Essa pergunta, título de um livro de Raymond Carver Jr, é o
norte do filme Birdman, a inesperada virtude da ignorância. Michael Keaton é
Riggan Thomson, ator, diretor e roteirista de uma peça que vai estrear na
Broadway em um teatro de frente ao famoso musical “O fantasma da Ópera”.
Necessitando de sucesso, temendo a avaliação de uma crítica famosa, todos
envolvidos na peça vivem assombrados pelo fracasso. Sobretudo Riggan, é seu o
desejo de encenar a peça a partir da obra de Carver.
O filme é um debate sobre o amor verdadeiro, um elogio ao
teatro e uma constatação da tristeza que é a velhice. Em todos esses debates o
enfoque é sempre sobre o olhar. Sempre um olho absoluto que captura tudo e
todos.
Quando jovem, Riggan atuava em uma peça e Carver estava
na plateia, o assistiu e lhe escreveu no guardanapo um recado: obrigado pela
atuação honesta. A peça é, então, uma homenagem à interpretação honesta que o
teatro propicia. No debate com seu alterego Birdman, Riggan se identifica a um
ator honesto, é isso que ele busca. Birdman, o alterego que fala em sua cabeça
o tempo todo, lhe responde que teatro é um palavrório filosófico, um nada.
Cinema, e ainda mais Hollywood, é grandioso, é midiático, global, é Deus. É um
momento de dilema de Riggan com Birdman. E o personagem sai voando, dizendo-se
Ícaro, o mitológico Ícaro que voou, voou com suas asas de cera, que derreteram
porque não escutou o conselho dado: quanto maior o voo em direção ao sol, maior
o tombo. É a metáfora mais bonita do filme. Ícaro voa, o pôr do sol se reflete
entre os prédios, ele desce e caminha. Tal como no preceito que Freud retira da
Torá para nós: onde não podemos chegar voando, vamos mancando. E assim, o ator
entra no teatro. Na batalha cinema versus teatro, um a zero para o teatro.
Três cenas sobre a
velhice. Riggan ainda é reconhecido pela série de filmes de Homem-pássaro que
fez no passado. Uma mulher com certa idade pede autógrafo para ele, seu filho
ao lado pergunta ‘mãe, quem é esse?’ mostrando que outrora ele foi famoso,
agora um anônimo. Em outra cena, outro ator, interpretado por Edward Norton,
conversando com a filha do personagem Riggan, em um jogo de verdade ou desafio,
diz que teria medo de falhar se estivesse na cama com ela. Ela pergunta a ele:
se você não tivesse medo de falhar, o que faria comigo? Ele responde:
arrancaria seus olhos e colocaria em meu crânio para ver a rua com seus olhos,
como eu fazia quando tinha sua idade. Ele nem é um homem velho, mas já vive em
busca do tempo perdido, de uma juventude perdida.
E aí estão esses olhos arrancados de uma jovem, soltos,
expostos, no filme todo, a olhar a rua. Em vários momentos se fala em milhares
de visualizações de facebooks, instagran e twitter.
E mais um momento importante, onde a velhice do personagem
Riggan é enfatizada: ele anda somente de cueca pela rua, pois seu roupão se
trancou em uma porta, sai de um compartimento e contorna a rua, entrando pela
porta da frente do teatro. As pessoas vão olhando aquele homem seminu andando
pelas calçadas lotadas e os comentários não são sobre sua nudez e sim para sua
idade: ‘nossa, como ele está velho!’. A verdadeira nudez é a da velhice.
E chego à pergunta sobre o amor, que norteia o filme. O
exemplo de amor verdadeiro é de um acidente em que um jovem bêbado, dirigindo o
carro do pai, bate contra um trailer onde viviam dois idosos. O jovem morre –
morrer jovem pode ser um destino bem pior que a velhice – os idosos não. O
homem, todo enfaixado, engessado, fica sabendo que sua esposa não morreu. Mas ali
no hospital, imobilizado, sua maior tristeza é não poder olhar para sua amada.
Outra pergunta que surge: existe amor absoluto? Quem ama mata? E a cena final na
cena dentro do filme responde sim. O amor verdadeiro é o exemplo do idoso acima.
O outro amor que mata é a cena final: um homem entra no quarto, descobre a
mulher na cama com outro, pergunta a ela se ainda o ama. Ela responde não, não
mais. Ele dá as costas ao casal, Riggan interpretando o homem traído olha para
a plateia e se dá um tiro na cabeça. Resposta de que só o amor faz uma pessoa
existir. É a verdade poética de Goethe que Freud leva para sua obra: precisamos
começar a amar para não adoecer. E podemos complementar com essa cena que, pelo
inverso, mostra o poder do amor: sem o olhar de amor do outro, não há sentido
na vida, desaparecemos.
Riggan cai ferido na cena final da peça, pois no revólver
tinha uma bala de verdade. Depois disso, é a cena final do filme. Sobreviveu a
interpretação realística que faz juz a obra realística de Raymond Carver Jr. e
aparece deitado na cama de um hospital. Seu advogado nos conta que ele é o
sucesso do momento na cidade, no twitter, no facebook, a cidade só tem olhos
para ele. E ele está lá, deitado na cama de hospital, com novo nariz, reconstituído
pela cirurgia, pois o seu se perdeu com o tiro. Mascarado igual Birdman, igual
o idoso que não conseguia ver sua amada, levanta da cama, tira a máscara e vai
até a janela olhar o bando de pássaros ao longe, no céu. O que mostra que sua
identidade-pássara não passou, abriu a janela e se juntou ao bando,
passarinhando. E desapareceu.
Nenhum comentário:
Postar um comentário