Ontem, no Teatro Aracy Balabanian, aqui em Campo Grande, assisti TRÁGICA 3. A peça, dirigida por Guilherme
Leme e patrocinada pelo Ministério da Cultura e pela Petrobrás, apresenta três
mulheres trágicas das tragédias gregas: Electra, Medéia e Antígona. Assim está
a ordem no caderno que nos apresenta a peça, porém, na peça, a ordem de
apresentação dessas trágicas é a seguinte: primeiro Antígona, apresentada por
Letícia Sabatela, a jovem tebana, filha de Édipo, emparedada viva por
descumprir a ordem de Creonte, seu tio, e enterrar o irmão Polinice, proscrito
pelo tio tirano. Depois a Electra da atriz Miwa Yanagizawa, uma irmã que
espera o retorno do irmão Orestes, que vingará a morte do pai Agamenon, pela
própria mãe Clitemnestra e seu amante Egisto. Electra salvou o irmão quando
criança, mandando-o ao exílio. E vive como escrava, banida do palácio real, ela
a filha do assassinado rei Agamenon. E espera sua vingança. E será pelas mãos
desse irmão, que ela tanto ama e espera que sua vingança se concretizará.
E a terceira trágica, Medéia, a
mulher que abandonou tudo pelo amor de um homem, o primeiro e único. Abandonou
sua amada pátria, a Cólquida, que traiu um pai, matou um irmão e o despedaçou
pelo caminho para distrair o pai, o rei da Cólquida, que reconheceu os pedaços
do corpo do filho e assim Jasão escapou de sua fúria. Ela, exilada de tudo,
casa-se com Jasão e os dois têm dois filhos, dois meninos. Vista pelo seu povo
e pelos outros, os estrangeiros, como a bárbara, é aceita como refugiada e
exilada em Corinto. Jasão, já em outras conquistas, vai se casar com outra, uma
nova mulher nova. E aí começa a vingança de Medéia.
Medéia é representada por Denise
Del Vecchio, embora as duas atrizes que vieram antes tenham sido excelentes,
Del Vecchio é de uma grandeza inigualável no palco. Ela é a mulher que está
envelhecendo, que se desfez de tudo pelo amor a um homem. Perdeu a pátria,
perdeu o pai, perdeu o irmão, e está disposta a perder esses filhos para vingar-se
de Jasão. Tomará dele o que ele mais dá valor: os filhos que carregam seu nome,
sua herança, sua honra. Se é que alguma o personagem carrega. Essas crianças,
filhos amados seus, e ao mesmo tempo, filhos do homem que ela precisa destruir
para cumprir sua vingança. A rival jovem, ela mata de um golpe só: manda seu
vestido de noiva para que ela use para Jasão. Ele pede a jovem esposa que o
coloque. O veneno colocado no vestido entra em seu corpo e ela se consome em
chamas.
A direção de Guillerme Leme
consegue salientar a grandeza da vingança de Medéia. A disposição das três
trágicas está perfeita. Enquanto Sabatella e Yanagizawa entram no palco com
roupas claras, Medéia já entra de negro e trás na face a dor que deforma as
feições. E o que mais gostei: colocando nessa ordem as trágicas, fica evidente
a força dos laços fraternais. O amor por um irmão aparece em todas elas. A
primeira, disposta a morrer para respeitar seu irmão. Fosse ele quem fosse,
com avidez de poder, guerreiro insano a guerrear com o outro irmão, não
importa, merece os ritos fúnebres. E ela pagará com a vida por isso. É por isso
que ela é a imagem da ética. A ética dos laços sociais que se sobrepõem à lei instituída
por um tirano. Sou psicanalista e por isso já li várias vezes Antígona. Lacan
dedicou um ano inteiro de seu ensino a comentar sua ética.
Depois, Electra, centrada no amor
pelo pai e pelo irmão e no ódio à mãe, essa lasciva que pelas mãos de Egisto
matou o marido, o pai de seus filhos, e se deitou com seu assassino e vive com
ele, deixa ele se sentar no trono que seria de seus filhos. Uma mãe que passa a
perna nos filhos por causa de um homem. Electra vai mostrar a ela, pelas mãos de
um irmão, como os laços familiares são superiores a tudo.
E Medéia, que dispôs de tudo por
Jasão e foi traída por ele. Também já tinha lido Medéia mas nunca
tomei a peça pelo viés que o diretor nos apresenta. E essa foi a grandeza
maior dessa peça. Pelo menos para mim: mais do que repetir a traição de Jasão
com outra mulher, ela repete ‘Jasão, você me deve um irmão’. E o ator, que é
quase só uma voz, do lado escuro do palco, responde: te dei dois filhos no
lugar de um irmão. E mais adiante, ela repete: você me deve um irmão. E mais
adiante, novamente, ela reclama a Jasão sua dívida: você me deve um irmão.
Assim, a Medéia de Guilherme
Leme, pode se perdoar de tudo, menos do que fez a um irmão. E mesmo tendo nova
pátria, tendo marido, tendo filhos, não se apaga um irmão. E quando perde quase
tudo, a caminho de perder, pelos assassinatos que cometerá, os filhos, seus
últimos recursos – se é que os filhos são posse de sua mãe. Não vou entrar
nessa contenda – aquilo do qual não se pode perdoar é ter sacrificado um irmão.
Assim, a fala de Jasão é pura baboseira: dois filhos não valem um irmão. O que
não quer dizer que valem menos. O que Medéia mostra é que não se faz uma
equação disso. Um irmão é um irmão. E é um laço que não se suplanta por nada
que venha a se adquirir na vida. Esse foi o viés novo que nunca antes tinha
visto em Medéia e que a direção de Guilherme Leme e a atuação soberba de
Denise Del Vecchio me deu.
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