de esquerda e,
dizem alguns historiadores, também por ser homossexual. Nasceu em Granada, mas
amou mesmo Sevilha. A cidade para viver, segundo ele, era Sevilha e para morrer
era Granada. Escreveu sobre o vento sul, ardente, que tocava sua carne, sobre o
amor, a vida, a esperança, o azul do vento do sul.
Como ainda
hoje, a orientação sexual de uma pessoa continua sendo motivo para alguém assassiná-la,
terminarei com um poema de Federico Garcia Lorca. Em homenagem a ele, esse
grande poeta andaluz, e a todas as vítimas dessa absurda intolerância humana.
“Se o amor nos
engana, quem na vida nos alenta?
Se a esperança
se apaga e a Babel começa, que tocha ilumina os caminhos da terra?
Se o azul é um
sonho, que será da inocência?
Que será do
coração se o amor não tem flechas?
Se a morte é a
morte, que será dos poetas e das coisas adormecidas?”
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