O artigo abaixo escrevi em 2006, à época das charges de Maomé, feitas na Dinamarca, foi apresentado em um congresso sobre as religiosidades, em Dourados\MS
MAL-ESTAR E SEGREGAÇÃO RELIGIOSA
Andréa Brunetto
Yo soy um moro judio/ que vive con los
cristianos
No sé que Dios es el mio/ ni cuales son mis
hermanos
Y a nadie le di permiso/ para matar en mi
nombre
Un hombre no es más que un hombre
Y si hay Dios, asi lo quiso.
El mismo suelo que piso/ seguirá, yo me habré
ido;
Rumbo también del olvido/ no hay doctrina que
no vaya/
E no hay pueblo que no se haya/ creido el
pueblo elegido.
Jorge Drexler y Chicho Sánchez Ferlosio
As energias
que empregamos em sermos todos irmãos
Provam bem
evidentemente que não o somos.
Jacques
Lacan
Este trabalho pretende explicitar as visões de Freud
e Lacan sobre a religião, para em seguida discutir a segregação religiosa e os
movimentos fundamentalistas que tem proliferado na atualidade. A psicanálise se
interessa em estudar a segregação na medida em que investiga os laços sociais.
Em entrevista a revista Cult de setembro de 2005, Baudrillard faz uma análise
da contemporaneidade com sua queda dos ideais: “os racismos, fundamentalismos e
grupos étnicos se apresentam como um sintoma desesperado de pessoas que
procuram uma regra do jogo, porque não há mais”.
1. Com
Freud e Lacan
A vida é muito difícil de suportar, afirma Freud.
Ela é muito árdua porque proporciona sofrimentos, decepções e tarefas
impossíveis. A tarefa impossível de que Freud está falando é a busca incansável
que o homem empreende para alcançar a felicidade, busca solitária que cada um
deve empreender porque sua solução não vale para os demais.
E,
citando Frederico II, o imperador da Prússia – “em meu Estado, cada homem pode
salvar-se a sua própria maneira” – marca sua posição: cada um procura ser feliz
a seu modo. Nesse texto que estou citando, Mal-estar na civilização, diz
que isso é contra os valores religiosos, pois a religião restringe essa
escolha, impondo a todos o mesmo caminho.
Para
Freud, a busca da felicidade é a busca do prazer, propósito do aparelho
psíquico desde o início. Mas este projeto de ser feliz está em desacordo com o
mundo. A civilização impõe limites à satisfação pulsional e o sujeito tem
hostilidade para com “a civilização pela pressão que ela exerce, pela renúncia
da pulsão” (p. 26, O futuro de uma ilusão).
Os
homens não são seres gentis que desejam amar e ser amados, e que, no máximo,
usam a agressão quando atacados, “são criaturas entre cujos dotes pulsionais
deve-se levar em conta uma poderosa quota de agressividade”. É Freud citando
Plauto: o homem é o lobo do homem.
Os
ideais culturais visam unir os membros da comunidade, vincula-los por meio de
uma meta comum, evitando que eles se destruam ou destruam os seus semelhantes.
E, claro, nesses ideais também encontrarão satisfação narcísica. Estas três
formas de unir os homens são a religião, a arte e a ciência.
A
religião faz parte destes apoios para tornar tolerável o desamparo humano. Mas
Freud a coloca como uma ilusão, um véu que barra a castração, na medida que faz
existir um ser onipotente, o pai primevo, que Freud teoriza em Totem e Tabu. A
existência desse Um pai, Deus, que tudo pode, permite aos seres humanos dar um
sentido a morte, ao sexo, a vida. Enfim, diante das erupções do real, há alguém
que sabe, que traça o destino dos homens.
Porém,
Freud apostava queda do poder da religião, afinal “os seres humanos não podem
permanecer crianças para sempre. Têm de, por fim, sair para a vida hostil” (p.
64).
O
trabalho de Eros é unir os homens em famílias, raças, povos, nações e numa
única unidade, a humanidade. E Eros se digladiaria com a pulsão de destruição.
“Nesta luta consiste essencialmente toda a vida e, portanto, a evolução da
civilização pode ser simplesmente descrita como a luta da espécie humana pela
vida. É essa batalha de gigantes que nossas babás tentam apaziguar com sua
cantiga de ninar sobre o Céu” (p. 145).
A
idéia de Freud é que uma educação para a realidade teria como meta fundamentar
preparar os jovens para ligar com sua agressividade, a qual todo homem se acha
destinado. Assim, combateria as ilusões. Entre elas, é claro, a religião.
