domingo, 15 de agosto de 2010

Palavras, te amo

A obra da cineasta espanhola Isabel Coixet é impressionante, pois consegue duas façanhas. A primeira é fazer um cinema hollywoodiano com a densidade do cinema europeu; e a segunda, se repetir sempre em filmes com histórias tão diferentes. Sim, achamos que todos seus filmes falam do mesmo: o amor perdido, a felicidade inalcançável, a busca de um objeto que aplacará uma falta, e sua conseqüente impossibilidade de alcançá-lo, a relação entre as palavras e o desejo.

O cinema tem uma estética que necessita de belas imagens, finais felizes, heróis - ainda mais os hollywoodianos. Segundo Jean-Claude Carriére, em A linguagem secreta do cinema, o cinema é uma ficção, ainda que trate de uma pessoa que existiu. Alega que ele tem uma linguagem rápida, tem pressa; é o triunfo do visível. Coixet consegue tudo isso: triunfa no visível para dizer que o que realmente importa são as palavras, suas histórias secretas, as coisas não ditas, o desejo, a perda. E o amor irrealizado, sempre o amor irrealizado. E para isso usa a ficção. Aliás, não é só no cinema, é próprio da verdade ser dita a partir da ficção.

O amor perdido é o tema de todos seus filmes. Mas nesse comentário que fazemos de sua obra – que não é mais do que um elogio da mesma – enfatizaremos dois filmes: Cosas que nunca te dije e, sobretudo, Paris, je t´aime.

Cosas que nunca te dije

Em 1996 faz esse primeiro filme com atores americanos, e nele antes de apresentar os personagens, uma voz faz perguntas sobre o amor: podes amar tanto uma pessoa, que tendo medo de perdê-la, estrague tudo e acabe perdendo-a? Podes despertar ao lado de alguém que nem tinha imaginado conhecer? E estas duas perguntas retratam os protagonistas, Don e Ann. Os dois vivem o sofrimento de uma perda e o desejo que surge por outra pessoa. Don, pós-separação, buscando sentido para sua vida, participará de um projeto intitulado Disk Esperança, no qual escuta ao telefone pessoas que sofrem e, sobretudo, cogitam suicidar-se. É assim que escutará Ann, que após ser deixada pelo namorado, toma um vidro de removedor de esmaltes. Ela vive atormentada em busca de uma resposta que seu ex-namorado não pôde lhe dar: se até vinte dias atrás, ele a queria, o que aconteceu que agora não quer mais? Como isso é possível? É uma pergunta sobre o desejo, embora ela use a palavra felicidade. No telefonema em que Don a escuta, ela diz: “eu era uma pessoa feliz. (...). Quando somos felizes não nos damos conta, mas agora não tenho a pessoa que quero. Isso é injusto, deveríamos poder guardar um pouquinho da felicidade para o momento de não mais a termos, armazená-la como fazemos com os cereais em nossa despensa”.

Impossível armazenar o desejo como cereais ou um pote de sorvete Häagen-Dazs1 . O filme evidencia que o desejo está nas palavras. Em uma loja, Don reconhecerá Ann como a moça que escutou pelas palavras – sua teoria sobre a injusta felicidade – e será ela a mulher que não tinha imaginado conhecer e que surge inesperadamente. Lacan afirma que “o último sentido da palavra do sujeito diante do analista é a sua relação existencial diante do objeto de seu desejo2 . É isso Ann para Don: uma voz e uma teoria sobre a felicidade. Em sua conferência em Aracaju, no Brasil, em 2007, Carmem Gallano comentou outro filme de Coixet, A vida secreta das palavras, e alegou que “a vida secreta das palavras tem assim sua raiz no bater da pulsão esburacando o corpo”. Continuando: “o desejo, inerente à realidade sexual do inconsciente, é a vida secreta das palavras”3.

Ann grava um vídeo para seu ex-namorado em que faz o seguinte questionamento: “em que momento eu comecei a querer-te?” E a resposta: “no momento em que me ligou para dizer que me deixava. Nesse momento me lembrei do amor que sentia, da ternura, do sexo, da tua língua. Dei-me conta que o que sentia antes não era mais do que um simples reflexo do que é o amor. Descobri que não tinha te querido nunca”.

