O pirata inglês Francis Drake chegou
a Cartagena em 1586, com uma potente frota, desembarcou e saqueou a cidade
histórica. Chegaram à noite em Bocagrande e caminharam até a Ponta do Judeu,
onde é hoje o Clube Naval, encostado da cidade muralhada. Outro grupo de sua
frota tentou aportar à altura do Forte de Boquerón, mas não conseguiu. Os
piratas roubaram jóias e artilharia e Drake exigiu do governo 107.000 pesos
para não destruir a catedral da cidade com um tiro de canhão. O governo cedeu e
a catedral sobreviveu quase inteira, não fosse pelo sino roubado, que foi
derretido e transformado em mais um canhão para os corsários. Retomo esse
personagem histórico, presente em minha crônica anterior, sobre a Patagônia,
para descrever uma das tantas batalhas travadas aqui em Cartagena das Índias.
Assim como Drake, estou aportada em
Bocagrande, uma península que me leva até a cidade histórica, cercada por muralhas.
Bocagrande tem o mar de um lado e um lago do outro. Na verdade, é uma baía em
que o mar entrou e a terra quase o fechou aqui. Esse corredor de três ruas vai
do mar até a cidade histórica. Estou aqui atolada no calor cartaginês. Assim
Gabriel Garcia Marquez sentiu-se ao chegar a Cartagena: atolado no calor de uma
pensão, na cidade histórica.
Heróica, assim foi chamada essa cidade
que lutou pela independência dos espanhóis, com calor insustentável durante o
dia e noites frescas, conjugando dois tempos, o atual e um passado,
imorredouro, tem as construções mais lindas com as portas imponentes abertas
para o mundo. Aqui Gabriel Garcia Marques ambientou O amor nos tempos do
cólera. E dentre as muitas coisas que escreve sobre Cartagena, adjetiva-a como
feita de glórias carcomidas e ruínas. Estava com minha amiga Alba no Banco de
Colômbia para fazer câmbio, assistindo à televisão como proceder em caso de
terremoto, enquanto esperava chamarem minha senha, quando entrou um homem todo
vestido de um terno de linho branco e um chapéu Panamá e pensei: aquele deve
ser Juvenal Urbino. É o médico, marido de Fermina Daza, personagem de O amor
nos tempos do cólera. Nos arcos da Paróquia, lembro que foi ali que Lorenzo
Daza carregou pelo braço Florentino Ariza e lhe disse que não entregava a filha
Fermina, selando o impossível desse amor. Em uma de suas pensões, Gabo ficou
hospedado e começou a escrever seu romance: tem hoje lá seu rosto desenhado na
parede. Na universidade de Cartagena, começou a estudar Direito, mas a Heróica
deve ter lhe inspirado tanto que a Colômbia perdeu um advogado a mais para
ganhar um dos melhores escritores do mundo.
É uma cidade das frutas a serem
vendidas em cada esquina, sem fast-foods, com culinária maravilhosa. Come-se
muito bem aqui. Só o que me faltou foi ter ficado hospedada dentro da cidade
muralhada. É o meu conselho de hoje: mesmo que tenha de se ficar em hotel mais
simples ou em um hostel, é melhor ficar dentro das muralhas.
O povo é de um acolhimento, gentileza e
alegria ímpar. Uma mulher muito feminista não vai gostar do que vou escrever:
os homens são atirados, seguem-te na rua, chamam as mulheres de guapíssimas,
roubam beijam, oferecem seu coração, dizem-se apaixonados. É um certo jogo de
cena de conquista e flerte ao estilo do amor cortês, que espera que a mulher
diga o não, contrariando-o. Assim nessa ficção enganosa em que se diz a verdade
do desejo, os homens mostram-se calorosos e ardentes, como os homens do Caribe
devem ser. E as mulheres se sentem lindas e adoradas.
Para mim, depois que li O amor nos
tempos do cólera, Cartagena ficou como a cidade dos amores contrariados,
desatinados, sem futuro. Essa cidade cheia de histórias de guerras, de luta por
independência dos espanhóis, de batalhas vencidas e perdidas contra os ataques
de piratas, do cólera, da fome, do calor insuportável, será sempre um templo
aos amores impossíveis. E, por isso mesmo, eternos. Nada dura mais na vida do que o que não se realizou. É isso Cartagena
das Índias: uma cidade irrealizada. Escrevo para vocês em tempo real: quem tem
um amor irrealizado, venha viver alguns dias sua ruína de amor nessa cidade de
ruínas. Quem não tem, traga sua ruína alguns dias para cá. De qualquer forma,
para todos, venham para cá. Quanto a mim, eu não volto para casa.
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