Freud
apostava que o avanço da ciência colocaria o homem em uma relação com a verdade
e contra as ilusões. Apostava, conseqüentemente, em uma queda de poder da
religião.
No
Seminário 11, Lacan sustenta que para o homem das luzes, do século XVIII, a
religião era uma fundamental impostura, mas que para o homem do século XX é
difícil entender esta descrença, pois “a religião, em nossos dias, goza de um
respeito universal”. Fala mesmo, em uma entrevista de 1974 em triunfo da
religião. A religião consegue dar um sentido às coisas que outrora eram coisas
naturais. A psicanálise propõe uma verdade sobre o vazio que é diferente do que
imediatamente dar um sentido a tudo que vem do real[1].
Lacan
afirma que se a religião triunfar, a verdadeira, o que é mais provável, isso
será sinal que a psicanálise fracassou. Mas não quer dizer que a psicanálise
desaparecerá, é até normal que ela fracasse, pois lida com algo que é muito
difícil. E relembra Freud, colocando a psicanálise entre as profissões
impossíveis.
Porém, Lacan acredita que Freud foi muito incisivo
ao afirmar que tudo que é da ordem da religião não significava, ou mesmo
acreditando que um dia o homem iria acordar.
Afinal, a função do pai está no âmago da experiência religiosa. E é pelo
assassinato do Um pai que se erige um totem, se funda o simbólico e, conseqüentemente,
a civilização. Aliás, isso me leva a questionar tantas teorizações sobre a
carência da função paterna na contemporaneidade. Será que realmente, com o
triunfo da religião, acreditando em Lacan, podemos falar em declínio da função
paterna? Não é um paradoxo?
2. A
segregação
Freud já nos mostrou a dificuldade de cumprir o
mandamento de amar o próximo como a si mesmo. Tomarei esta dificuldade por um
viés: amar o próximo inclui a segregação. O laço social inclui a
segregação. Até aí estamos sendo absolutamente
freudiano. Segundo Palácios, o passo a mais, dado por Lacan, decorre de sua
teorização sobre o gozo. O sujeito se ressente de sua falta de gozo e onde há
falta de gozo supõe um responsável. É para este responsável que a segregação e
o ódio se dirige.
Assim,
não existe nenhum ato humano que não esteja enfronhado no racismo. É essa a
afirmação de Lacan em Televisão: somos muito precários em nosso mais-de-gozar e
mais ainda, vestimos com um “humanitarismo sentimentalóide nossas atrocidades.
Assim, faria uma operação: quanto mais segregação, mais discurso de igualdade e
direito humanos.
Para Lacan, as atrocidades são humanas,
demasiadamente humanas, porém previa uma escalada do racismo e da segregação.
Na proposição de 9 de outubro de 1967, Lacan
sustenta que a exclusão tem uma coordenada real que foram os campos de
concentração. O nazismo foi um precursor da exclusão, que a universalização do
sujeito que procede da ciência também faz.
Soler afirma que a segregação é diferente da
discriminação. O Antigo Regime, com uma sociedade escravagista, era
discriminatório, mas não segregativo. Cada um tinha seu lugar, pois o
significante mestre era potente, o que permite tratar as diferenças de gozo.
Amós Oz conta que a Jerusalém de sua infância era
um conglomerado de bairros com gente de diferentes culturas: armênios, árabes,
judeus. E, mesmo entre os judeus, que vinham de diferentes países, se falavam
várias línguas. Em Meu Michel chega a dizer que Jerusalém não existe,
que ainda que viva cem anos, nela não se sentirá em casa, pois ela é plena de
fortalezas ameaçadoras, de muros sombrios e altas muralhas. “Cidade que arde.
Quarteirões inteiros pendurados no nada”. O que todos os bairros tinham em
comum era o fervor messiânico, cada um se acreditando o portador da herança
verdadeira. Havia tensões, cada um em seu bairro, mas não violência. É um
exemplo de uma cidade discriminativa e sem segregação, como Soler afirma. Pelo
menos naquele momento. Todos sabemos como está hoje.
3. O
humor contra o fanatismo religioso
No
mês de fevereiro passado, foram feitas charges do profeta Maomé por um jornal
dinamarquês, que enfureceram muito os muçulmanos e detonaram, revoltas
populares nos países árabes e ataques terroristas em embaixadas dinamarquesas
pelo mundo. Em resposta, os europeus debocharam mais ainda dos islâmicos. Um
ministro italiano deu entrevista na televisão com uma das charges desenhada na
camisa. A pergunta que resultou foi: deveriam ou não ser publicadas as charges?