A mesma Ann que tinha definido a felicidade como impossível, agora começa a mostrar o porquê da impossibilidade. O objeto é amado no momento em que é perdido. É Das Ding. Lacan usa a teoria hegeliana para sustentar isso - o conceito é o tempo da coisa 4 – a coisa é perdida e, então, simbolizada. “Não há nada no mundo que possa adquirir valor simbólico se não é com a condição de que se possa perder”5

Essa é a grandeza desse filme: mostrar que o caminho do sujeito para a satisfação passa entre duas muralhas do impossível6. Assim, duas personagens dizem, seguindo Santa Tereza: “há mais sofrimento pelas preces atendidas do que por aquelas que não o foram. Então, tens cuidado com o que pedes”.

Paris, je t´aime

Nessa grande declaração de amor pela cidade de Paris, feita por muitos diretores, e ambientada em seus vários arrondissements e lugares históricos, Coixet encena a sua em um café na Bastille. Sérgio – representado pelo ator e também diretor Sérgio Castellito – espera sua mulher para o almoço e para comunicar-lhe que está apaixonado por outra e quer o divórcio. Repassa mentalmente todas as coisas que gostara em sua mulher e que agora o irritam. Ela chega e começa a chorar; depois de um momento de dúvida – “será que ela sabe que vou deixá-la?” – descobre que é ela quem vai deixá-lo: está com um quadro grave de leucemia. Crê que tem de estar à altura da situação, manda uma mensagem à amante – “esqueça-me” – e age como um apaixonado com a mulher, fazendo para ela todas as coisas que não fazia antes. “De tanto se comportar como apaixonado, apaixonou-se por ela outra vez. (...) E quando ela morreu em seus braços, entrou em um coma emocional do qual não saiu jamais”. E se deterá a olhar pelas ruas as mulheres com sobretudos vermelhos, que não serão mais que sombras daquela que se foi.

Quando fala da pulsão escópica, Lacan pergunta “no momento do ato do voyeur onde está o sujeito, onde está o objeto?...o sujeito não está lá enquanto tratando-se de ver, no nível da pulsão de ver” 7. E Lacan continua dizendo que o olhar é esse objeto perdido – e aí faz sentido o poema de Aragon, no começo do segundo capítulo desse seminário: um olho vazio habitado pela ausência de ti que faz sua cegueira – e repetidamente reencontrado. E Lacan responde o que o sujeito procura ver: uma ausência, uma sombra detrás da cortina é o que o voyeur procura. Ou, a partir desse filme, podemos dizer os vestígios da morte, de um objeto que já se foi, já se moveu. “Todas as coisas se movem e nada permanece imóvel”8. E com isso chegamos à frase de Heráclito, que é epígrafe do capítulo 14 do O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise: ao arco é dado o nome da vida (Bios) e sua obra, é a morte9. Lacan usa a metáfora do arco para falar da pulsão: como uma flecha, ela faz um arco, é o seu trajeto (aim) e contorna seu alvo (goal).

Os filmes de Coixet mostram-nos o que é o desejo, a pulsão e o objeto a. O objetivo desse comentário não foi mais do que elogiar a grandeza dessa diretora, que encena aquilo que estudamos. E também, mostrar um enigma com o qual nos deparamos em seus filmes. Nesse Cosas que nunca te dije após a cena inicial em que duas perguntas são feitas - e que depois ficamos sabendo que a voz é de Don - aparece uma máquina de lavar girando, girando, cheia de roupas. O primeiro encontro de Don e Ann será em uma lavanderia. Quando saem, ele olha para trás e vê que outro casal se beija enquanto a máquina roda. Também em outro filme de Isabel Coixet, Mi vida sin mi, os protagonistas se apaixonam em uma lavanderia. É como se a lavanderia fosse um limbo que permite a relação sexual acontecer, um espaço em que o encontro é possível. Por que uma lavanderia?


Andréa Brunetto, janeiro 2009.
Extrato do texto publicado na íntegra na Revista Pliegues, de psicanálise, na Espanha


Referências bibliográficas

BALDIZ, Manuel. “Lo real como trauma”. In: El inconsciente y la repetición. Documentos de trabajo de ACCEP. Barcelona: ACCEP, 2003.

