quarta-feira, 31 de agosto de 2016

A riqueza de um país que já foi um império. Um museu a céu aberto


Na semana passada, a Itália foi notícia pelos terremotos que atingiram o centro do país, várias cidades atingidas. Amatrice é a mais conhecida, mais turística. As cidades atingidas ficam cerca de 100 km de Roma. Fiquei me lembrando desse país em que estive por três vezes, por isso a crônica da semana, a primeira de várias, tem como tema o país.
Estive na Itália pela primeira vez em julho de 2010. Juntamente com Alba, minha amiga de andanças pelo mundo, cortamos de trem o país de norte a sul, de Milão a Capri. De Nápoles a Capri, de navio, claro. Em partes do trajeto tivemos a companhia de Andréa Helena, Rainer e Inês. Depois, em 2012, nos primeiros dias de uma primavera ainda com cara de inverno, fria e chuvosa, eu e Fabiana Silvestre andamos pelo norte do país e chegamos a Roma para passar a páscoa. No ano passado, novamente com Fabiana, e também Silvana e Patrícia, fomos a Milão, Trieste, Pádua, Veneza, Livorno, depois pegamos o navio para a Córsega e entramos novamente em solo italiano na ilha da Sardenha. De lá, da cidade de Olbia, pegamos o avião para Roma, onde passamos alguns dias. Enfim, como se pode ver, o país tem muitos lugares lindos para serem conhecidos. E eu, pensando agora, tenho muitas amigas que se dispõem a conhecer o mundo, e especialmente a Itália, comigo. Fabiana Silvestre é uma delas. Toda vez que vai a Europa, quer ir à Itália, digo que tem outros países lindos a serem conhecidos, mas ela quer novamente a Itália.
Antes de viajar para lá pela primeira vez, estudei muito sobre o país e li romances que se ambientavam no solo italiano. Conto aqui um pouco como foi minha primeira andança em terras italianas. Li o que dois autores escreveram sobre a Itália: Rainer Maria Rilke e Stendhal. Nenhum deles italiano, mas estrangeiros que se apaixonaram pelo país. Como eu. Que me desculpem a comparação presunçosa.
A paixão do escritor Stendhal pela Itália é bem conhecida. Por todo o país, pela sua história, pelo temperamento dos italianos. Em contraposição a sua França, à época de Napoleão. Ele escrevia que enquanto a Itália produzia os Rafael, os Ticiano, Correggio, Petrarca, a França produzia "esses bravos capitães do Século XVI, hoje tão desconhecidos, que mataram tantos inimigos".
Ele dizia que em contraponto ao motivo monetário das guerras da França, da Inglaterra e da América, os italianos disparavam tiros por motivos passionais. Na verdade, ele ressalta muito esse caráter passional dos italianos.
Isso já é notório, o temperamento dos italianos. E no país todo. Talvez mais ainda no sul. Os italianos são acolhedores, mas exagerados, brigam alto nas ruas, gesticulam. São curiosos. Um exemplo, mas poderia dar vários: estava no supermercado, escolhendo alguns cachos de uva e um senhor chega falando alto comigo, praticamente gritando. Eu demoro para entender que ele estava dizendo, na “briga” comigo, que eu estava comprando uvas verdes, não era época para aquelas uvas que eu pegava estarem maduras. E toda essa fala, gritos, gesticulando, era para falar comigo, pedir de que país eu vinha.
Sou de família paterna italiana, cresci escutando a família falar italiano; estudei italiano durante a faculdade e alguns anos depois de formada. Retomei meus livros e cadernos de italiano por seis meses antes da viagem e cheguei lá e depois de dois dias imersa no idioma, já estava falando razoável. Não imaginava que saberia falar, que teria essa fluência. Agradável fluência
Roma é um museu a céu aberto. Em cada esquina, uma ruína, uma história. A Fontana de Trevi não tinha aquele encanto como nos filmes, e o calor era insuportável nesse julho de 2010. O sol parecia mais ardente do que o nosso. Há hordas de turistas por tudo, não se consegue tirar uma foto que não apareça pelo menos umas cinquenta pessoas. Mas peguei um taxi e o taxista me mostrou uma fachada de uma casa qualquer que tinha sido projetada por Brunesleschi. Aonde um taxista poderia me dar uma aula de arquitetura? Se não em Roma, é improvável.
Eu e Andréa Rodrigues levantamos uma manhã em Florença antes das seis horas da manhã para encontrar a cidade vazia, tirar umas fotos do rio Arno sem uma multidão e para ficar à frente na fila de quarteirões para entrar na Galeria Uffizzi.
Tinha me prometido nessa segunda vez na Itália: nas grandes cidades turísticas, em julho, não dá para ir. Chega. Mas saí de lá e só lembrei-me da beleza do país e, esquecendo o que prometi a mim mesma, apareci em Roma em julho do ano passado. Calor insuportável, o asfalto das calçadas até derretia sob meus pés, multidões se trompando nas ruas, o ar condicionado não funcionava direito em lugar nenhum. E mesmo assim, lembro mais do museu etrusco que fui pela primeira vez, da beleza da vista a partir da Vila Borghese, que ainda não tinha conhecido, da ópera La Traviata, que assistimos na igreja São Paulo Entre Muros. Roma é assim: não importa quantas vezes você vá, sempre tem coisas que não viu ainda.
E você sai irritada de lá, com tanta desorganização, calor, gente, bagunça, promete que não volta – pelo menos não em julho – por um bom tempo, mas depois esquece tudo. E passam-se uns meses e já está lá você, suspirando por ela, sentindo saudades do sorvete que tomou em frente à Fontana de Trevi, só se lembra do gosto maravilhoso do sorvete, esquece que teve que enfrentar fila, empurrar uns quantos que queriam passar na sua frente, esquece que teve que esperar horas para tirar uma foto só com umas dez pessoas aparecendo junto com você. E em Florença, esquece que teve que madrugar para ficar em uma fila.
Como as grandes paixões, da Itália lembramos com nostalgia das coisas inesquecíveis, as outras são comezinhas, não nos impedem de voltar. Para os passionais recomendo irem à Itália, para os que não são, recomendo ir à Itália, pois para viver a vida, e não apenas sobreviver, é preciso se apaixonar. Vão para Roma, percam-se nas ruas estreitas e medievais próximas da Praça de Espanha, da Via Condotti, do Panteão, comam suas massas, conversem com os italianos, tentem entender seu jeito exagerado. Sinto-me, sempre, um pouco em casa.  