Muitos jornalistas, filósofos, historiadores escreveram, falaram. Então, creio
que posso também dar minha opinião. Aliás, todos podem.
Salman
Rushdie, escritor indiano que já foi jurado de morte por ter escrito Os
versos satânicos afirma que na Universidade de Cambridge aprendeu uma coisa
bem interessante em um país que, como a Inglaterra, já foi palco de tanta
violência ligada a religião: você pode duvidar de tudo, criticar qualquer
sistema de idéias, sem ser grosseiro com seus autores. Nenhuma teoria é
sagrada. E isso, que ele chama o sagrado direito de ser ofendido é um avanço
nas relações culturais.
Ele
está debatendo uma lei proposta por Tony Blair que pretende introduzir uma
proibição a toda forma de incitamento ao ódio religioso. “Nietzche considerava
o cristianismo a maior desgraça da humanidade. Ele deveria ser perseguido?” Uma
lei assim, que censura e tolhe as opiniões, segundo ele, reforça o racismo.
Ele
fala que foi dar uma palestra em Washington, em março de 2003 e um senador
republicano lhe perguntou porque Osama Bin Laden disse que eles são um país
descrente, “não há nada que nós respeitamos mais do que Deus”. Ao que ele,
Rushdie, respondeu ‘eu suponho que ele não pense assim’. Tomando a sua cultura
como o modelo, o senador republicano se mostrou tão intolerante com a religião
do outro quanto Osama Bin Laden. E isso surpreendeu Rushdie, a indignação
sincera do homem.
O
filósofo esloveno Slavoj Zizek afirma que a medida do verdadeiro amor é poder
insultar o outro. Se há amor, se pode dizer coisas horríveis ao outro e nem por
isso se faz uma guerra. E que isso de respeito pela cultura do outro, do
politicamente correto parece a ele racismo. E ele mesmo se pergunta: como posso
estar tão seguro de que não sou um racista? “Só há uma maneira: quando se pode
trocar insultos, deboches, chistes sujos com um membro de uma raça diferente, e
ambos sabemos que por trás não tem uma intenção racista. Se, ao contrário,
jogamos o jogo politicamente correto ‘oh, como te respeito, que interessantes
são teus costumes’, é um racismo invertido”.
Tanto
Rushdie quanto Zizek apontam a tolerância, aprender a conviver com o diferente,
inclusive criticando e aceitando a crítica, como a saída para o fundamentalismo
religioso. Sustento que a segregação em nosso mundo atual tem envolvido muito
mais os credos religiosos que as raças.
Se
já sabemos com Freud que o ódio está no âmago dos laços sociais, como conseguir
tal tolerância? O que poderia nos proteger da violência religiosa, como temos
visto dia a dia nos noticiários? E não apenas entre religiões opostas. Semana
passada, no Iraque, xiitas e sunitas, ambos islâmicos, começaram uma onda de
violência declarada – digo declarada, pois a hostilidade já vem de séculos[2].
É o narcisismo das pequenas diferenças. Freud já nos disse que onde as pessoas
têm mais coisas em comum é onde se tecem as maiores batalhas.
Em
quatro cartas trocadas entre o escritor japonês Kenzaburo Oe, Nobel de 1994, e
o israelense Amós Oz, a segregação e a tolerância são discutidas. Hiroshima é
para Kenzaburo um trauma assim como Auschwitz para Oz. Kenzaburo acredita que a tolerância será a
questão do século XXI – as cartas foram trocadas em 1998 – mas previu uma
corrente forte em sentido contrário. Segundo ele, a esperança é o poder da
imaginação, cada pessoa tentando de imaginar no lugar da outra.
Amós
Oz responde que descobriu a cura do fanatismo: o bom humor. “Nunca vi um
fanático bem-humorado e nem um bem-humorado se tornar fanático[3].
Zizek
e Oz apostam no humor. Esta é a aposta freudiana também. O humor é um triunfo
do eu e do princípio do prazer. Uma forma de lutar contra a “crueldade” do
real. Freud diz que o humor é uma rebeldia, é como dizer: “Aqui está o mundo,
que parece tão perigoso! Não passa de um jogo de crianças, digno apenas de que
sobre ele se faça uma pilhéria”.