BRUNETTO, Andréa. Não diga amor. Seminário proferido em 20 de março de 2008. Atividade conjunta do Ágora Instituto Lacaniano e Livraria Sub-Cultura. Campo Grande/MS.

CARRIÈRE, Jean-Claude. A vida secreta do cinema. Rio de janeiro: Nova Fronteira, 2006.

GALLANO, Carmem. “Família e inconsciente”. In: Stylus. Revista de Psicanálise da Associação Fóruns do Campo Lacaniano-Brasil. Editora UFMS, n. 15, novembro 2007.

HERÁCLITO. Os pensadores. Filósofos pré-socráticos. São Paulo: Abril Cultural, 1973.

LACAN, Jacques. O seminário, livro 1: os escritos técnicos de Freud. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1986.

LACAN, Jacques. O seminário, livro 11: os conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985.

MONSENY, J. “Como llegan los hombres a interesarse por El Otro sexo?”. In: Notas Freudianas. Revista del Grupo de Estudios Psicoanalíticos de Asturias, n. 06, 2004.

NOMINÉ, Bernard. Psicoanálisis de la vida amorosa. Venezuela: Editorial Iada, 2007.

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

John Nash em São Paulo

Caros, eis-me agora lendo a Folha de São Paulo e me deparo com uma matéria intitulada "Sociologia precisa de equações, dizem prêmios Nobel". Está no caderno Ciência. E o subtítulo: matemáticos laureados em economia estão em São Paulo; entre eles, John Nash, que inspirou "Uma mente brilhante". E tem uma foto de Nash. Ele está com 82 anos, se diz recuperado da esquizofrenia e que foi internado contra sua vontade e "ataca a eficâcia do procedimento". Está escrito assim na matéria, ele deve ter dito algo bem diferente. Mais contundente.




Durante o ano de 2006 passei estudando sobre John Nash Jr. Li a biografia "Uma mente brilhante", que deu origem ao filme e pesquisei bastante sobre a teoria dos jogos, que deu o Nobel a Nash. O artigo que escrevi sobre Nash está publicado em Metáfora 3. Sua teoria dos jogos "permite comparar, por exemplo, tipos de votação. Se as pessoas votam em apenas um deputado, é fácil ser eleito com um discurso específico, focado em um grupo de eleitores (defendendo direitos gays ou maiores salários para policiais)".... E a matéria da Folha continua. Eu não sei se Nash é que se interessou em aplicar sua teoria à eleição ou esse é o tema do momento, mas sua idéia - já deu conferências e escreveu em outros lugares - quando propôs a "Teoria dos jogos e comportamento econômico" estava em aplicar a previsão do resultado do jogo entre dois competidores em que o lema era 'eu penso que ele está pensando que eu penso tal coisa'. E assim vai. A partir dessa premissa imaginária a-a' acreditava que havia a possibilidade de ganho mútuo e que essa teoria poderia ser aplicada aos problemas econômicos e sociais.
Jonh Neumann, o matemático húngaro, outro gênio de Princeton, criador do primeiro computador, o Eniac, e um dos mentores dos projetos de Los Alamos, achava que a teoria de Nash era banal. E chega a dizer isso a Nash. Nash responde que a reação de Neumann era uma posição defensiva de um pensador consagrado contra um rival mais jovem. Mas mesmo com limitações em sua teoria, ela rendeu a Nash o Prêmio Nobel da economia.
E há sua luta contra internações compulsórias que lhe renderam muita fama também. Antonio Quinet escreve, em um capitulo de seu livro Psicose e laço social, que Nash por meio da matemática trabalha o simbólico com o real, e com ela fez a 'reconstrução do mundo'.
Eu nem sei porque estou aqui falando tanto de teoria, na verdade só queria contar para vocês a emoção que senti ao abrir o jornal e ver primeiro a foto desse senhor, nos corredores da USP, com uma pasta na mão, tão simples, tão sozinho, parecendo tão sereno na foto. E depois leio o nome: John Nash. Voando de tão longe, para chegar ao Brasil e trabalhar, aos 82 anos. Que emoção! Que emoção!

