sábado, 30 de abril de 2011

Em tempos escuros nos ajudam aqueles que souberam andar na noite

E se foi Ernesto Sábato. Morreu para não fazer um século. Data pesada para esse homem que nasceu para batalhar com a morte? Nasceu e sua mãe o batizou de Ernesto, em homenagem ao pequeno Ernestito vindo antes e que morreu. E depois vem ele, a ocupar o lugar do Ernestito que se foi cedo e do qual ela nunca se esqueceu.


Dessa batalha pessoal - que ele nos contou em "Antes del fin" - fez as mais belas frases que alguém já escreveu sobre a vida, sobre a energia necessária para seguir adiante.

E escreveu sobre o fim de sua vida, despedindo-se. Há uns vinte anos atrás. E depois há cerca de dez anos escreveu os diários de sua velhice, novamente se despedindo. Mas resolveu viver mais uma década.

Em "Antes del fin", livro escrito para os jovens que vivem nesses tempos sombrios, nos dá vários exemplos de que o ser humano só cabe na utopia. E apresenta vários exemplos de homens que redimiram a humanidade porque resgataram a esperança e que, através de sua morte, nos entregaram o valor supremo da vida, "mostrando-nos que o obstáculo não impede a história". "Sólos quienes sean capaces de encarnar la utopía serán aptos para el combate decisivo, el de recuperar cuanto de humanidad hayamos perdido".

Confessa que também ele quis fugir do mundo, mas os outros o impediram, as cartas, as palavras nas ruas, o desamparo.

Seu livro "España en los diarios de mi vejez" é umas das coisas mais lindas que já li. E também nele, na sua apresentação, coloca a utopia como o único caminho. E nesse caso a nomeia: "a recuperação da Argentina, este renascer das possibilidades que se vivem hoje, e que mostram, uma vez mais, que o que pareceu impossível está encontrando seus sulcos".

Para ele, a verdadeira solidariedade é o encontro com o outro, tão difícil "nesse mundo acéfalo que abole todas as diferenças". E nesse encontro com o outro, também encontramos um sentido que nos colocará acima da fatalidade da história". Utópico ele? E o que seria o ser humano sem utopia? Desamparado, acéfalo, obscuro. Um nada.
Estamos todos, hoje, um pouco mais desamparados, sem sua escrita que sabia tão bem andar na noite. Sobretudo a Argentina.

terça-feira, 26 de abril de 2011

Budapeste, uma antipatia a primeira vista

Hoje a tarde deixo budapeste e pelo que sinto no momento eh para nao mais voltar. Cheguei aqui no domingo pela manha e nas primeiras horas ja me desgostei dela.
Eh repleta de monumentos e predios grandiosos. Um pouco como Viena. Mas escassa em arte, igreja douradas demais, cheias de ouro, mas sem arte. Cidade sem cortesia, sem limpeza nas ruas, sem acolhimento ao estrangeiro, sem sorrisos das pessoas.
Acho que uma cidade eh feita por suas pessoas e eh na convivencia com elas que fica guardada a cidade na memoria. Acho que eh por isso que todo mundo gosta do Brasil: menos por suas praias e belezas naturais, do que pelo acolhimento, alegria e simpatia de seu povo.
E aqui nao tem nada disso. Alem de faltar obras de artes nas igrejas, limpezas nas ruas, abertura para os estrangeiros, comida gostosa e gente bonita, eles sao arrogantes e se acham. Eles tem um ar arrogante e uma falta de paciencia com quem nao fala a lingua deles.
Estou lendo um livro sobre o levante de 1956, quando tentaram pela primeira vez se livrarem dos russos e sei do horror que passaram sob o jugo comunistas. Alias, o autor, filho de hungaros, conta que para os hungaros, eles viveram tres horrores: o primeiro foi em 1300 e alguma coisa, o dominio dos mongois, uns dois seculos depois passaram 150 anos sob o domininio turco e o terceiro foi com a entrada dos russos no final da II guerra. A cidade foi saqueada, milhares de mulheres estupradas repetidamente pelo soldados russos, assassinatos.
Isso pode ter dado essa prevencao ao outro, ao estrangeiro, ao que vem de fora?