Há viagens das quais nunca regressamos. A Bélgica que ainda vive em mim


Sempre a Bélgica ficará para mim como um lugar de muitos dias nublados e frescos, de caminhadas pelo campo, de fotos tiradas pelos caminhos, de canais e crepes, de uma língua tão difícil que nunca consegui aprender. Estive lá em diferentes momentos, nas várias estações do ano e escolhi a primavera como a mais bonita.
Estive lá antes de Theo e depois dele. Com ele foi melhor, conheci o país e andei por muitas cidades. Em algumas, literalmente. Ele registrou-me em um clube de marcha atlética, participei de várias. Andei mais de cinquenta quilômetros em três marchas, em três cidades diferentes.  
Para mim as quatro cidades que mais gostei de conhecer: Gand, Damme, Tongeren e Dinant. No Século X, uma violenta tempestade varreu a costa do Mar do Norte e abriu um canal perto da cidade de Bruges, ao final desse canal se formou uma vila de pescadores. Assim surgiu a cidade de Damme. Pequena, linda, rodeada de moinhos e canais; do alto da torre da igreja, avistei a cidade de Bruges e o Mar do Norte. A beleza de Tongeren não enche tanto os olhos, mas reconheci seu grande valor histórico. Foi entreposto dos romanos, via de comunicação entre os vários reinos conquistados. Mas ali os romanos encontraram um povo nativo bravio, que ofereceu resistência. Ambiorix colocou Júlio Cesar para correr. Uma vez, pelo menos.
Dinant é para encher nossos olhos de beleza, construída à beira do rio Meuse, com uma catedral colada a uma grande rocha, cheia de flores e casinhas lindas. Mas foi palco de uma batalha horrível na I Guerra Mundial. Ela foi capturada pelos alemães, e contra-atacada pelos franceses. Eles combateram na cidade. Os alemães incendiaram vinte civis. Escrevo só para que vocês não pensem que é novidade do Estado Islâmico essa barbárie que é incendiar pessoas. E depois, os alemães mataram 674 civis desarmados, novamente cidadãos de Dinant.
E, finalmente, Gand. Cidade bonita, repleta de canais, com arquitetura gótica abundante, uma catedral imponente, várias construções imponentes, evidenciando uma cidade que já foi das mais importantes da Europa, dos Séculos XI ao XVI. Nela nasceu e foi batizado Carlos V, o Imperador do Império Românico-Germânico. É a cidade de Theo.  
Andei muito pelo país, entre as torres de Bruges e Gand, sob o céu flamengo, com o vento forte do Mar do Norte no rosto. O país plano, o céu flamengo, o vento do Mar do Norte, o território mapeado entre as torres de Bruges e Gand, são as marcas que Jacques Brel coloca de seu país em suas músicas. Jacques Brel é um cantor de língua francesa muito conhecido, inclusive no Brasil, sobretudo por sua música Ne me quitte pas. Eu não sabia, antes dessas viagens, que ele era de família paterna flamenga e que compôs essa música em flamengo, depois traduziu para o francês. Temos uma versão em português dela, cantada por Raimundo Fagner. 
A Bélgica é uma junção territorial de dois povos, duas línguas. Os valões falam o francês e os flamengos, da região de Flandres, falam o flamengo, que é um holandês com galicismos. Perguntei a Theo se a diferença entre o holandês falado na Holanda e o falado em Flandres era muito grande. Resposta: pelo que estou estudando do português, a diferença é menor do que o português de Portugal e do Brasil.

Em Bruxelas, eu adorava andar pelas ruas próximas da estação de trens. No geral, ruas próximas a estações ou rodoviárias não são muito cheirosas, mas em Bruxelas cheiravam a chocolate. E não qualquer chocolate, o verdadeiro chocolate belga, o melhor. Depois da estação, subia as escadas e virava à direita, seguia pela Rua Kantersteen e encontrava uma das melhores lojas de chocolates, que fazia um chocolate artesanal desde 1919, o cheiro maravilhoso inundava o quarteirão todo. Nenhuma cidade do mundo por onde andei tem esse cheiro. Bruxelas é doce, cheira a chocolate por tudo.
Estávamos, eu e Theo, jantando em um dos restaurantes da Rua de Bouchers e ele começou a me contar histórias dessa rua de restaurantes, de como ela era há trinta anos. Sentia uma nostalgia da Bruxelas de outrora, com menos trânsito, onde todas as pessoas se conheciam, se cumprimentavam. Contava-me histórias da Bélgica da época em que seus pais eram vivos. Contou-me histórias da II Guerra Mundial que lhe foram contadas por seu pai, quando ele era pequeno. Eu lhe disse que isso tinha de ser escrito, tinha que se transformar em um livro. No ano anterior, eu havia publicado meu primeiro livro e estava esboçando umas ideias para o segundo, estava pesquisando sobre a II Guerra Mundial para um capítulo desse segundo livro. Por isso meu segundo livro foi dedicado a Theo. Por isso e pelo amor de outrora. Quando tivemos essa conversa durante o jantar, ele pediu-me que o ajudasse a escrever esse livro nostálgico de seu país de antes. Disse sim e passei a anotar tudo que me contava. Tenho isso ainda comigo: apontamentos para um livro futuro que não existiu, memórias, cenas da vida desse homem e de seu pai, empobrecido e humilhado durante a guerra, recortes de vidas que não foram minhas e nunca serão. O que fazer com esses retalhos de um livro inexistente sobre a Bélgica?
Continuo me interessando muito por esse país, sua capital, a Grand Place tão milenar, suas ruas e seus invernos gelados, com flocos de neve que correm na horizontal a te perseguir pelas ruas. Sinto saudades dessa língua tão difícil, que não consegui aprender mais do que algumas palavras, de sua culinária maravilhosa, de seus chocolates insuperáveis. Mas, sobretudo, sinto falta das pessoas, de sua curiosidade contida, de sua reserva um pouco medrosa, de seus sorrisos envergonhados. Miguel Souza Tavares, no romance “No teu deserto”, escreve que há viagens das quais nunca regressamos.  Tudo está em mim, ainda. Intensamente. Não se esquece um lugar onde se foi feliz.



terça-feira, 30 de agosto de 2016

Monschau, a cidade de contos de fadas que aspira a ser de outra época


Era uma vez um sábado ensolarado de um mês de maio de uma primavera na Bélgica. Começo assim, como se começam os contos de fadas, pois Monschau é uma cidadezinha alemã de contos de fadas, congelada em um tempo medieval, com suas casas de madeirame, dividida por um riacho e com calçamento de séculos passados. Tudo nela aspira a ser de outra época, tudo nela parece ter saído de um livro de estórias infantis.
Monschau fica na Alemanha, do outro lado da fronteira com a Bélgica, na província da Renânia do Norte-Vestfália. Está localizada na Serra Eifel, uma cadeia de morros que aspira a ser montanha, mas não chega nem a setecentos metros de altura.  Deixando a cidade de Eupen, na Bélgica, passa-se pelo Parque Natural Hautes Fagnes, deixamos para trás as Ardenas Flamengas e chegamos ao Eifel. É uma região de florestas e colinas, e casas no campo à beira da estrada regional, e muitas flores. Dizia a quem guiava o carro: pare aqui, por favor, vou tirar uma foto. Não só uma, mas várias vezes pedi o mesmo. Mais alguns quilômetros nessa estrada reta e quase plana, repleta de árvores tão floradas que se intrometiam nos dois lados da pista, e de flores silvestres que adocicavam o ar, e cruzamos a fronteira: uns vinte quilômetros de minutos depois, chegamos a Monschau.
Quando se está em Gent, na Bélgica, não é longe. Duas ou três horas de viagem e chegamos. Um bom motorista e que conheça o caminho também se faz necessário. Senão se vai pela rodovia federal e perdem-se as estradas estaduais e vicinais e perde-se, também, a beleza do caminho. Saímos de Gent e paramos para tomar café perto de Bruxelas. Em Gent se falava flamengo, nessa parada, perto de Bruxelas, francês. Seguimos pela estrada que vai a Liège. Depois seguimos por uma estrada regional, a E 61, e chegamos a Eupen. É a última cidade na Bélgica antes de entrar no parque natural e cruzar a fronteira com a Alemanha. Nessa cidade, ainda na Bélgica, não se falava nem flamengo nem francês e sim alemão. Gent, Bruxelas e Eupen, três cidades de um país e se falam três idiomas diferentes. Como eles se entendem? Não se entendem. Eupen é uma cidade pequena, menos de vinte mil habitantes, muito antiga e sem cor. As casas foram feitas de blocos de cimento marrom e cinza e assim ficaram com a passagem dos séculos. Sem graça. Pode-se perfeitamente, depois de estar com os olhos cheios da beleza do caminho, passar por ela sem parar. Continuamos.
Depois de Eupen, segue-se pela N 67 e atravessa a fronteira e, em seguida, está Monschau. É organizada para receber os turistas: na entrada da cidade está o estacionamento para os ônibus e carros. Tudo lotado. Não fomos os únicos a desejar passar um sábado de primavera no Século XVIII. O riacho que atravessa a cidade é, na verdade, o rio Ruhr. Quando cruza Monschau, ele é estreito e pequeno, um pouco mais que um filete de água, porém em alguns lugares mais adiante, é bem caudaloso, expande-se e alarga e vai morrer no Reno. A cidade vive da manufatura de objetos de vidros e da fabricação de mostarda. A fábrica de mostarda tem mais de cem anos, mas não senti nenhuma vontade de visitar. Mas pode-se experimentar a mostarda pelas lojas da cidade. E também vive do turismo.
Andamos pelas ruas de calçamento do Século XVIII, tiramos fotos da Casa Vermelha, construída em 1752 por Johann H. Scheibler. No centro da cidade, uma praça, o riozinho, uma colina acima, com as ruínas de um castelo, muitos cafés, o cheiro de chocolate quente se esparramando por toda a praça. E muitas lojas de artesanatos, muitas roupas de cama, mesa e banho bordadas de rendas. Muito lindas, mas não comprei nenhuma, pois se trouxesse para meus amigos, iriam achar que eu comprei no Ceará, pois eram muito parecidas: a mesma delicadeza e até mesmo os pontos parecidos.
Uma coisa engraçada aconteceu, e lembro como se fosse uma piada que fiz, mas não sei por que assim o quis. Eu e Theo tínhamos uma língua em comum, o francês, que não era nem a sua língua materna, nem a minha. Quando chegamos a Monschau, comecei a falar com ele em alemão – mesmo com as limitações que tenho no idioma - e simplesmente mudamos de língua. Ele respondeu nessa língua, a qual também falava bem em função de seu trabalho, e quando cruzamos a fronteira, voltando, retornamos ao francês. Hoje não temos mais nenhuma língua em comum, nem a do amor. Sobretudo essa.

