Mesmo que agora busque um novo laço
com que prender-me, é certo que do antigo
Não me liberto do apertado abraço
Um fogo apaga outro, sempre digo:
E tu, que és meu carrasco nesse passo,
Faz que assim seja, Amor, mas não comigo.
Gaspara Stampa
O
presente texto é o desfecho de meses de leitura da obra de Rainer Maria Rilke e
da visita a um castelo onde ele começou a gestar uma obra imprescindível para a
história da poesia, o Castelo de Duíno, em Trieste. E lá, no castelo, vinha à
memória da autora dessas páginas, trechos do ensino de Lacan, no qual ele
relacionou o ato analítico com a poesia. Ainda há mais um motivo para escrever
o texto: a descoberta, lá, de que Marie Bonaparte frequentou o castelo, tendo
ainda livros de psicanálise que retratam seus períodos de leituras freudianas,
espalhados pelos cômodos do castelo. A autora foi para encontrar Rilke, e o
inesperado foi encontrar Freud.
A
poesia é uma violência à língua
Em seu seminário O saber
do psicanalista, proferido no final de 1971 e em 1972, na capela do Hospital
Sainte-Anne, Lacan está às voltas com a lógica matemática. É preciso revirar a
coisa, diz em sua aula de 6 de janeiro de 1972, ainda que a lógica “possa
tornar o mundo odioso”, permite não se deter no senso comum, em um sentido
fácil. A lógica permite a Lacan apreender o objeto a como “inteiramente estranho à questão do sentido”. Uma outra
razão, e escreve RESON[i],
como Francis Ponge, como esse grande poeta o faz. Em seguida, após apresentar o
poema de Tudal – que já estava citado em Função e Campo da Fala e da linguagem em
Psicanálise – diz que ele é um poeta “não desprovido de talento”. Francis
Ponge, para Lacan, é um grande poeta[ii],
e Antoine Tudal, um poeta menor. Nessa aula desse seminário, há um elogio a um
poeta, e certo menosprezo ao outro. Por que? Essa questão me ocupou enquanto
estudava para o seminário que proferi em agosto de 2015, no Fórum do Campo
Lacaniano de Fortaleza.
Ensaio
uma resposta: Ponge garatuja com as palavras. Nessa aula, ele mesmo, Lacan,
brinca com o poeta, papua, papuasia. Ele quer abordar a linguagem na sua função
topológica (aula de 3 de março de 1972). Isso lhe permitiu, inclusive, fazer
sua proposição da lógica da sexuação. “Isso permitiria à psicanálise operar
sobre o real, único a estar mais além da linguagem”.
Em
Rumo a um significante novo (1977), afirma que a psicanálise tem efeitos de
sentido – ela tem relação a isso que é o significante – e isso faz dela uma escroqueria. Mas não mais escroqueria que a poesia. “A poesia se
funda precisamente nessa ambiguidade da qual falo e que qualifico de duplo
sentido”. (aula de 15 de março de 1977) A poesia faz uma violência à
cristalização do uso da língua. A poesia amorosa marca essa violência, alega
Lacan. E para isso cita Dante. “A poesia joga inocentemente com o
imaginariamente simbólico e com isso ela mostra a verdade sobre a relação
sexual”. E, mais adiante nesse seminário, dirá que a verdade é poética, assim
como uma interpretação, ela desmancha um sentido.
Por
isso Lacan diz que o psicanalista pode ser um poata, um poeta do ato. É a aposta de Lacan de que o ato analítico
pode ser uma violência ao sentido, como a poesia também o é, ao sentido e,
consequentemente, à língua. “É à medida que uma interpretação justa desmancha
um sintoma, que a verdade se especifica em ser poética”. (aula de 19\04\77)
Rilke e o Duíno
Rainer Maria Rilke escreveu suas Elegias do Duíno entre 1912 e 1922. Dez anos para gestar alguns dos
mais belos poemas que alguém já escreveu. Seu livro retrata o amor, as
perguntas sobre a existência, sobre o tempo, a busca do absoluto, a angústia
diante da morte, a solidão, a nostalgia e o amor perdido. O homem, esse anjo
terrível, que “vive sem amparo neste mundo definido”. Depois de passar por
Roma, Nápoles, Florença, atormentado por seu amor infeliz por Lou Andreas-Salomé,
chega a Trieste e ao castelo.
Escreveu as primeiras elegias no
Castelo do Duíno, nos arredores de Trieste, quase fronteira com a Eslovênia. O
castelo é majestoso, construído sobre um rochedo, numa ponta de terra que
avança mar adentro, com todas suas janelas penduradas sobre o Mar Adriático.