Se eu tivesse lido a matéria pela manhã e estivesse em São Paulo... Ah se eu estivesse....

Andréa Brunetto
Campo Grande, 05 de agosto de 2010

domingo, 8 de agosto de 2010

Uma viagem a Espanha

Caros amigos,


Dia 23 de setembro passado, embarquei em direção a Espanha. Para uma viagem de 15 dias pela Europa. Quase todos seriam passados na Espanha e os três últimos dias em Lisboa. Vou contar, então, minhas impressões sobre esta viagem.
Para entrar na Europa, um certo constrangimento de ter de colocar perfumes, pasta dental, cremes, enfim tudo que contém líquidos, em saquinhos transparentes. E também passar por um inquérito inicial na entrada: por que está aqui novamente? – entro sempre por Lisboa. Como responder com o desejo, quando do outro lado vem a desconfiança? À parte isso, foi uma viagem maravilhosa, de muitas descobertas, miradas e análises.
Leio, no vôo de Lisboa a Madri, no El país, uma matéria intitulada ‘Bélgica se evapora’. Um país, duas etnias. E a região de Flandres, agora mais rica e industrializada, quer sua autonomia, se separar dos valões, de língua franceses, atualmente a parte mais pobre. No dia seguinte, já no hotel em Madri, li a notícia sobre um grupo de catalães que queimaram a foto do Rei Juan Carlos, pedindo o fim da monarquia, em mais um movimento de busca de autonomia e separação que a Catalunha já mantém há tempos. Sem falar dos ataques do ETA, que a policia espanhola conseguiu frustrar, prendendo os mentores que há anos estavam escondidos, no sul da França. Estas buscas de autonomia, tendo como critério, nos três casos, a raça, seria reflexo de uma intolerância atual? De uma busca da comunidade dos mesmos? Foi esta a pergunta, a partir dessas três notícias de jornal, que me fiz no café da manhã de meu primeiro dia na Espanha.

Em Madrid, eu e minha amiga, ficamos hospedadas perto da Praça Callao, lugar central e movimentado. Em uma esquina passavam pessoas falando muitos idiomas. Centenas de pessoas que saiam e entravam do metrô, vindas dos mais distantes lugares do mundo, fazer turismo ou morar e trabalhar. Enfim, tomar Madri por pátria. Tenho uma amiga que há menos de um ano mora em Madri – antes morou alguns anos em Hamburgo – e crê veemente que Madri é sua pátria. É onde dá aulas e pesquisa, onde conseguiu amigos. Penso que uma pátria seja isso, mais do que um território. No vôo de volta para o Brasil, converso com um brasileiro, funcionário da Telefônica no Brasil, que morou e trabalhou um ano em Madri e foi convidado para ficar mais três. Exemplos de brasileiros que encontraram na cidade, sua casa.

Viajei para Madri com uma companheira de muitas viagens pelo mundo, Alba Abreu Lima, que tinha outra visão da cidade. Ela a tinha visitado há dez anos atrás: mais limpa, mais calma, mais organizada, mais típica – se encontrava tapas pelos bares. Era fácil ir de el tapeo, como dizem os espanhóis. Agora abundam Mc Donald´s, KFC e Starbucks. Madri tem outra cara, é uma cidade do mundo, de muitas cores e línguas. Talvez como São Paulo ou Nova York.

Ernesto Sábato, em seu livro España en los diarios de mi vejez, conta sua ida a Madri em 2002, com mais de 90 anos e acreditando que é sua última viagem ao país. Ele sente uma certa decepção e, sobretudo uma nostalgia, da Madri de outrora. Alba também sentiu essa nostalgia. Sabato diz que os imigrantes de agora, que vê pelas ruas, são diferentes dos de outrora, que buscavam aventuras, estes buscam comida, pão. E ele conta também que passava mal com o calor espantoso. Eu, cá do Mato Grosso do Sul, já estou acostumada. Alba ficava incomodada com a falta de umidade do ar. Eu, do centro do país, que antes de viajar, Campo Grande estava com umidade em 10%, nem notei. Espero que Alba não se incomode de eu estar comparando sua nostalgia com a de um homem com mais que o dobro de sua idade, mesmo que seja Sábato.