Theo perguntou se eu queria como presente uma toalha de renda, disse não; se eu queria levar alguns potes de mostarda, disse não. Estava em uma cidade de contos de fadas, perdida em séculos passados, com um homem a quem tanto quis, vivendo um dia de conto de fadas em um sábado de primavera. Depois o tempo avançaria, mas ali, naquele momento, eu não precisava de nada mais. E assim foi. Mesmo nessa cidade que aspira a ser de outro tempo, ao sopé de uma colina que aspira a ser montanha, o tempo não para. Ainda bem, é sua maior dádiva. Mas mesmo assim, não posso voltar a ela, com receio de não vê-la com os olhos de outrora. Eu e ela nos desencontramos e nos desentendemos, cada uma falando uma língua, cada uma em século diferente. Não posso mais ir lá, mas vocês podem. E precisam. Ela dá a dimensão de como é ser outra pessoa, viver em outro tempo, falar outra língua, ser estrangeiro de si mesmo, nem que seja por um dia. E ela continua lá, cheirosa, graciosa, eterna, esperando vocês. O tempo fez uma curva lá e parou e está esperando a todos que ainda não foram.  

domingo, 14 de agosto de 2016

Sevilha, capital da Andaluzia, a sedutora cidade para se morrer de amor. Por ela, inclusive...


E cheguei a Sevilha, a capital da Andaluzia: quarenta minutos de trem rápido a partir de Córdoba. É mais aberta para o mundo, com pessoas mais acolhedoras do que em Córdoba e Granada. Foi essa a minha impressão, pelo menos. Perguntei a vários sevilhanos porque lá as pessoas eram diferentes; em situações diversas, disseram-me que mesmo para eles, o povo de Córdoba e Granada era fechado, que eles, sevilhanos, aceitam mais os estrangeiros, estão mais acostumados. Creio que a história é mais antiga. É uma cidade de porto, dali Colombo saiu para descobrir novos mundos. Na Torre de Ouro tem muitos quadros, de vários séculos, que mostram as pessoas indo à torre à espera de novos navios que chegavam pelo rio Guadalquivir. A Torre do Ouro é uma construção mourisca do Século XII, à beira do rio, construída com a função de vigilância a todas as embarcações que entravam no canal.
A Praça de Espanha é um dos exemplos mais ricos e lindos da arquitetura andaluza. Só vê-la valeu a viagem. E tem também a Giralda e a Catedral, a terceira maior do mundo. Somente a vi por fora, pois estava complicado entrar: havia uma greve de funcionários que estava fechando a maioria das portas. Não me incomodei de só tirar fotos de fora, pois já soube na primeira manhã em que andei pelas ruas de Sevilha que teria de voltar. Então, paciência.
Frederico Garcia Lorca, o grande poeta andaluz, escreveu que Sevilha é uma cidade para se ferir, para sempre se ferir. Mas é uma cidade para viver. E quanto a Córdoba, diz que é uma cidade para morrer. Escreve isso em mais de um poema.
Acordava cedo, animada, e enquanto minha amiga ainda dormia, saía para andar horas pelas ruas estreitas do centro antigo. A cidade que mais gostei de visitar na Andaluzia, sem sombra de dúvida. Comprei um xale flamenco de seda pura, verde, de tanto verde que é quase fosforescente, bordado com imensas rosas brancas. São caríssimos, mas em um minuto de loucura, comprei. Usei-o poucas vezes, mas segue sendo meu amuleto dessa viagem inesquecível.  E não só isso, trouxe de Sevilha a maior parte das lembranças de viagem: duas reproduções da Torre do Ouro, que estão penduradas em minha sala; uma miniatura da torre está em meu consultório, e também uma estatueta de uma dançarina flamenca. Tudo, com um bocado de sacrifício, chegou inteiro.  
                                                          
Nasceu em Sevilha um mito que correu mundo, saiu de lá - houve tentativas de saber quem seria o sujeito que deu corpo ao mito, mas nunca se conseguiram os dados históricos – o maior amante de todos os tempos, Don Juan, o Sedutor de Sevilha, que conquistava todas as mulheres e amava a cada uma delas como se fosse a única. O personagem foi criado pelo frade espanhol Tirso de Molina, porém baseado em lendas que já se espalhavam pela cidade. Depois de Sevilha, ela correu mundo pelas letras de muitos escritores. Mas deve ter deixado marcas na cidade, em que seus homens precisam ser muito galantes. Era eu pedir um endereço e o prestativo senhor me levava até onde eu queria, começava a chover e outro me oferecia um canto de seu guarda-chuva até eu chegar ao hotel.  Um senhor a quem eu e Alba pedimos informação sobre a melhor parada para chegar ao nosso hotel, desceu do ônibus conosco e fez questão de levar-nos até a porta do hotel. E assim eram as informações que pedíamos a todos esses sevilhanos donjuanescos.
Sevilha ainda espera meu retorno, com seu passado presente, seus azulejos coloridos, seus Dons Juans. E, claro, com os poemas imortalizados de Garcia Lorca: Sevilha, de longos ritmos e labiríntica, uma cidade para se viver. E morrer de amor. Por ela, também.


