A doutora em
filosofia por Oxford, Kate Williams, escreveu um livro excelente. JOSEFINA,
lançado no Brasil ano passado, pela Editora LeYa, é um retrato do Século XVII
na Europa, da Era Napoleônica, contado a partir de uma personagem principal, a
imperatriz da França, Josefina, coroada pelo próprio Napoleão, depois de
colocar a coroa em si próprio.
Há dois anos li
parte da obra de René de Chateaubriand, literato e embaixador francês durante o
império napoleônico, e os desvarios de Napoleão estão retratados ali. Mas
Napoleão só veio a me interessar mesmo depois de julho, quando estive na
Córsega, sua terra; estive na cidade onde nasceu, Ajaccio. Visitei a casa de
sua família, onde viveu toda sua infância e parte da juventude, até se alistar
no exército e deixar a ilha. Veio de uma família de comerciantes, gente
simples, casa relativamente simples. O
que mais me impressionou na sua casa-museu foi um detalhe que pode ter passado em
branco para tantos, mas não para uma psicanalista: aos nove anos, quando ganhou
um cachorro, colocou o nome dele de Nero. E quando começou sua ascensão em
Paris, depois de adquirir fama na guerra, massacrando austríacos, italianos,
alemães, dizia aos quatro ventos que queria ser para os franceses o que Cézar
tinha sido para o Império Romano. Arrisco a dizer que desde os nove anos a
ambição dele já estava lá, de ser um imperador.
Só nisso ele
tem em comum com Freud. Perdoem-me por comparar Freud com esse sanguinário e
cruel homem. Também Freud veio de uma família de comerciantes, queria deixar
seu nome na história e sonhava com a Itália. Mas Freud não se identificava com
Nero e sim com Aníbal, que conquistava Roma e subjugava os romanos. Quase. Mas
há uma diferença fundamental: Freud o fez com as palavras, com a escrita, com
uma nova concepção sobre o sujeito. Ele, com seus estudos sobre a histeria,
criou a psicanálise e mostrou ao mundo quem é o homem: senhor de nada, nem de
sua mente, nem de suas emoções, nem de sua infância. O homem, um reizinho
destronado. Napoleão, ao contrário, acreditava em seu poder de vida e morte
sobre quase todos. Só não sobre Josefina.
Josefina nasceu
na Martinica, uma crioula, como todos faziam questão de marcar. Chega a Paris
com um casamento arranjado, tem com esse homem dois filhos. Come o pão que o
diabo amassou: seu marido a desprezava, a achava uma cafona estrangeira, uma
crioula da colônia. Sem beleza. O marido morre, ela fica pobre, sem condições
de sustentar os filhos. Mas é jovem, bem arrumada, já se refinou um pouco e
vira uma cocote. Vamos dizer assim,
ela tinha uns amantes ricos que a sustentavam. Isso tem outro nome, mas o livro
não o coloca em nenhum momento e nem eu vou dizer aqui.
Ela tem amigos
na revolução - Luis XVI e Maria Antonieta tinham sido degolados há alguns anos.
Ela é presa e sai da cadeia como uma revolucionária, com a moral em alta.
Napoleão não tinha ainda trinta anos – ela era três ou quatro anos mais velha
que ele – volta da guerra famoso. Não tinha tido ainda um relacionamento
significativo. Feio, baixinho, com
sentimento de inferioridade, era tímido com as mulheres na mesma proporção em que
era cruel nos campos de batalha. E essa mulher famosa, fina, que se tornou
Josefina, deu atenção para ele, conversou com ele em uma festa, não o tratou
como um corso caipira. Isso os dois tinham em comum: os caipiras, os rústicos
das colônias, buscando aceitação na corte.
O livro de Kate
Williams copia trecho de várias cartas que Napoleão escreve para ela. Ele foi
louco de paixão por essa mulher. E só a largou porque ela não conseguiu lhe dar
um filho. Ele teve um filho com uma amante, que não reconheceu, e depois que se
divorciou de Josefina para casar com uma princesa, teve seu filho de sangue
real. Mas seus súditos se viraram contra ele quando o sonho dourado da França
começou a ruir. Foi preso e exilado. Nesse momento em que o império napoleônico
vira bolha de sabão, Josefina sai de cena, morrendo aos 51 anos, deprimida e chorando
todo dia por ter sido abandonada por Napoleão.
Napoleão escreve a esse filho que teve com a
princesa da Áustria, Maria Luisa, desejando a ele um futuro de glória, que
representasse seu nome, Napoleão. O jovem, que ainda em vida Napoleão Bonaparte
deu o título de ‘O Rei de Roma’, vive em Viena, com a família da mãe e morre
aos 21 anos, de tuberculose.
De tudo o que
mais me impressionou foi a história de Josefina. Era uma crioula da Martinica,
uma mulher sem cultura (detestava estudar, ler), sem beleza, com os dentes
estragados pelo excesso de açúcar nos seus tempos de infância na fazenda (não
mostrava os dentes em público, pois eram pretos) e se tornou a mulher mais
cobiçada, invejada, copiada, da Europa. Inclusive pela paixão louca que
Napoleão lhe devotava.
Era uma
perdulária, vivia endividada, por mais dinheiro que tivesse, sempre gastava
mais. Comprava 900 vestidos por ano, 50 pares de luvas em um mês. Tinha três
vezes mais joias que Maria Antonieta teve. E depois que virou divorciada passou
a se interessar por arte e paisagismo. Encomendou ao escultor Canova a
escultura das Três Graças. Essa obra, que ficou tão famosa, foi muito cobiçada
logo após sua morte e, comprada pelo Czar da Rússia, hoje está no Hermitage.
Tive oportunidade de ver a obra em 2013, quando estive em S. Petersburgo.
Eu queria saber
por que os tiranos, quando saqueiam cidades, uma das primeiras coisas que
querem fazer é confiscar as obras de arte. Só pelo símbolo de poder mesmo,
porque Napoleão era um grosseirão e não estava nem aí para arte. Dava tudo de
presente para Josefina, que soube guardar e cuidar dos quadros caros em sua
casa de Malmaison. Depois do divórcio, uma parte desses quadros ela doou a um
museu de Paris e a outra parte manteve consigo mesma.
Para mim ficou
como um exemplo: uma mulher que superou sua própria história, fez-se de chique
sem o ser, de bonita sem o ser, de culta sem o ser. Um engodo? Uma farsante? De
forma nenhuma. Do nada, de tudo o que lhe faltava, construiu seu nome. É a
história de toda mulher.
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