Mas Madri tem o Museu do Prado, o Thyssen-Bornemisza e o Museu da Rainha Sofia. Ver As meninas, de Velásquez e Guernica, de Picasso, motivos mais do que suficientes para ir a Madri.

Pudemos ver, no Centro Cultural de la Villa, um exposição chamada Deuses: modos de emprego, que mostrava a diversidades de religiões na Europa. Uma exposição e, juntamente, um teatro sobre esse busca religiosa que “volta com força em nossa sociedade”. As várias religiões estavam contempladas. Quanto ao Brasil, faltou mostrar a força das igrejas evangélicas, embora em um item chamado ‘figuras carismáticas’ aparecesse Edir Macedo, com nomes como o do criador da cientologia.O texto da exposição e do teatro é do dramaturgo belga Philippe Blasband.
De Madri fomos a Andaluzia – Granada, Córdoba e Sevilha – conhecer a herança moura da Espanha. Granada e Córdoba são cidades em que a população é mais fechada para o estrangeiro, vivme do turismo, mas mesmo assim, mantêm um certo desprezo ao outro.

Em Granada descobrimos que iríamos ter de enfrentar fila de madrugada para conseguir ingressos para ver a Alhambra. Acordei ainda escuro, peguei o ônibus e, sem escutar o som dos sinos de Granada ao amanhecer, como Garcia Lorca diz em seu poema, esperei três horas para comprar ingressos. Junto com mais dois mil turistas do mundo inteiro.
Na Alhambra, a fortaleza vermelha, tive uma certa decepção, apostava que estivesse mais preservada. Mesma decepção que em Córdoba: Medina Zahara estava em restauração, pois estava quase toda destruída. Tinha lido um romance sobre ela – À sombra das romanzeiras, de Tariq Ali – e esperava encontrar algo desse passado que o autor retratara. No táxi, indo à estação de trens, o motorista diz que se parece que os reis católicos destruíram esse passado mouro – creio que ele percebeu minha decepção, sem que eu a tivesse formulado mais precisamente – os mouros destruíram o passado romano. É realmente assim a história da mesquita de Córdoba: construída a partir do ano de 785, por Abderraman I, e inspirado na mesquita de Damasco, sua fundação se sobrepôs à igreja de São Vicente. E depois, Fernando III e Isabel, em 1236 reconquistam a cidade e constroem a catedral sobre a mesquita. É a história de toda dominação: quem vence, tenta apagar as conquistas do vencido.
Assim, a busca de um passado mais longínquo ficou meio frustrada. Ainda mais se comparar com a viagem do ano anterior, em que na cidade de Trier, oeste da Alemanha, as ruínas romanas foram conservadas. E, mesmo na cidade de Luxemburgo mantêm-se construções de mais de dez séculos.
E chegamos a Sevilha, o melhor da Andaluzia: mais aberta para o mundo, com pessoas mais acolhedoras. Com mais arquitetura preservada. A Praça de Espanha é o exemplo mais rico, mais lindo da arquitetura andaluza. Belíssima. Só vê-la – e tirar cerca de cem fotos dela, como Alba o fez – valeu a viagem. Tem a Torre de Ouro, a Giralda, a Catedral, a terceira maior do mundo. Linda, linda. Por fora, pois estava complicado entrar: havia uma greve de funcionários que estava fechando a maioria das portas. Não me incomodei de só tirar fotos de fora, pois não tinha lido em guia nenhum que lá tivesse uma obra importantíssima. Então, paciência.
Aliás, em Madri também vimos greve. Só que da polícia.
Perguntei a várias pessoas porque lá as pessoas eram diferentes, dois espanhóis, em situações diversas, me disseram que mesmo para eles, o povo de Córdoba e Granada, era fechado; que eles, sevilhanos, aceitam mais o turismo, estão mais acostumados. Creio que a história é mais antiga. É uma cidade de porto, dali Colombo sair para descobrir novos mundos. Na torre do Ouro tem muitos quadros, de vários séculos, que mostram as pessoas indo à torre à espera de novos navios que chegavam pelo rio Guadalquivir.