Andaluzia, a herança moura da Espanha. Córdoba e Granada. Parte I

                  

                         No voo de Lisboa a Madri, li no jornal El país, uma matéria intitulada ‘Bélgica se evapora’. Um país, duas etnias. E a região de Flandres, nesse momento, mais rica e industrializada, queria sua autonomia, se separar dos valões, de língua francesa, a parte mais pobre. No dia seguinte, já no hotel em Madri, li a notícia sobre um grupo de catalães que queimaram a foto do Rei Juan Carlos, pedindo o fim da monarquia, em mais um movimento de busca de autonomia e separação que a Catalunha já mantém há tempos. Sem falar dos ataques do ETA, que a policia espanhola conseguiu, naqueles dias, frustrar, prendendo os mentores que há anos estavam escondidos no sul da França. Esta busca de autonomia, tendo como critério a raça, seria um reflexo da intolerância que vem aumentando nos dias atuais? De uma busca da comunidade dos mesmos? Foi esta a pergunta, a partir dessas três notícias de jornal, que me fiz no café da manhã de meu primeiro dia Espanha, nessa viagem rumo ao sul.
 Há nove anos escrevi essas considerações que estão no parágrafo acima. Estava muito preocupada com o recrudescimento dos movimentos sectários na Europa. Nem é preciso dizer que em quase uma década as coisas estão piores.
Em Madri peguei o trem à Andaluzia, fui conhecer a herança moura da Espanha: Granada, Córdoba e Sevilha. Ernesto Sábato, o famoso escritor argentino, em seu livro “España en los diarios de mi vejez”, contou sua ida a Madri em 2002, com mais de 90 anos e acreditando que seria sua última viagem ao país. Ele sentiu certa decepção e, sobretudo, uma nostalgia da Madri de outrora.  Sábato pegou o trem rápido em Madri e foi a Sevilha. Escreve sobre o trem luxuoso e de grande velocidade, diferente do de suas lembranças, mas que dava para ver os olivais e o entardecer. Também fui de AVE, o trem rápido de que ele fala. Rápido, confortável, mas perdi os olivais ao entardecer.
Al andaluz é o nome que os árabes deram à Península Ibérica. De 711, quando o chefe berbere Tariq, cruzou o estreito de Gibraltar, até 1492 quando os reis católicos reconquistaram a península, Portugal e Espanha foram governados pelos árabes. Fernando, de Aragão, e Isabel, de Castela, estragaram com seu fanatismo essa civilização na qual as três religiões monoteístas conviveram em relativa harmonia. Eles expulsaram os árabes, e os que não foram expulsos foram escravizados – até hoje, por exemplo, Lisboa tem efeito disso: o bairro dos mouros, que eram escravizados, está lá, com o mesmo nome, a mouraria. Os judeus foram expulsos também e a inquisição instaurada com muita ferocidade. Tinha estudado tudo isso para essa viagem rumo ao sul. 
                                               
Granada e Córdoba são cidades em que a população é mais fechada para o estrangeiro em comparação com Sevilha; vivem do turismo, mas mesmo assim, mantêm muita reserva aos que vem de fora. Na estação de trens de Córdoba havia uma exposição sobre a diversidade. Os dados apresentados sustentavam que 10% da população da Espanha era de estrangeiros. Sem a mínima condição de provar o contrário, eu achei que esse índice estava subfaturado. E mais, a Espanha se fez de estrangeiros: de árabes, romanos, de europeus de outros lugares. É uma terra de muitas línguas desde o começo.
Em Granada enfrentei fila de madrugada para conseguir ingressos para entrar na Alhambra. Acordei ainda escuro, peguei o ônibus e, sem escutar o som dos sinos de Granada ao amanhecer, como Garcia Lorca diz em seu poema, esperei três horas para comprar ingressos. Junto com mais dois mil turistas do mundo inteiro. Já dentro da Alhambra, a fortaleza vermelha, eu tive um pouco de decepção, apostava que estivesse mais preservada. Mesma decepção que em Córdoba: Medina Zahara estava em restauração, pois estava quase toda destruída. Tinha lido um romance sobre ela – À sombra das romanzeiras, de Tariq Ali – e esperava encontrar algo desse passado que o autor retratara. No táxi, indo à estação de trens, o motorista diz que se parece que os reis católicos destruíram esse passado mouro – creio que ele percebeu minha decepção, sem que eu a tivesse formulado mais precisamente – os mouros destruíram o passado romano.
A história da mesquita de Córdoba é a seguinte: construída a partir do ano de 785, por Abderraman I, e inspirada na mesquita de Damasco, sua fundação se sobrepôs à igreja de São Vicente. E depois, Fernando e Isabel reconquistaram a cidade e construíram a catedral sobre a mesquita. É a história de toda dominação: quem vence, tenta apagar as conquistas do vencido. Anos depois de voltar dessa viagem, lendo o escritor árabe mais famoso na atualidade, Eduard Said, eu entendi essa história da igreja\mesquita de outra forma. Said diz que todas as culturas se apropriam de coisas uma das outras, se misturam e que isso é uma coisa boa. Penso mesmo que esse é o melhor tratamento contra o fanatismo, contra a pureza étnica. A igreja de Córdoba, que antes foi uma mesquita, é a prova não só do passado glorioso árabe na Europa, mas, sobretudo, dessa experiência única que durante séculos resultou em boa convivência e não em intolerância. Também isso tem de ser lembrado: o mundo gira, as coisas mudam e a história nos ensina só no a posteriori. À época, os intolerantes e fanáticos eram os católicos, que chamavam os outros de infiéis.
Em Córdoba, entre uma sinagoga e a famosa mesquita\igreja, está a estátua de Maimônides, filósofo e médico judeu, nascido lá, em Córdoba. Em Murcia nasceu o maior filósofo de língua árabe, Ibn Arabi, que depois se mudou para Sevilha. Foi um período da história em que a língua da literatura, da ciência e do poder era árabe.
E cheguei a Sevilha, o melhor da Andaluzia: a capital desse império árabe. Aberta para o mundo, com sua torre de ouro à beira do rio Guadalquivir. Minha amiga fotógrafa Alba enlouqueceu com a beleza de suas praças cheias de azulejos e tirou centenas de fotos. Mas de Sevilha falarei em minha próxima crônica.
Já que estou falando sobre intolerância, não poderia terminar com outro personagem que Federico Garcia Lorca. O grande poeta foi uma das vítimas da Guerra Civil Espanhola, assassinado à época da ditatura de Franco, por ser de esquerda e, dizem alguns historiadores, também por ser homossexual. Nasceu em Granada, mas amou mesmo Sevilha. A cidade para viver, segundo ele, era Sevilha e para morrer era Granada. Escreveu sobre o vento sul, ardente, que tocava sua carne, sobre o amor, a vida, a esperança, o azul do vento do sul.
Como ainda hoje, a orientação sexual de uma pessoa continua sendo motivo para alguém assassiná-la, terminarei com um poema de Federico Garcia Lorca. Em homenagem a ele, esse grande poeta andaluz, e a todas as vítimas dessa absurda intolerância humana.
“Se o amor nos engana, quem na vida nos alenta?
Se a esperança se apaga e a Babel começa, que tocha ilumina os caminhos da terra?
Se o azul é um sonho, que será da inocência?
Que será do coração se o amor não tem flechas?

Se a morte é a morte, que será dos poetas e das coisas adormecidas?”

Colômbia, país de tantas riquezas, de tantas histórias, de tanta cultura


        Estou na Colômbia há duas semanas. Enquanto vocês lêem essa crônica,  estarei ainda em Bogotá, quase voltando para casa, quase no fim da viagem. Vim para um congresso de psicanálise e, como estou no país pela primeira vez, aproveitei para conhece-lo. Muitos colegas e amigos psicanalistas também estão no país, conjugando estudo e turismo.
        Já saí do Brasil entrando no clima colombiano. De São Paulo a Bogotá, vim com o time Nacional, de Medellín. Os jogadores estavam contentes porque ganharam o jogo contra o São Paulo. Passei quase uma semana em Cartagena, cidade maravilhosa - como já relatei em crônica anterior - e no dia treze de julho cheguei a Medellín para o Congresso de psicanálise. Nesse dia, o Nacional, time dessa cidade, ganhou novamente do São Paulo. A cidade parou, na rua todos parados à frente de uma televisão; no parque Lleras havia um telão para quem queria assistir o jogo.
        Além do time Nacional, Medellín é a cidade de nascimento de Fernando Botero, pintor e escultor colombiano famoso por pintar figuras rotundas, dizendo mais claramente, gordas. Creio que Botero e Garcia Marquez são os dois colombianos mais conhecidos no mundo. O Museu Botero em Bogotá é gratuito, exigência do artista para que seu povo pudesse ter livre acesso a sua obra. Em Medellín tem uma praça com vinte e três esculturas suas. Na praça movimentada, as pessoas não só olham, elas encostam, interagem com as obras de arte gigantescas. Sentam-se nas beiradas, em uma delas, em que a mulher-escultura está deitada de barriga pra baixo, sentam-se em suas costas. Se um artista quer estar entre o povo, Botero conseguiu isso plenamente.
                                                                            