segunda-feira, 25 de abril de 2011

Ser ou nao ser culpada, eis a questao. Sobre uma visita a Auschwitz

Foto de Alba Abreu Lima

Foto de Carla Storino
Nessa sexta feira passada, sexta-feira da paixao, estive em Auschwitz com minhas amigas Alba Abreu Lima e Carla Storino. No trem que pegamos na Cracovia, em direcao a Oswiecim, cidade do interior da Polonia onde foram construidos os Campos de Concentracao e exterminio,  já escutávamos as várias línguas do mundo.
Os poloneses fazem questao de contar, nas placas e guias que comprei la, que todas as seis aldeias, Oswiecim e arredores,  que eles, poloneses, foram transformados em prisioneiros: 60 % eram judeus e já ficaram prisioneiros do campo que ajudaram a construir e os outros 40% nao judeus continuaram prisioneiros para trabalhos forçados dos nazistas. E só depois judeus - e tambem ciganos, presos politicos, e todos os que divergiram do regime  - comecaram a chegar ao campo.
Comecamos a visita de forma errada, mas isso acabou nos dando uma logica diferente, ao final. A visita comeca com Auschwitz I, onde tem o museu e os campos de trabalho, com várias construções que foram oficinas. Em Auschwitz II- Birkenau é que eram os fornos; em Auschwitz III- Monowitz tambem. Enfim, na estação de trem, tomamos um caminho errado e perdemos de pegar o ônibus que percorria três quilometros até Auschwitz I. Assim, chegamos direto ao lugar dos fornos crematórios. Em Birkenau, os fornos crematórios foram destruídos pelos nazistas no momento final, tentando apagar a historia. Mas é simplesmente horrível chegar lá. Na entrada, os trilhos do trem se difurcam em três e as três direções vão dar na mesma: a morte. No lugar onde foram os crematórios estão as construções derrubadas, ruínas, pó e destroços da barbárie. A memória do acontecido está por tudo: nas fotos das pessoas, nas cifras dos numeros de mortos,  nas placas de homenagens.
Mas o pior veio depois, em Auschwitz I, o museu. Entrando lá, de início, os judeus nao deviam achar que morreriam. Acho que essa era uma constatação a posteriori, no dia a dia das atrocidades.
Digo isso porque na entrada tem a placa tão conhecida, pois estava em todos os campos, "o trabalho liberta", e tem arvores e muitos blocos, bem construidos, e calcadas e flores - pelo menos agora, na primavera, nao é feio. O horror é quando voce entra, vê as fotos, a história contada, os objetos pessoais, as malas com objetos pessoais dos que nunca voltaram, os cabelos das mulheres. E sobretudo o horror feito com as crianças.
Em Birkenau, ao lado das ruínas dos fornos destruídos, tem varias placas, cada uma em um idioma para que nunca esquecamos. Tem uma em português. Mas foi na placa em francês que fiz meus questionamentos. Nela tinha uma coroa de flores colocada pelo grupo de teatro de Aumonerie e pela Escola de Musica de Chateaudun. E, na placa, eles escreveram assim  em frances: tant qu il y aura des etoiles.
É a letra de uma musica, que teria mais ou menos o sentido em português: mas haverá estrelas. Por que essa letra exatamente aqui, fiquei pensando. Por que achar que diante desse real, dessa barbárie inominavel, a contemplação da natureza ameniza a dor? Por que as estrelas? Transcrevo um pedaco da letra da música ao final.
Andando sobre o sol ardente, lembrava de Elie Wiesel, Primo Levi, Jorge Semprun, Simone Veil, Viktor Frankl, Anne Frank, e sobretudo Imre Kértesz, meu escritor preferido. Alguns destes sobreviveram a Auschwitz, e outros pereceram. Ou em Auschwitz, como Anne Frank, ou nao conseguiram viver depois disso e se mataram, como Primo Levi.
Alias, Kértesz faz uma lista de todos que se suicidaram depois de sobreviverem a Auschwitz.
Segundo ele, com exceção dos que pereceram em Auschwitz, todos os demais são culpados pela sua existência. Ele mesmo, que foi para la muito jovem, passou a vida se culpando por ter sobrevivido. So recentemente mudou o teor de seus escritos. Na verdade, estou escrevendo um livro sobre isso. Falta um capitulo e estava aqui em busca de uma inspiracao para as conclusões.
Mas tambem pensava em Hannah Arendt, cuja teoria contradiz Kértesz: a culpa e individual, mesmo a responsabilidade assim o é. E dizer somos todos culpados só resulta em ninguém é culpado.
Não me sinto culpada por Auschwitz, porém somos culpados e responsáveis por cada preconceito, segregação, sentimento de inferioridade mal entendido, mal elaborado. É essa a responsabilidade de cada sujeito para que a segregação ao estrangeiro, ao vizinho que criticou, que invejou, que falou mal, nao tome proporcoes gigantescas.
Temos muito a aprender. Sempre.
Saí de Auschwitz I com uma grande curiosidade e uma pergunta, que deixo em aberto. Na entrada tinha pregada no portao um fitinha com um numero: 36377. Entendi como o número de alguém que sobreviveu ou pereceu no campo. Era uma homenagem. Em um dos pavilhoes, tinha livros e livros com os números dos prisioneiros e seus nomes. Fiquei procurando o 36377 e nao encontrei. Aliás, desisti depois do primeiro livro. Quem é o 36377? Por que nao se nomear? Por que manter esse número que foi dado pelo outro, o opressor? Eu nao respondo agora com Lacan, deixo para falar disso em outro lugar. Vou responder com uma cronica de Clarice Lispector: nao somos um numero, o ser humano é maior, é inexprimivel até mesmo em palavras, quanto mais em números.
E termino com um pouco mais da musica Tant qu il y aura des etoiles.

Escrevo isso porque Charlotte me disse para atualizar meu blog com as notícias dessa viagem. Agradeçoo a ela essa chamada.


"Vivemos com a barriga vazia e em uma rua sem fim...morremos de frio e de fome. Mas apesar de tudo temos as nossas riquezas, esse vento doce, essa noite de primavera. Tudo isso é nosso. Aqui com as estrelas. Seremos sempre felizes. Enquanto há estrelas sob as abóbadas do céu". Letra e música de Tino Rossi

Domingo de páscoa, Budapeste, 24 de abril de 2011