Alguns meses antes de ir à Cartagena
das Índias, verão de 2016, preparei-me para a viagem relendo Cem anos de
Solidão, romance de Gabriel Garcia Marquez, ambientado nas ruínas e no calor
sufocante de sua cidade amuralhada. Também reli meus livros de Álvaro Mutis, as
aventuras de Maqroll, o Gaveiro, personagem onipresente em vários de seus
livros, singrando com diferentes navios os mares e rios do mundo, sobretudo o
mar do Caribe.
Pesquisando na internet, descobri um
novo autor, Roberto Burgos Cantor, nascido em Cartagena das Índias, e que ambienta
nela sua novela “El patio de los vientos perdidos”. Só com esse nome, que já é
uma poesia, quis lê-lo. Quando estive em Cartagena, nas duas livrarias em que
fui, não o encontrei. Nem em uma que estive em Bogotá. Mas não o esqueci. Como
não consegui comprá-lo por esses sites de venda de E-books, quem sabe não o
encontro em PDF nessa selva virtual? Também não tive sucesso. Pesquisando
resenhas e comentários sobre o livro, encontrei o do escritor Cristo Garcia
Tapia. Escrevi-lhe que procurava o livro de Burgos, se ele o tinha em versão
digital, pois não tinha conseguido comprá-lo na Colômbia, nem no Brasil e nem importá-lo.
Respondeu-me dizendo que conhecia o autor e iria me colocar em contato com ele.
Assim o fez; de início, o próprio Roberto Burgos Cantor escreveu-me e, depois,
uma pessoa indicada por ele – talvez sua editora – pedindo meu endereço e dizendo-me
que me enviariam o livro.
Nem estava acreditando. Passaram-se
uns dois meses, o livro não chegou e já estava meio obcecada com ele. Tinha até
sonhado que estava sentada em minha poltrona de leitura, com ele às mãos,
lendo-o em um domingo de sol e muito vento. Recebo um email de Adriana, com
quem tinha trocado e-mails, dizendo que o livro foi enviado com o número errado
de minha rua, tinha sido devolvido e estava em São Paulo. Deu-me o localizador
dos correios. Liguei em São Paulo, localizaram-no para ser devolvido, disse meu
endereço certo, mas o homem dos correios não podia fazer nada, iria seguir a
burocracia e o livro voltaria à Colômbia. Eis “El pátio de los vientos perdidos”
perdido para mim. Respondi para Adriana que quando fosse à Espanha iria compra-lo,
pois já tinha verificado que estava editado lá. Mas o autor insistiu e pediu-me
novamente o endereço. Mais dois meses e o recebo em meu consultório. Nisso tudo
foi um ano.
Recebi “El pátio de los vientos
perdidos” com uma dedicatória de Roberto Burgos Cantor: “Para Andréa, com a
persistência de um abraço, e o desejo de que dessa vez ele chegue. Roberto”. Chegou.
Demorou um ano, passou por endereços falsos e corretos, pela selva digital,
pela ajuda de Cristo Tapia, e além da minha persistência, teve a do autor de
que seu livro chegasse até mim.
E o livro chegou em uma edição
comemorativa de 30 anos de publicação. Na capa, os elogios de Álvaro Mutis ao
livro e uma frase de Garcia Márquez, dizendo que gostaria de ter podido
escrever alguns capítulos desse livro. Depois de ler “El patio de los vientos
perdidos” essa afirmativa é perfeita compreensível: o livro é maravilhoso,
quase todo uma poesia. Germania de la Concepción Cochero abre um bordel em uma
casa com um pátio aberto para o pântano, a mirar os caranguejos, os peixes
pulando no ar no começo da tarde, a partir desse lamaçal podia-se contemplar o
céu, espesso de garças e gaivotas, que ao acaso mandam sinais. A casa tomava
como sua 200 milhas de mar, entre o pátio e a praia. Entre as populações
ribeirinhas, nos canais do rio, escolheu as mulheres que trabalhariam em sua
casa.
Para mim, a casa era a protagonista
da novela. Era possível caminhar entre os caranguejos, na lama salgada, entre a
casa e o mar, nessa casa em que as mulheres da vida prometiam uma vida melhor,
ainda que só por alguns instantes, uma vida de ilusão, que combatesse as ruínas
dessa cidade em que, em outro tempo, as muralhas protegeram as mulheres dos
piratas - em que as roupas para secar sacolejam como bandeiras nos mastros, em
que o vento com areia chicoteia as pernas.
O livro é todo escrito com poesia, a
geografia do pátio e dos sentimentos é de uma beleza que chega a doer. Várias
páginas li e reli inúmeras vezes, como se lê os poemas. Gostaria que todos
vocês lessem e sentissem o que senti ao ler esse livro. Temo que esteja
exagerando meu apego ao livro porque o quis muito tempo, esperei por ele muito
tempo e chegou até mim depois de tê-lo perdido. Por isso citarei a seguir dois
trechos que gostei demais. E cada um faz sua análise deles. Eu, por mim, já
digo que não posso emprestar esse exemplar para ninguém: não sai da minha casa.
“...y si por lo menos lo décimos para
espantar la de malas y no dejar que más adelante pasados los años nos coma el
rencor por no ser lo que quisemos ser envejecidos de soledad sobreaguando em las
babas de la rutina y la venganza del desconsuelo que nos impone la mentira de
que todo en la vida es la mismísima vaina y la libertad de estar juntos maltratada
se fui sin estropício ay remember es
muy tarde y sería tonto abolir las dificultades las que callábamos em la
creencia de que se perdía tempo em resolverlas y las saltamos piedrecita em el
zapato que no se le pone nombre y nos tuerce el caminado...”.
E ainda mais um trecho de poesia: “...coincidimos
en aceptar que este mundo no es el que nos merecemos que no lo inventamos remember que es maluco y nos toca
mamárnoslo y él nos mama y no hay otro pero este no hay otro lo décimos hoy
carcomida la ilusión por los castillos derruidos y la sensasión de no tener
lugar nacía en el crecimiento del afecto que no cabía la estrechez nos
destripaba y assistíamos al derrumbe del sueño convencidos de que no
perderíamos el nuestro y jugábamos a sobreaguar será que la felicidade no existió
remember que ansiamos algo que no se
conoce que nadie ha probado y nos confundimos y vamos de pretexto en pretexto parapetos
y estuve contento el contento de que tú
existieras y nos hubiéramos visto y estabas ahí....”.
E se lê assim, sem ponto, sem
vírgulas, sem espaço, com a mesma ânsia posta nas frases de quem se destripa a
procura da felicidade. Existe ou não existe? Pergunte-se sem ao menos respirar,
rapidamente, diante de um mar revolto, de um lamaçal repleto de caranguejos, de
um aguaceiro de dezembro, de garças e gaivotas, sob o céu do Caribe, de uma
cidade amuralhada, corroída pelas ruínas, em um pátio de ventos perdidos onde
as mulheres vendem o corpo e também as ilusões.
O livro demorou um ano para chegar
até mim, pegou atalhos, retornou ao seu país, voltou para mim. E, chegando ao
seu destino, eu o li de um fôlego só. Escrevo-lhes para dizer que se algum dia
estiverem diante de alguma livraria e encontrarem “El patio de los vientos perdidos”
comprem sem pestanejar. É uma lástima que não esteja traduzido em português.
Quanto ao meu exemplar, já aviso, avaramente, não empresto para ninguém.