            Diante da Praça das esculturas, está o Museu da Antióquia, com três andares de um acervo riquíssimo, muitas obras de Botero e de outros pintores e escultores que ele foi doando em diferentes momentos para o museu. Há uma sala especial para as crianças, chamada Sala Pedrito, em homenagem a seu filho Pedro, morto aos quatro anos em um acidente de carro. Ele pintou muitos quadros para fazer esse luto e para elaborar, com sua arte, essa dor sem nome que é perder um filho.
            Nos dias em que passei em Medellín, só consegui ver a Praça das Esculturas e o Museu da Antióquia.  Nos demais dias fiquei trancafiada em um congresso. Mas só essas duas coisas valem a ida a Medellín, cidade que fica trinta minutos de avião de Bogotá.
              Não posso dizer que conheci bem a Colômbia, mas Fernanda pode. Minha amiga, psicanalista de São Paulo,trouxe a família, seu marido Flavio e as lindas filhas Zoe e Bia. Todos acompanharam a mãe - que elas dizem ser ligada em 220 V - pela Colômbia toda. Pegaram voos, ônibus, subiram em teleféricos, acamparam, passaram por cidades grandes e pequenas desse país montanhoso e de estradas sinuosas. Pergunto a Bia o que foi o mais emocionante e ela me diz que foram duas coisas. O teleférico em Manizales parou com todos lá em cima e ficaram uns vinte minutos parados, trancados, até ele ser  consertado. Bia contou, com surpresa, que uma mulher já adulta, para se acalmar, ficava chamando o próprio pai que não estava lá. Bia tem sete anos e gosta de fazer algumas coisas sozinha. No hotel de Medellin, ela descia sozinha para tomar o café da manhã enquanto o resto da família ainda dormia. Deve ter ficado decepcionada com a insegurança de uma mulher adulta rogando a um pai ausente. A segunda coisa emocionante que me contou foi que pegaram um taxi que andava em alta velocidade e subiu em uma calçada. Nem velocímetro esse taxi tinha. Aliás, o país tem grande devoção a Virgem del Carmen, uma versão de Nossa Senhora. É a padroeira dos condutores, tem santinhos dela nos táxis, nas igrejas, por tudo. Um país com uma santa padroeira dos condutores e com um jeito louco de dirigir. Em Cartagena, os condutores, incluindo motoqueiros, buzinavam o tempo inteiro. Passamos os dias tentando entender a lógica das buzinas, mas não tem lógica nenhuma. Nao se respeita faixa de pedestres, se vira à esquerda, à direita, quase não tem semáforos. É um trânsito um tanto louco. Entendi que o jeito, ao entrar num táxi, mesmo aqui em Bogotá, é rogar à santa e Seja o que Deus quiser.
        Para Zoe perguntei que lugar ela gostou. Resposta:  El Jardin. É um pequeno povoado a 140 km de Medellín. Ficaram hospedados em um hostel simples, de frente a praça da cidade. Às 3h00 da madrugada, o padre da cidade tocava o sino para as pessoas acordarem. Às 4h00 começavam a varrer a rua. É uma cidade um pouco perdida no tempo, em que os moradores se reuniam de manhã e à tarde para, todos juntos, tomar a aromática, um chá de camomila, e conversarem. Nao importava idade, não tinham pressa.
          Bia e Zoe, criadas em uma cidade como São Paulo, podiam ir à praça e brincar na rua com os cachorros. A cidade fazia jus ao seu nome: plena de canteiros de rosas.
                                                                   
          Hoje andando pelo centro antigo de Bogotá, a Candelária - Bogotá é uma cidade gigante, de quase 10 milhões de habitantes - senti que eles não têm a pressa dos que andam, por exemplo, no centro de São Paulo ou de Nova York.
          É uma cidade acolhedora, com pessoas gentis, simples, com uma riqueza cultural e linguística impressionantes. Tem 84 grupos de povos indígenas, ainda são falados 64 idiomas. A culinária é excelente.
         Nao conheci tão bem a Colômbia como Fernanda e sua família, só me faço a pergunta como demorei tanto tempo pra vir pela primeira vez a esse país. Só sei que voltarei outras vezes. O único problema é que Medellín e Bogotá - ainda mais Bogotá - são cidades muito altas. Ao chegar é preciso tempo para se adaptar. Estou em Bogotá a mais de 30 horas e respiro como se tivesse acabado de fazer uma caminhada de 6 km. O ar é mais rarefeito, é preciso tempo para os pulmões se acostumarem. É o conhecido mal das alturas, o soroche.
           Perguntei a Zoe: você conta para suas colegas na escola tudo o que já viveu em suas viagens? Respondeu que não, que eles nem acreditariam.

           Viajar é realmente uma grande aprendizagem, uma riqueza cultural que carregamos conosco. É uma descoberta do mundo, uma descoberta de nós mesmos e uma descoberta do outro, o estrangeiro. É colocar o outro diante de si, como escreveu William Blake. E, por vezes, temos a oportunidade de compartilhar um pouco de tudo que vivemos: a riqueza tem de ser compartilhada.

Cartagena das Índias, no Caribe do cólera, das batalhas e dos amores contrariados

                                                                                


          O pirata inglês Francis Drake chegou a Cartagena em 1586, com uma potente frota, desembarcou e saqueou a cidade histórica. Chegaram à noite em Bocagrande e caminharam até a Ponta do Judeu, onde é hoje o Clube Naval, encostado da cidade muralhada. Outro grupo de sua frota tentou aportar à altura do Forte de Boquerón, mas não conseguiu. Os piratas roubaram jóias e artilharia e Drake exigiu do governo 107.000 pesos para não destruir a catedral da cidade com um tiro de canhão. O governo cedeu e a catedral sobreviveu quase inteira, não fosse pelo sino roubado, que foi derretido e transformado em mais um canhão para os corsários. Retomo esse personagem histórico, presente em minha crônica anterior, sobre a Patagônia, para descrever uma das tantas batalhas travadas aqui em Cartagena das Índias.
        Assim como Drake, estou aportada em Bocagrande, uma península que me leva até a cidade histórica, cercada por muralhas. Bocagrande tem o mar de um lado e um lago do outro. Na verdade, é uma baía em que o mar entrou e a terra quase o fechou aqui. Esse corredor de três ruas vai do mar até a cidade histórica. Estou aqui atolada no calor cartaginês. Assim Gabriel Garcia Marquez sentiu-se ao chegar a Cartagena: atolado no calor de uma pensão, na cidade histórica.
         Heróica, assim foi chamada essa cidade que lutou pela independência dos espanhóis, com calor insustentável durante o dia e noites frescas, conjugando dois tempos, o atual e um passado, imorredouro, tem as construções mais lindas com as portas imponentes abertas para o mundo. Aqui Gabriel Garcia Marques ambientou O amor nos tempos do cólera. E dentre as muitas coisas que escreve sobre Cartagena, adjetiva-a como feita de glórias carcomidas e ruínas. Estava com minha amiga Alba no Banco de Colômbia para fazer câmbio, assistindo à televisão como proceder em caso de terremoto, enquanto esperava chamarem minha senha, quando entrou um homem todo vestido de um terno de linho branco e um chapéu Panamá e pensei: aquele deve ser Juvenal Urbino. É o médico, marido de Fermina Daza, personagem de O amor nos tempos do cólera. Nos arcos da Paróquia, lembro que foi ali que Lorenzo Daza carregou pelo braço Florentino Ariza e lhe disse que não entregava a filha Fermina, selando o impossível desse amor. Em uma de suas pensões, Gabo ficou hospedado e começou a escrever seu romance: tem hoje lá seu rosto desenhado na parede. Na universidade de Cartagena, começou a estudar Direito, mas a Heróica deve ter lhe inspirado tanto que a Colômbia perdeu um advogado a mais para ganhar um dos melhores escritores do mundo.
        É uma cidade das frutas a serem vendidas em cada esquina, sem fast-foods, com culinária maravilhosa. Come-se muito bem aqui. Só o que me faltou foi ter ficado hospedada dentro da cidade muralhada. É o meu conselho de hoje: mesmo que tenha de se ficar em hotel mais simples ou em um hostel, é melhor ficar dentro das muralhas.
                                                                                