Nele, Rilke perdeu o bloqueio criativo em que estava e começou a gestar essa
obra. O Castelo é propriedade há séculos da família de nobres Torres e Tasso, e
já foi local de veraneio para muitos escritores, artistas e nobres através dos
tempos. Uma parte da Divina Comédia foi escrita lá; depois de uma temporada de
férias nele, em 1914, Francisco Ferdinando saiu do castelo, pegando o trem para
ser assassinado em Sarajevo.
Sabemos da paixão que Rilke declarou
por Lou Andreas-Salomé. Escreveu para ela as palavras mais lindas que um homem
pode escrever a uma mulher. “Apaga-me os
olhos: ainda posso ver-te, tranca-me os ouvidos, ainda posso ouvir-te.” E
continua para, no fim do poema, afirmar que a traz em seu sangue. E em outro,
escreve que o amor de um ser humano por outro é a experiência mais difícil para
cada um de nós, “o mais superior testemunho de nós próprios, a obra absoluta em
face da qual todas as outras são ensaios”. Quando a conheceu tinha vinte e dois
anos, ela era quinze anos mais velha que ele. Estava casada, já tinha
descartado a proposta amorosa de Nietzsche, já tinha fugido de casa e da terra
pátria, a Rússia. E já era uma escritora conhecida. Ainda não tinha se
aproximado de Freud e da Sociedade Psicológica das Quartas-feiras. Depois de um
desentendimento com ela, ele viaja à Itália. Rilke chegou a mudar de nome sob a
influência dela: ela achava que René não lhe ficava bem, não para um poeta que
iria ter a projeção que ele teria no futuro. Foi ela a primeira pessoa a ver nele
o escritor que ele iria se tornar. Mas não queria se separar do marido, o
acomodou em uma casa próxima de sua casa e se encontravam muito, viajavam
juntos, foram duas vezes juntos a amada Rússia, terra natal dela. Uma vez os
três, Rilke, Salomé e o marido. E a segunda vez só Rilke e Salomé. Para essa
viagem ele se preparou, estudou sobre a Rússia. E ela o apresentou a Tolstói.
Se essas primeiras elegias foram
gestadas em um momento de turbulência em seu relacionamento com Lou Andreas-Salomé,
se ela foi a inspiração para a elegia (“sim, as primaveras precisavam de ti”) o
nome de mulher que aparece na primeira elegia é o de Gaspara Stampa. O poeta
escreve que está distraído, à espera da amada. E se a nostalgia vier, ele
cantará as amantes, essas abandonadas “que te parecem mais ardentes que as
apaziguadas”. E mais adiante: “Com que fervor lembraste Gaspara Stampa, cujo
exemplo sublime faça enfim pensar uma jovem qualquer, abandonada pelo amante:
por que não sou como ela? Frutificarão afinal esses longínquos sofrimentos? Não
é tempo daqueles que amam libertar-se do objeto amado e superá-lo, frementes?”
Gaspara Stampa (1524-54), poetisa do
Século XVI, nascida em Pádua, apaixonada aos vinte e quatro anos por um conde,
por quem tinha uma devoção desesperada. Tiveram um relacionamento breve e
depois ele não mais retribuiu seu amor. Ela endereçou a ele, Conde Collaltino,
seus poemas de amor. E o intitulava de “meu ilustre senhor”. “Extinta” sua
paixão pelo conde, se apaixona por Bartolomeu Zen, e escreve para ele quatorze
sonetos de amor. O amor pelo veneziano Bartolomeu suplantou seu sentimento
desesperado pelo conde? Creio que a epígrafe desse texto, parte de um soneto de
Gaspara, responde a pergunta.
Ela morreu aos trinta anos, depois de
quinze dias de uma febre intensa que não cedia. Dois anos depois que Collaltino
tinha se casado. Na verdade, sua febre intensa foi o amor. Uma amante, uma
ardente, febril, diferente de uma apaziguada, como Rilke retrata em sua
primeira elegia.
Marie Bonaparte e o
Duíno
Essa princesa grega e dinamarquesa, aparentada de várias
famílias reais da Europa, sobrinha-bisneta de Napoleão Bonaparte, riquíssima,
conheceu Freud quando tinha cerca de quarenta anos. Estava à beira do suicídio
e sua análise com Freud, que durou mais de 15 anos, não apenas salvou sua vida,
mas lhe trouxe uma paixão e entusiasmo que carregou até o final: a psicanálise.
E é graças a ela que Freud e sua família não foram exterminados pela Gestapo e
que a obra freudiana pôde deixar a Áustria e chegar intacta a Londres. Ela
investiu sua energia, seu dinheiro e seu tempo para fazer a psicanálise
prosperar. Foi a grande embaixadora da Sociedade Psicanalítica de Paris, afirma
Elizabeth Roudinesco. Sua importância para a psicanálise ter prosperado na
França também é inquestionável.
Em 1949, Eugênia, a filha de Marie, casa-se em segundas
núpcias com o Príncipe Raymond de Thurn and Taxis. O príncipe é o herdeiro do
castelo de Duíno. E três anos depois nasce Carlos Alessandro della Torre e
Tasso[iii].