Infelizmente,
o humor é um dom raro, precioso, que poucos tem. Oz o sabe, já que alega que
vai concentrar o bom humor em pílulas e distribui-lo. Assim, mesmo o humor é
uma saída precária, pois ele não é contagioso. Não é um dom distributivo.
Voltando
agora às charges do Profeta Maomé, farei uma analogia. Quando convidamos alguém
para freqüentar nossa casa, não é educado dizer ao convidado que ele está
mal-vestido ou que não usa os talheres direito. Ser tolerante é saber o que se
pode dizer a alguém. É levar em conta o que o outro pode saber.
Discordo
de Salman Rushdie que se possa questionar tudo, e mesmo de Zizek que se pode
suportar tudo porque se ama. Afinal, é na cama onde o amor se deita que
acontecem as piores tragédias. A verdade tem limites, não a dizemos toda. Ainda
que pese as afirmativas de que os muçulmanos sejam fundamentalistas – mais uma
universalização.
E
além do mais, achincalhar a religião do outro é como – com as devidas
proporções - dizer ao nosso convidado: coma direito, você está segurando o
garfo de forma horrível. Tenho certeza que qualquer pessoa bem educada acharia
isso um horror. E além do mais, Freud já nos mostrou que o humor envolve quem o
faz e quem o assiste. E com essas charges só houve graça para um lado.
É
por isso que a epígrafe desse trabalho é um trecho da música milonga do
mouro judeu. Seus autores dizem que mesmo pela Jerusalém dourada, de mil
vidas mal gastadas em cada mandamento, a guerra é muito má escola, não importa
o disfarce que ela use.Um homem não é mais que um homem. E se há Deus assim ele
o quis”.
Bibliografia
1. FREUD, S. O
futuro de uma ilusão. Obras Completas. Vol. 21. Rio de Janeiro: Editora Imago, 1976.
2.______ S. Mal-estar
na civilização. Obras Completas. Vol. 21. Rio de Janeiro: Editora Imago,
1976.
3. _____ O
humor. Obras Completas. Vol. 21. Rio de Janeiro: Editora Imago, 1976.
4. KENZABURO &
OZ. A dor compartilhada. Caderno Mais. Folha de São Paulo, 10 de janeiro
de 1999.
5. LACAN, J. O
seminário, livro 7: a ética da psicanálise. Rio de Janeiro: JZEditor, 1991.
6. ______ O
seminário, livro 11: os conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de
Janeiro: JZEditor, 1993.
7. _______ Televisão.
RJ: JZEditor, 1993.
8. _______ O seminário, livro 17: o avesso da
psicanálise. Rio de Janeiro: JZEditor, 1992.
9. _______ Entrevista
a imprensa do Dr. Lacan. 29 de outubro de 1974 no Centre Culturel
Français-Rome. Tradução: Association Freudienne Internacional.
10. OZ. A. Contra
o fanatismo. RJ: Ediouro, 2004.
11. ____ Meu
Michel. SP: Cia das Letras, 2002.
12. RUSHDIE, S. O
sagrado direito de ser ofendido. Revista Bravo, encarte Livros. SP: Editora
Abril, abril 2005.
13. SOLER, C. Sobre
a segregação. In: O brilho da inFelicidade. RJ: Contracapa, 1998.
14. ZIZEK, S. La medida del verdadero amor es:
Puedes insultar al outro. Entrevista dada a Sabine Reul e Thomas
Deichmann. Instituto de Essen, Alemanha. 2002.
[1] Cito
o exemplo de Zizek: Jerry Falwell,
figura conhecida americana, diante do ataque ao World Trade Center
afirma que isto era um sinal de que Deus não mais protegia os EEUU, porque eles
haviam tomado um caminho de maldade, homossexualidade e promiscuidade.
[2] O
que nos parece hilário é que os xiitas, que são maioria e que foram
espezinhados no governo de Sadam Russein,
descobriram que a intrusão do governo americano com suas eleições
arranjadas lhes favoreceriam, já que são em maior número. Vejam que até um
dispositivo democrático como a eleição pode ser usada para acirrar guerras.
[3]
Continuando o texto de Oz: “Em outras palavras, meu tipo de messias chegará
rindo e contando piadas. (...) O fanatismo é muito contagioso. Pode-se pega-lo
no próprio ato de tentar cura-lo. Conheço o perigo de se tornar um fanático
antifanatismo. Assim como a violência, o fanatismo pode se disfraçar de várias
outras coisas”.
Nenhum comentário:
Postar um comentário