        O povo é de um acolhimento, gentileza e alegria ímpar. Uma mulher muito feminista não vai gostar do que vou escrever: os homens são atirados, seguem-te na rua, chamam as mulheres de guapíssimas, roubam beijam, oferecem seu coração, dizem-se apaixonados. É um certo jogo de cena de conquista e flerte ao estilo do amor cortês, que espera que a mulher diga o não, contrariando-o. Assim nessa ficção enganosa em que se diz a verdade do desejo, os homens mostram-se calorosos e ardentes, como os homens do Caribe devem ser. E as mulheres se sentem lindas e adoradas.

        Para mim, depois que li O amor nos tempos do cólera, Cartagena ficou como a cidade dos amores contrariados, desatinados, sem futuro. Essa cidade cheia de histórias de guerras, de luta por independência dos espanhóis, de batalhas vencidas e perdidas contra os ataques de piratas, do cólera, da fome, do calor insuportável, será sempre um templo aos amores impossíveis. E, por isso mesmo, eternos. Nada dura mais na vida do  que o que não se realizou. É isso Cartagena das Índias: uma cidade irrealizada. Escrevo para vocês em tempo real: quem tem um amor irrealizado, venha viver alguns dias sua ruína de amor nessa cidade de ruínas. Quem não tem, traga sua ruína alguns dias para cá. De qualquer forma, para todos, venham para cá. Quanto a mim, eu não volto para casa.

Patagônia na região de Magalhães: a terra de planícias infinitas onde o vento não tem primaveras. Parte II: o lado chileno


No dia trinta de dezembro de 2014, peguei um voo em Santiago, no Chile, para chegar a Punta Arenas, na região de Magalhães, Antártida Chilena. Sozinha, pousaria nessa cidade no extremo sul e pegaria um ônibus para chegar a Puerto Natales, cidade pequena, ponto de parada para ir ao Parque Nacional Torres del Paine. Assim o fiz. Cheguei a Punta Arenas em um verão austral de 10 graus positivos, temperatura razoável, se não fosse por um vento desvairado que entra pelos poros de seu corpo e se acomoda até entre seus átomos. Não fosse por isso, a temperatura seria completamente aceitável.
Eu estudo muito antes de ir para um destino distante. E mais ainda quando é tão inóspito como esse. E não leio apenas os livros de história e o que os poetas e escritores escreveram sobre o lugar. Faço coisas práticas para a viagem: imprimo os mapas, leio os guias de viagem e entro nos sites e blogs de viajantes. A internet tem sido um mapa precioso para me guiar. E também meu celular: liguei-o e já me disse onde estava: Região de Magalhães, Antártida Chilena.
Já sabia que ao sair do aeroporto, teriam várias vans estacionadas à frente e elas levavam os turistas até as companhias de ônibus. Três companhias fazem o trajeto entre Punta Arenas e Puerto Natales, cada uma tem sua loja e seu embarque em locais separados, na cidade. À frente do aeroporto, olhando as muitas vans, decidi por uma porque o motorista me pareceu confiável. Fui até ele, até o momento só eu interessada em contratar seus serviços. Minutos depois chegou um grupo com uns dez japoneses. Eu não sabia qual a melhor companhia de ônibus, mesmo com tudo que tinha lido sobre a viagem, mas os japoneses disseram para ele qual delas eles queriam. Eu fui na onda: pensei “os japoneses são muitíssimos mais espertos do que eu”. Na verdade, depois fiquei sabendo que era a companhia mais barata, não a de ônibus mais confortáveis. Paciência. Na van, fui sentada ao lado do motorista, ele me contando a história da cidade. Ao chegar à companhia de ônibus, os japoneses, apressados como são, pegaram suas malas e saíram. Eu peguei a minha por último. Não pagaram o motorista. Ele foi cobrá-los, o japonês a quem ele se dirigiu apontou para outro, ele chegou nesse e pediu o dinheiro e o homem lhe deu o dinheiro da passagem de todos. Fiquei pensando que lógica era essa: eles só dariam o dinheiro se ele pedisse ou foi um puro esquecimento?
                                                              

