Sempre a
Bélgica ficará para mim como um lugar de muitos dias nublados e frescos, de
caminhadas pelo campo, de fotos tiradas pelos caminhos, de canais e crepes, de
uma língua tão difícil que nunca consegui aprender. Estive lá em diferentes
momentos, nas várias estações do ano e escolhi a primavera como a mais bonita.
Estive lá
antes de Theo e depois dele. Com ele foi melhor, conheci o país e andei por
muitas cidades. Em algumas, literalmente. Ele registrou-me em um clube de
marcha atlética, participei de várias. Andei mais de cinquenta quilômetros em
três marchas, em três cidades diferentes.
Para mim as
quatro cidades que mais gostei de conhecer: Gand, Damme, Tongeren e Dinant. No
Século X, uma violenta tempestade varreu a costa do Mar do Norte e abriu um
canal perto da cidade de Bruges, ao final desse canal se formou uma vila de
pescadores. Assim surgiu a cidade de Damme. Pequena, linda, rodeada de moinhos
e canais; do alto da torre da igreja, avistei a cidade de Bruges e o Mar do
Norte. A beleza de Tongeren não enche tanto os olhos, mas reconheci seu grande
valor histórico. Foi entreposto dos romanos, via de comunicação entre os vários
reinos conquistados. Mas ali os romanos encontraram um povo nativo bravio, que
ofereceu resistência. Ambiorix colocou Júlio Cesar para correr. Uma vez, pelo
menos.
Dinant é para
encher nossos olhos de beleza, construída à beira do rio Meuse, com uma
catedral colada a uma grande rocha, cheia de flores e casinhas lindas. Mas foi
palco de uma batalha horrível na I Guerra Mundial. Ela foi capturada pelos
alemães, e contra-atacada pelos franceses. Eles combateram na cidade. Os
alemães incendiaram vinte civis. Escrevo só para que vocês não pensem que é
novidade do Estado Islâmico essa barbárie que é incendiar pessoas. E depois, os
alemães mataram 674 civis desarmados, novamente cidadãos de Dinant.
E,
finalmente, Gand. Cidade bonita, repleta de canais, com arquitetura gótica
abundante, uma catedral imponente, várias construções imponentes, evidenciando
uma cidade que já foi das mais importantes da Europa, dos Séculos XI ao XVI.
Nela nasceu e foi batizado Carlos V, o Imperador do Império Românico-Germânico.
É a cidade de Theo.
Andei muito
pelo país, entre as torres de Bruges e Gand, sob o céu flamengo, com o vento
forte do Mar do Norte no rosto. O país plano, o céu flamengo, o vento do Mar do
Norte, o território mapeado entre as torres de Bruges e Gand, são as marcas que
Jacques Brel coloca de seu país em suas músicas. Jacques Brel é um cantor de
língua francesa muito conhecido, inclusive no Brasil, sobretudo por sua música Ne me quitte pas. Eu não sabia, antes
dessas viagens, que ele era de família paterna flamenga e que compôs essa
música em flamengo, depois traduziu para o francês. Temos uma versão em
português dela, cantada por Raimundo Fagner.
A Bélgica é
uma junção territorial de dois povos, duas línguas. Os valões falam o francês e
os flamengos, da região de Flandres, falam o flamengo, que é um holandês com
galicismos. Perguntei a Theo se a diferença entre o holandês falado na Holanda
e o falado em Flandres era muito grande. Resposta: pelo que estou estudando do
português, a diferença é menor do que o português de Portugal e do Brasil.
Em Bruxelas,
eu adorava andar pelas ruas próximas da estação de trens. No geral, ruas
próximas a estações ou rodoviárias não são muito cheirosas, mas em Bruxelas
cheiravam a chocolate. E não qualquer chocolate, o verdadeiro chocolate belga,
o melhor. Depois da estação, subia as escadas e virava à direita, seguia pela
Rua Kantersteen e encontrava uma das melhores lojas de chocolates, que fazia um
chocolate artesanal desde 1919, o cheiro maravilhoso inundava o quarteirão
todo. Nenhuma cidade do mundo por onde andei tem esse cheiro. Bruxelas é doce,
cheira a chocolate por tudo.
Estávamos, eu
e Theo, jantando em um dos restaurantes da Rua de Bouchers e ele começou a me
contar histórias dessa rua de restaurantes, de como ela era há trinta anos.
Sentia uma nostalgia da Bruxelas de outrora, com menos trânsito, onde todas as
pessoas se conheciam, se cumprimentavam. Contava-me histórias da Bélgica da
época em que seus pais eram vivos. Contou-me histórias da II Guerra Mundial que
lhe foram contadas por seu pai, quando ele era pequeno. Eu lhe disse que isso
tinha de ser escrito, tinha que se transformar em um livro. No ano anterior, eu
havia publicado meu primeiro livro e estava esboçando umas ideias para o
segundo, estava pesquisando sobre a II Guerra Mundial para um capítulo desse
segundo livro. Por isso meu segundo livro foi dedicado a Theo. Por isso e pelo
amor de outrora. Quando tivemos essa conversa durante o jantar, ele pediu-me
que o ajudasse a escrever esse livro nostálgico de seu país de antes. Disse sim
e passei a anotar tudo que me contava. Tenho isso ainda comigo: apontamentos
para um livro futuro que não existiu, memórias, cenas da vida desse homem e de
seu pai, empobrecido e humilhado durante a guerra, recortes de vidas que não
foram minhas e nunca serão. O que fazer com esses retalhos de um livro
inexistente sobre a Bélgica?
Continuo me
interessando muito por esse país, sua capital, a Grand Place tão milenar, suas ruas e seus invernos gelados, com
flocos de neve que correm na horizontal a te perseguir pelas ruas. Sinto
saudades dessa língua tão difícil, que não consegui aprender mais do que
algumas palavras, de sua culinária maravilhosa, de seus chocolates
insuperáveis. Mas, sobretudo, sinto falta das pessoas, de sua curiosidade
contida, de sua reserva um pouco medrosa, de seus sorrisos envergonhados. Miguel
Souza Tavares, no romance “No teu deserto”, escreve que há viagens das quais
nunca regressamos. Tudo está em mim,
ainda. Intensamente. Não se esquece um lugar onde se foi feliz.
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