Um homem desconhecido com o qual conversei em um navio, próximo do ponto mais meridional da terra, depois da cidade posicionada no fim do mundo, contou-me que tinha ido até aquela cidade para turismo. Apaixonou-se por ela, pela língua e resolveu fazer dela sua casa. Voltou para Riga, na Letônia, organizou suas coisas e se mudou para Ushuaia dois meses depois. Abriu uma fábrica de sardinhas e agora era feliz nessa cidade escolhida pelo seu coração. Está ali porque todo eslavo que chegava à Patagônia, as agências de viagem o chamavam para ser intérprete de russo. Logo essa língua, que não era a sua, era a do vizinho conquistador. Já tinha outras duas, a maternal e o castelhano que tinha amado, não essa. Mas ganhava dinheiro falando russo. Estava no navio como intéprete de um casal de Moscou. E eu quis saber mais sobre Riga.
Isso
aconteceu anos atrás, antes de eu ir até a Estônia e navegar pelo Mar Báltico. Quando
estive tão perto de Riga, ficava lembrando do que ele tinha me contado sobre ela. Cheguei a Tallin, a trezentos quilômetros de Riga e não quis ir conhecê-la, a
cidade abandonada por ele.
Com seus
imensos olhos azuis, brilhando de alegria, contou-me que ainda acordava, às
vezes e por segundos, e achava que estava no bairro em que morava na
infância, o Zolitude. Eu perguntei se, em espanhol, era solidão – a sonoridade
da palavra era tão parecida – e disse que sim. Depois se mudou e foi morar em
uma casa perto da biblioteca da cidade, e também da ponte Akmens (anotei tudo
que ele me falou em meu diário de viagem). Depois dos segundos nostálgicos com a solidão
da infância, acordava para sua cidade atual, para a casa de Ushuaia, em que, de
uma janela do andar de cima, enxergava, à distância, a cordilheira reinando
sobre tudo.
Fiquei
pensando em alguns momentos, nos dias seguintes, sobre o que me contou sobre
seus sonhos com o bairro da infância, o nome fazia parecer um chiste, chamava-se
Zolitude. Meu interesse era freudiano. E lembro que cheguei à conclusão, à
época, que sua saudade era do infantil perdido, não da cidade. Deve ter sido
por isso que estando perto dessa cidade abandonada por ele, nem quis ir conhecê-la.
E lembrei
novamente do letão de olhos azuis, anos atrás, pesquisando sobre os escritores
da região báltica. Descobri que houve um letão aventureiro e caçador, que
escreveu quatro livros sobre suas aventuras na América do Sul. Deixou Riga e
foi conhecer a Argentina, no começo do século XX. Um tanto entediado com Buenos
Aires, acabou chegando ao Centro-Oeste do país, veio caçar oncas-pintadas no
Pantanal. Sasha Siemel foi dar uma palestra na Pensilvânia sobre suas aventuras
nesse fim de mundo do Pantanal; casou-se com uma fotógrafa americana e foi
morar com ela em Corumbá. Moravam em uma casa flutuante, ancorada às margens do
Rio Miranda. Deu palestras e escreveu livros sobre suas errâncias.
Sasha Siemel,
no começo do século passado, de Riga para o fim do mundo que era Corumbá,
vivendo num barco, no Rio Miranda, escreveu um livro em que o garoto letão, que
morava na Zolitude e passou a morar perto da biblioteca, e nela entrava toda
semana, encontrou e resolveu retomar os passos do aventureiro escritor. Mas
diferente do conterrâneo, gostou de Buenos Aires, da Argentina, e resolveu
descer até o extremo sul. E fez de outro fim do mundo, o seu mundo. Esse
romance que inventei, encadeando duas vidas, fiz para responder à pergunta que me surgiu:
será que ele leu os livros de Sasha Siemel? Um romance é a história de um destino
completo, escreveu Macedônio Fernandez. Lembrei agora do portenho, já que
pensei em Buenos Aires.