No ônibus, já acomodada em direção a Puerto Natales, pude pensar um pouco na história do lugar. Punta Arenas começou como um pequeno povoado, um ponto de apoio aos navegadores, logo depois que Fernão de Magalhães entrou por um canal estreito, navegou por dias e saiu no outro lado, no Pacífico. O primeiro homem que deu uma volta completa ao mundo, de um canto ao outro. O mundo com seus mares e oceanos, ficou para ele, sem fronteiras. Enquanto navegavam, avistaram muitos fogos na terra, fogueiras que o povo nativo acendia para iluminar a noite e espantar o frio. Isso fez esse desbravadores chamarem a terra de Tierra del fuego. Em expedição futura, quando os espanhóis aportaram, encontraram marcas de pés gigantes, o que deu origem ao mito do abominável homem das neves. Os índios usavam sapatos grandes, feitos de pele e couro de animais, que lhes permitiam se locomover melhor na neve. Quando os europeus descobriram isso, o nome patagon e o mito, que tinham construído para esses habitantes ainda desconhecidos, já haviam deixado pegadas, fama. Os índios viraram os patagões, de patas grandes, embora não as tivessem. Enfim, mostra que grande é a imaginação do ser humano.
A esse canal estreito que tinha descoberto, Magalhães deu o nome de Canal de todos os santos: foi o primeiro nome do Estreito de Magalhães. Esse português que renunciou a sua cidadania, porque D. Manuel I teve mentalidade estreita e não quis financiar sua expedição para os Mares do Sul. O rei espanhol Carlos V. o fez, deu-lhe navios, tripulação e provisões, e acreditou em seu projeto de encontrar uma travessia que permitisse ligar dois oceanos. Fernão tinha quarenta anos, por uma causa renegou um rei, uma língua e uma nação. E a descoberta coube à Espanha, feita por um navegador português. Tivesse D. Manuel pessimismo menor e maior visão, hoje na Patagônia se falaria a nossa língua.  E tanto Fernão deu-se a essa causa que dela morreu, seis meses depois. Ele e sua frota atravessaram o estreito e saíram no Pacífico, navegaram margeando ilhas onde hoje são as Filipinas. Reduziram a velocidade para passar por outro estreito, ao lado da Ilha Mactan. Foram atacados pelos nativos e Magalhães foi morto em seu próprio navio, que ele escolheu o nome: Vitória. Perdeu a vida e eternizou seu nome na história, pois o rei espanhol soube valorizar seu feito e rebatizou o canal descoberto por ele, de Estreito de Magalhães.
Depois de Magalhães, a Patagônia Chilena com seu estreito de Magalhães virou o grande atrativo dos navegadores, única passagem de ligação entre o Pacífico e o Atlântico, até séculos depois a engenharia humana fazer o Canal do Panamá.  Anos depois de Magalhães, o pirata inglês Francis Drake foi o segundo homem a fazer a volta ao mundo, atravessando o canal. E para dar-se ares de importante, entrou no canal pelo Pacífico, foi até o Atlântico e voltou para reencontrar o Pacífico e fazer dupla travessia de uma vez só. E também deixou seu nome eternizado lá: o espaço de mar entre o continente e a Antártida é chamado de Passagem de Drake. Essa passagem marítima é onde se dá a pior navegação do mundo, as piores correntes que de lados opostos se encontram e aumentam pelo pior vento do mundo. Só não sei o porquê a Cartografia resolveu nomear essa parte do mar de Passagem de Drake se ele não atravessou por lá e sim pelo Estreito de Magalhães. Enfim, Drake queria se dar ares de importante na dupla travessia e os cartógrafos fizeram algo maior do que ele mesmo, esse pirata destemido, fez: na escritura cartográfica o fizeram navegar até mesmo onde sua coragem não o levou.  Assim, quando no hall do aeroporto de Punta Arenas, os agentes de viagem vieram me oferecer cruzeiro para os Mares do Sul, se aproximando das banquisas de gelo da Antártida, lembrei-me dessa história e respondi de jeito nenhum. Se nem Francis Drake teve coragem para tal, vou ser eu? De jeito nenhum.
E depois de Drake, outros piratas e frotas espanholas, holandesas, suecas e inglesas apareceram por lá. Em 1831, Robert FitzRoy, o capitão inglês do HMS Beagle,  em sua segunda expedição ao fim do mundo, levou o naturalista Charles Darwin e os mistérios das espécies do mundo começaram a ser decifrados.
Estou eu no ônibus olhando as paisagens desoladas de uma planície quase infinita, com vegetação rasteira, poucas árvores, retorcidas pelo vento a ponto de fazerem nós entre seus galhos, umas tantas já mortas, outras lutando bravamente contra o vento para sobreviver, pela janela pareceu-me que o terreno era calcário. Ali, naquela planície, sobreviver é só para os fortes, os muito fortes. É uma paisagem desolada. Nenhum restaurante, nenhum posto de combustível, quase sem construções por duzentos e cinquenta quilômetros. Converso com uma mulher sentada ao meu lado, mora em Puerto Natales, tem um curativo na mão esquerda. Cortou-se. Os pontos foram dados no pequeno hospital de Puerto Natales, mas os cuidados para não infeccionar, ela foi ter em Punta Arenas. Só nessa hora fiquei com medo: se eu passar mal, tiver qualquer problema de saúde, nem meu seguro Assist-Card daria jeito. Ela se surpreendeu por eu estar sozinha, disse que minhas amigas chegariam em três dias. Trabalhava em um restaurante com uma grande loja de artesanato e souvenirs, disse-me que eles teriam ceia de virada do ano. No dia seguinte pela manhã, fui lá e comprei meu lugar na ceia.
O taxista que me levou ao hotel também se surpreendeu por eu estar sozinha e me deu seu telefone: se eu precisasse de algo, poderia ligar para ele. Percebi que ficou um tanto encantado por mim, mas foi muito simpático e gentil, guardei o telefone. Dirigiu pela avenida costeira ao fiorde; o primeiro posto de combustível que vi (a cidade só tem dois) foi da Petrobrás. No Hotel Saltos del Paine fui tão bem recebida por uma atendente jovem, tão simpática e que me explicou tudo o necessário. Com a mulher da mão cortada, de quem não lembro mais o nome, o taxista e a jovem atendente Ana - o posto da Petrobrás também - esqueci a sensação de desamparo que a paisagem desolada me deu. O hotel ficava a uma quadra do porto, fui a pé em direção a ele e havia uma imensa placa de aviso de como proceder em caso de tsunamis. O desamparo não voltou porque passei dias ignorando a placa. Quando Márcia e Alba chegaram, Márcia, que é a pessoa mais engraçada que eu conheço, me disse: você não nos disse dessa placa “corra que o perigo vem aí” – minhas amigas estavam em Santiago e conversávamos pelo whats.
O Parque Nacional Torres del Paine é um espetáculo, passamos um dia inteiro lá. Um conselho: há ônibus na estação rodoviária da cidade, com preço de passagem de circular, que fazem um pedaço do trajeto do parque, dá para se ir assim, sem gastar tanto. E não dá para achar que um dia basta para conhecer o parque. Tudo é tão grandioso que nem cabe nas fotografias. Mas já dei por visto.
                                                              

Quando estava no ônibus, além da planície quase infinita, ao longe, via-se a Cordilheira dos Andes, a separar a Argentina do Chile e um monte mais alto, praticamente vertical, sem escarpas. Confirmei com a minha vizinha de banco: é o FitzRoy? Ela me respondeu que sim. Era para eles a fronteira, para mostrar que ali já era a Argentina. Outro europeu que se eternizou ali: a pior montanha, mais vertical, pior escalada do mundo, tem o nome do navegador Robert FitzRoy. Tudo na Patagônia chilena é o maior: o vento, as marés, a montanha íngreme, a paisagem desolada. E o desamparo humano. Se na Patagônia Argentina, Blaise Cendrars escreveu que a tristeza imensa que sentia cabia na imensidão do lugar, nessa região do Chile, Gabriela Mistral usou adjetivos parecidos: infinita, desolada. Escreveu: “O vento faz de minha casa uma ronda de soluços, e de alaridos, quebra, como um cristal, meu grito na planície branca, de horizontes infinitos, e vejo morrer imensos ocasos dolorosos”. É parte de seu poema desolação. Depois de falar de tantos homens europeus que foram para lá e deixaram seus nomes em tudo, recordo-me de uma mulher simples, uma chilena do norte que foi ao sul de seu país escrever os mais belos poemas sobre a Patagônia, uma professora e poetisa, única mulher da América Latina a ganhar o Prêmio Nobel da Literatura. Sua frase para designar a Patagônia: uma terra onde o vento não tem primaveras.
Ainda mais um conselho: enfrentem o desamparo que tal viagem evoca e não deixem de, pelo menos uma vez na vida, fazer parte dessa imensidão. Minhas idas à Patagônia não terminaram. Tenho de ir ao parque El Chaltén, perto de El Calafate e ver FitzRoy de perto. Procuro companhia para essa viagem, mas tem de ser das fortes.



Patagônia: no fim do mundo, um mundo imenso. Parte I: o lado argentino


Bruce Chatwin, na infância, tinha imenso interesse pelo pedaço de pele com chumaços de pelo avermelhado, guardado dentro do armário, atrás de uma porta de vidro, na casa de sua avó. Em seu livro Patagônia, descreve esse como o fato mais marcante de sua infância. O pedaço de pele, contou-lhe sua avó, era de um brontossauro, enviado por um parente dela que vivia nos confins do mundo, do outro lado do oceano, na Patagônia.
Na escola, falando do pedaço de pele de brontossauro, a professora o desmente: brontossauro não tem pelo, só couro. É debochado pelos colegas por contar uma mentira. Quando a avó morre, os herdeiros se desfazem de todos seus pertences e ele perde o pedaço de pele que gostaria de ter guardado para si.
Ficara o enigma que só depois, como adulto, desvendou: sua avó errou, o pedaço de pele era de uma preguiça gigante, pré-histórica, encontrada nas geleiras da Patagônia por Charley Milward, capitão de um navio mercante que afundou no Estreito de Magalhães. Sobreviveu ao naufrágio e passou a viver em Punta Arenas. Quando encontrou a preguiça gigante, mandou à parente inglesa, distante, um pedaço de sua pele. É esse pedaço de pele que determinará o interesse, ainda menino, de Chatwin pela Patagônia.
Quando adulto, Chatwin deixará um trabalho, deixará a Inglaterra, para uma viagem em busca dessa terra distante, inóspita, descrita por Júlio Verne em "O farol do fim do mundo”. Fará essa viagem como um viajante e não como um turista, percorrerá trechos de mata sozinho, lagos, encostas, pedirá carona em muitos lugares, dormirá em celeiros, junto com peões e ovelhas. Conversará com as pessoas do lugar, com ingleses, galeses, estrangeiros de muitos lugares do mundo, que antes dele, ficaram fascinados pela Patagônia e a escolheram para viver. História de mortes, aculturação e destruição dos índios, verdadeiros donos da terra, de revoluções; briga por terra, poder. Descrições de lugares maravilhosos. Li esse livro como um guia da Patagônia e um mapa para ir marcando os lugares por onde ele passou.

