Era uma vez
um sábado ensolarado de um mês de maio de uma primavera na Bélgica. Começo
assim, como se começam os contos de fadas, pois Monschau é uma cidadezinha
alemã de contos de fadas, congelada em um tempo medieval, com suas casas de
madeirame, dividida por um riacho e com calçamento de séculos passados. Tudo
nela aspira a ser de outra época, tudo nela parece ter saído de um livro de
estórias infantis.
Monschau fica
na Alemanha, do outro lado da fronteira com a Bélgica, na província da Renânia
do Norte-Vestfália. Está localizada na Serra Eifel, uma cadeia de morros que
aspira a ser montanha, mas não chega nem a setecentos metros de altura. Deixando a cidade de Eupen, na Bélgica,
passa-se pelo Parque Natural Hautes Fagnes, deixamos para trás as Ardenas
Flamengas e chegamos ao Eifel. É uma região de florestas e colinas, e casas no
campo à beira da estrada regional, e muitas flores. Dizia a quem guiava o
carro: pare aqui, por favor, vou tirar uma foto. Não só uma, mas várias vezes
pedi o mesmo. Mais alguns quilômetros nessa estrada reta e quase plana, repleta
de árvores tão floradas que se intrometiam nos dois lados da pista, e de flores
silvestres que adocicavam o ar, e cruzamos a fronteira: uns vinte quilômetros
de minutos depois, chegamos a Monschau.
Quando se
está em Gent, na Bélgica, não é longe. Duas ou três horas de viagem e chegamos.
Um bom motorista e que conheça o caminho também se faz necessário. Senão se vai
pela rodovia federal e perdem-se as estradas estaduais e vicinais e perde-se,
também, a beleza do caminho. Saímos de Gent e paramos para tomar café perto de
Bruxelas. Em Gent se falava flamengo, nessa parada, perto de Bruxelas, francês.
Seguimos pela estrada que vai a Liège. Depois seguimos por uma estrada
regional, a E 61, e chegamos a Eupen. É a última cidade na Bélgica antes de
entrar no parque natural e cruzar a fronteira com a Alemanha. Nessa cidade,
ainda na Bélgica, não se falava nem flamengo nem francês e sim alemão. Gent,
Bruxelas e Eupen, três cidades de um país e se falam três idiomas diferentes.
Como eles se entendem? Não se entendem. Eupen é uma cidade pequena, menos de
vinte mil habitantes, muito antiga e sem cor. As casas foram feitas de blocos
de cimento marrom e cinza e assim ficaram com a passagem dos séculos. Sem
graça. Pode-se perfeitamente, depois de estar com os olhos cheios da beleza do
caminho, passar por ela sem parar. Continuamos.
Depois de
Eupen, segue-se pela N 67 e atravessa a fronteira e, em seguida, está Monschau.
É organizada para receber os turistas: na entrada da cidade está o
estacionamento para os ônibus e carros. Tudo lotado. Não fomos os únicos a
desejar passar um sábado de primavera no Século XVIII. O riacho que atravessa a
cidade é, na verdade, o rio Ruhr. Quando cruza Monschau, ele é estreito e
pequeno, um pouco mais que um filete de água, porém em alguns lugares mais
adiante, é bem caudaloso, expande-se e alarga e vai morrer no Reno. A cidade vive
da manufatura de objetos de vidros e da fabricação de mostarda. A fábrica de
mostarda tem mais de cem anos, mas não senti nenhuma vontade de visitar. Mas
pode-se experimentar a mostarda pelas lojas da cidade. E também vive do
turismo.
Andamos pelas
ruas de calçamento do Século XVIII, tiramos fotos da Casa Vermelha, construída
em 1752 por Johann H. Scheibler. No centro da cidade, uma praça, o riozinho,
uma colina acima, com as ruínas de um castelo, muitos cafés, o cheiro de
chocolate quente se esparramando por toda a praça. E muitas lojas de artesanatos,
muitas roupas de cama, mesa e banho bordadas de rendas. Muito lindas, mas não
comprei nenhuma, pois se trouxesse para meus amigos, iriam achar que eu comprei
no Ceará, pois eram muito parecidas: a mesma delicadeza e até mesmo os pontos
parecidos.
Uma coisa
engraçada aconteceu, e lembro como se fosse uma piada que fiz, mas não sei por que
assim o quis. Eu e Theo tínhamos uma língua em comum, o francês, que não era
nem a sua língua materna, nem a minha. Quando chegamos a Monschau, comecei a
falar com ele em alemão – mesmo com as limitações que tenho no idioma - e
simplesmente mudamos de língua. Ele respondeu nessa língua, a qual também
falava bem em função de seu trabalho, e quando cruzamos a fronteira, voltando,
retornamos ao francês. Hoje não temos mais nenhuma língua em comum, nem a do
amor. Sobretudo essa.
Theo
perguntou se eu queria como presente uma toalha de renda, disse não; se eu
queria levar alguns potes de mostarda, disse não. Estava em uma cidade de
contos de fadas, perdida em séculos passados, com um homem a quem tanto quis,
vivendo um dia de conto de fadas em um sábado de primavera. Depois o tempo
avançaria, mas ali, naquele momento, eu não precisava de nada mais. E assim
foi. Mesmo nessa cidade que aspira a ser de outro tempo, ao sopé de uma colina
que aspira a ser montanha, o tempo não para. Ainda bem, é sua maior dádiva. Mas
mesmo assim, não posso voltar a ela, com receio de não vê-la com os olhos de
outrora. Eu e ela nos desencontramos e nos desentendemos, cada uma falando uma
língua, cada uma em século diferente. Não posso mais ir lá, mas vocês podem. E
precisam. Ela dá a dimensão de como é ser outra pessoa, viver em outro tempo,
falar outra língua, ser estrangeiro de si mesmo, nem que seja por um dia. E ela
continua lá, cheirosa, graciosa, eterna, esperando vocês. O tempo fez uma curva
lá e parou e está esperando a todos que ainda não foram.
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