É esse neto que foi entrevistado pela jornalista italiana Francesca Graziano e
que conta a ela várias histórias dessa avó famosa. Não há no livro nada que
conte sobre suas estadias no castelo.
Segundo Roudinesco, “com essa mulher que o cumulava de
presentes, Freud manifestou o seu extraordinário gênio clínico. Gostava tanto
dela que, para recompensar sua fidelidade, ofereceu-lhe, como fizera a Lou Andreas-Salomé,
um dos famosos anéis reservados aos membros do Comitê Secreto”. Assim, tanto
Lou Andreas-Salomé quanto Marie Bonaparte, as duas mulheres a quem Freud tinha
tanta confiança, se enlaçam, cada uma a sua maneira, à história do Castelo de
Duíno. E também, indiretamente, Gaspara Stampa, pois Rilke a colocou no
castelo, em sua primeira elegia do Duíno.
E deixando o castelo
E também podemos pensar em uma quarta mulher envolvida com o
castelo, essa que vos escreve, que leu toda essa história e quis ir até lá,
andar por seus cômodos e olhar o Adriático, esse gigante azulado que bate sobre
as rochas, sobretudo nas grandes noites de verão, “as grandes noites de verão,
e as estrelas, as estrelas da terra”, escreveu Rilke. Para ela, essas estrelas
também pareceram maiores nessas noites que passou em Trieste. Talvez
influenciada por Rainer Maria Rilke, talvez influenciada pela história, achou
que a estrelas brilhavam para ela.
Referências
bibliográficas
Graziano, Francesca. Marie
Bonaparte, la Principessa della psicoanalisi. Trieste: Edizioni Fenice
Trieste, 2005.
Lacan, Jacques. Função e Campo da Fala e da linguagem em
Psicanálise. Escritos. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.
_______ O saber do
psicanalista (1971-72). Inédito.
______ Rumo a um significante novo. Opção Lacaniana. São Paulo: Edições Eólia, número 22, agosto de
1998.
Ponge, Francis. A
mimosa. Coleção Poetas do mundo. Tradução e notas de Adalberto Müller.
Brasília: Editora da UnB, 2003.
Rilke, Rainer Maria. Elegias
de Duíno. Rio de Janeiro: Editora Globo. 4 ed. Tradução Dora Fereira da
Silva. s/d.
Rilke, Rainer Maria; Andréas-Salomé, Lou. Correspondência amorosa. Lisboa: Relógio
d’Água, 1994.
Roudinesco, Elizabeth; Plon, Michel. Dicionário de Psicanálise.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.
Stampa, Gaspara; Labé, Louise; Browning, Elizabeth Barrett. Três mulheres apaixonadas. São Paulo:
Cia das Letras, 1999.
Thurn und
Taxis, Marie von. Ricordo di Rainer Maria Rilke. Trieste: Edizioni
Fenice Trieste, 2005.
[i]
A homofonia entre résonner [ressoar]
e raisonner [raciocinar] permite o
jogo de palavras entre réson e raison.
[ii]
E não apenas para Lacan. Ponge ganhou vários prêmios literários e ganhou
reconhecimento na França e no mundo. Foi lido, debatido, e muitas teses e
livros de autores famosos tiveram por tema sua obra. Dentre elas assinalo a de
Derrida e de Haroldo de Campos. Ponge brinca com os significantes, e usa a
palavra em sua sonoridade como Manoel de Barros também o fez. Em seu livro A mimosa, usa o arbusto, a mimosa pudica,
e diz o porquê: minha sensualidade infantil acordou sob os sóis da mimosa. E
desfia os significantes: mimosa, mimosa sans moi, mimésis, le mimosa et moi, le
mimosa lui-mêmê. E ainda: como em tramaga há trama, em mimosa há mimo [como
dans tamaris il y a tamis, dans mimosa il y a mima]. É uma poesia tão difícil
de ser traduzida. Nessa edição que tenho, abundam notas de rodapé. E não
poderia ser diferente. Uma pequena curiosidade: em agosto passado, no seminário
que proferi em Fortaleza, comentei a citação de Lacan sobre Francis Ponge e
falei da mimosa pudica. Em meu Estado, MS, a mimosa é chamada de Dorme-dorme.
Os colegas cearenses deram dois nomes pelos quais o arbusto é conhecido no
Estado: Acorda-Malícia-teu-pai-morreu. E também: Maria-fecha-a-porta-que-teu-pai-vem-bêbado.
Enfim, de pudica, no Ceará, a mimosa virou malícia, outro deslizamento
possível. E tem pai que não acaba mais nas nominações. Um brinde a poética
cearense.
[iii]
Em algumas partes desse livro que consulto, o sobrenome está em inglês [Thurn
and Taxis] e noutras em italiano [Torre e Tasso].
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