                                                            

Patagônia, de Bruce Chatwin é um livro lindo, uma mapa que levei anos depois para essa viagem que fiz até lá. E que, nem de longe consegui fazer tudo o que ele fez. E nem conseguirei descrever aqui para vocês com a beleza que ele descreveu em seu livro.
O livro de Chatwin começa com uma epígrafe que é um verso do poema do poeta e novelista suiço Blaise Cendrars: "A Patagônia, somente a Patagônia convém à minha imensa tristeza". Nesse poema, Cendrars – eu fui procurar que poema era esse depois de ler o livro de Bruce Chatwin – conta que passou sua infância em uma escola atrás da estação de trem e os trens estavam sempre de partida, isso fez com que, em sua vida, sempre corresse um trem atrás de si, de Bali a Tombouctou, de Paris a Nova York, de Madri a Estocolmo. A beleza é que é um trajeto ferroviário imaginário, impossível de ser feito de trem, pois em todos há um mar no meio do caminho. Eu o entendi imediatamente, pois eu já tive um sonho repetido em que ia de trem de Trieste a Bonifácio, também um trajeto com um mar no meio. E continuo em seu poema: e perdi todos meus pares, e não há mais do que a Patagônia, ela convêm a minha imensa tristeza, a Patagônia é uma viagem pelos mares do sul. “Eu estou nos trilhos, sempre estive nos trilhos. O trem faz um salto perigoso, mas novamente cai e retoma seu caminho, retoma seus trilhos.” É um poema lindo, o poeta faz uma metáfora: a vida é o trem com seus trilhos, mas ela tem acontecimentos inesperados, trajetos inesperados, aos quais ela salta, e depois volta aos trilhos. O mar é esse inesperado, misterioso, perigoso e incógnito. Mais ainda na Patagônia, com os imensos e gelados mares do sul. Na Patagônia os saltos perigosos são muito maiores. E convêm a uma tristeza imensa. Assim o entendi.
Depois de tudo isso que escrevo, constato e creio que meus leitores dessas crônicas já sabem desse óbvio: meus passeios pelos lugares do mundo são sempre, também, um passeio pela literatura. Aprendo muito com aqueles que estiveram lá antes de mim, são meu mapa. E já disse o que achei da Patagônia com Bruce Chatwin e Blaise Cendrars. Concordo completamente com o que eles escreveram. Só não estava nesse momento de grande tristeza, pois era um momento bom de minha vida – vejam que não escrevo depressão, para não adoentar e medicalizar as dores da alma e da existência que a modernidade vem fazendo – mas minha amiga estava, e compartilhei sua tristeza: ela tinha perdido o pai naquele ano e a Patagônia foi propícia para seu luto imenso. Ela estava lá, saltando sobre os Mares do Sul, como Blaise Cendrars. Diante da imensidão que é Perito Moreno, chorou a morte do pai. E quando, por um inesperado da vida, a geleira começou a ranger, barulhos secos, como de uma rachadura imensa, sentamos diante de Perito Moreno, as quatro amigas, e esperamos ele rachar. Quando um bloco imenso caiu, rachou e se perdeu no lago, deslizando para derreter no mar, minha amiga gritou, um grito pelo pai, em memória do pai.
Em dezembro de 2012, com Alba, Fabiana e Priscila, andei muito por suas terras, geleiras, estreitos, nesse lugar mais meridional do planeta, em uma viagem pela Patagônia argentina e brindamos a virada do ano na cidade de El Calafate, com os cacos de uma champagne cara que tínhamos comprado para comemorar e que eu, descuidadamente, quebrei. Improvisamos. Quatro amigas juntas em uma foto, assim veio para mim 2013, augúrio de um ano que se revelou excelente.
El Calafate é somente um ponto de parada para conhecer a natureza ao seu redor: o Glaciar Perito Moreno, El Chaltén e outros parques. Tem bons hotéis e bons restaurantes e Perito Moreno fica a setenta quilômetros, no Parque Nacional dos Glaciares. Fomos até El Calafate de avião, pois fica a quase três mil quilômetros ao sul de Buenos Aires. Ao sobrevoar o aeroporto, a paisagem é um espetáculo, pois viajamos margeando a Cordilheira dos Andes e ao pousar vimos o gigantesco Lago Argentino, nos arredores da cidade.

                                                            

Deixamos El Calafate em outro voo e mais mil quilômetros abaixo, chegamos a Ushuaia, conhecida como a cidade do fim do mundo, a última, o ponto mais meridional do planeta. Depois dela só o Estreito de Magalhães, onde os oceanos encontram-se, o Atlântico e o Pacífico e, mais abaixo o Polo Sul, a Antártida. Fomos até lá no verão – cerca de 7 graus positivos, se é que se pode dizer que é um verão – pois no inverno a temperatura é de cerca de trinta graus negativos e até os aviões têm dificuldades de pousar no aeroporto. Estávamos lá nesse “verão”, na primeira semana de janeiro. Ushuaia é uma cidade muito bonita. O Parque Nacional Tierra del Fuego, nos seus arredores, tem paisagens que enchem os olhos: a Cordilheira dos Andes se intromete no nosso olhar para onde quer que viremos, lagos gelados, a floresta destruída pelos castores, as árvores todas retorcidas pela força do vento, com seus galhos retorcidos. O vento antártico é cruel, atroz. Não existe outro tão forte.
Um imprevisto, um salto dos trilhos do programado: fizemos check-in e chegamos bem antes do embarque no aeroporto. Ele estava tumultuado. A companhia Aerolineas Argentinas fez over booking e colocou um grupo de passageiros, que chegou com um agente de viagem, no voo e a nós e outros tantos, colocou em um ônibus para irmos até a cidade de Rio Grande e lá, algumas horas depois, pegarmos o voo para Buenos Aires. Assim, entramos em um ônibus caindo aos pedaços, sem banheiro, sem cinto de segurança, para rodarmos por estradas ermas, montanhosas, contornando a onipresente cordilheira.
Disse-nos a companhia que era perto até Rio Grande. Abri meu mapa, todas um tanto nervosas – Priscila Guimarães estava em outro voo, poderia ter ido de avião e ter nos esperado em Buenos Aires, mas abdicou de sua passagem aérea e foi no ônibus-sucata com as amigas. Abri meu mapa para procurar Rio Grande, Alba, sentada na primeira fila do ônibus - já fica um tanto nervosa no dia de viagem, isso quando tudo corre bem - vem até mim: você viu no seu mapa qual trajeto vamos fazer? Vamos subir ou descer? Começamos imediatamente a rir com a pergunta que só foi reflexo da preocupação: se descermos, nós sairemos do mapa, não há mais nada abaixo. E assim, duzentos e dez quilômetros depois, chegamos sãs e salvas a Rio Grande, pegamos o voo para Buenos Aires e dissemos adeus à Patagônia. Dissemos adeus a suas paisagens ermas e selvagens, ao seu frio, ao seu vento gelado, ao Estreito de Magalhães, onde passeamos de barco e com leões-marinhos e pinguins olhando-nos das pequenas ilhas, avistamos o encontro dos oceanos. Tudo tem outra dimensão, tudo é maior: a pequenez humana se agiganta, as alegrias podem virar euforias e a tristeza pode parecer imensa.