Frederico Garcia Lorca diz que Sevilha é uma cidade para se ferir, para sempre se ferir. É “uma cidade que espreita longos ritmos e os enrosca como labirintos. E quanto a Córdoba, diz que é uma cidade para morrer. Escreve isso em poemas diferentes. O que será que quer dizer?
Nesse diário de Sábato que citei antes, ele conta que pegou o trem rápido em Madri e foi a Sevilha. Fala do trem luxuoso e de grande velocidade, diferente do de suas lembranças, mas que dava para ver os olivais e o entardecer. Também fomos no AVE, o trem rápido de que ele fala. Mas tenho que dizer que o trem foi bem confortável.
Na estação de trens de Córdoba havia uma exposição sobre a diversidade. Os dados apresentados sustentavam que 10% da população da Espanha é de estrangeiros. Eu cá sem a mínima condição de provar o contrário, acho que esse índice está subfaturado. E mais, acho que a Espanha se fez de estrangeiros: de árabes, romanos, de europeus de outros lugares. É uma terra de muitas línguas desde o começo.
E creio que essa mistura está em toda a Europa. Em Lisboa é só freqüentar o metrô para ver: africanos de Angola e Moçambique e, também, Cabo Verde. Muitas línguas misturadas com o Português. E vou usar meu último dia de viagem como exemplo. Fui ao Museu Calouste Gulbenkian. Repleto de quadros importantes de impressionistas e pintores flamencos, e também arte oriental, toda sua obra veio de uma doação que Calouste Gulbenkian, um armênio que fugindo da II Guerra Mundial, adotou Lisboa como morada e, depois, doou para ela toda sua coleção de obras de arte.
Vocês devem ter percebido que gostei muitíssimo da viagem. Acordava cedo, animada e saia para andar horas pelas ruas das cidades. A cidade que mais gostei foi, sem sombra de dúvidas, Sevilha. Sai dela com a maior parte das lembranças de viagem: reprodução da Torre do Ouro em miniatura e em pintura, estatueta de uma dançarina flamenca. Todas, com um bocado de sacrifício, chegaram inteiras. E, claro, trouxe um belo xale flamengo. Olé.

Andréa Brunetto
Campo Grande, 11 de outubro de 2007

Desejos secretos

A história de Sidonie C., a paciente homossexual de Freud

Acabei de ler essa biografia que retrata a vida da “jovem homossexual”, paciente de Freud, e gostaria de comentá-la com vocês. Não é uma resenha, pois vou mesmo comentar até o final do livro, e dizer porque a achei uma pessoa detestável. Então, já vou avisando que quem for ler o livro, pare de ler este texto agora, pois contarei até a página final. Bom, aos que querem continuar, vamos lá....

Escrito por Inês Rieder e Diana Voigt, duas escritoras vienenses, que chegaram a Margarethe Csonka - esse é o nome verdadeiro da paciente de Freud – pois eram amigas da filha de Sylvie Dietz, uma das melhores amigas de Gretl. O livro foi publicado em Viena em 2000, embora o prefácio das autoras seja assinado em 1999. Nesse momento a biografada estava viva, com 99 anos, e não gostaria que, enquanto vivesse, seu nome verdadeiro fosse revelado. Então Rieder e Voigt optaram em nomeá-la como Sidonie Csillag. Logo em seguida, Sidonie-Gretl falece, aos cem anos de idade. Então, no prefácio desse nova edição, as autoras contam seu nome verdadeiro, como tinha sido autorizado pela biografada que o fizessem apenas após sua morte.

O pai de Sidonie – vou chamá-la assim, como está nomeada em todo o livro – é um húngaro que, após o casamento, vai viver em Viena. Começa a fazer sua fortuna trabalhando como administrador nas refinarias de óleo mineral dos Rothschild e vai, posteriormente, fundar sua própria refinaria de petróleo na Galícia. Antal Csillag é um petroleiro e casado com Emma, uma mulher extremamente bonita, a mãe que Sidonie vai atribuir a culpa por todos seus sofrimentos. Até mesmo quando já tem 96 anos, a mãe já se foi há anos e ela não se questiona sobre suas escolhas: a culpa é da mãe. Isso fica impressionante no livro todo: sua desresponsabilização pela própria história, pelas próprias escolhas.

Embora, é claro, a mãe seja uma mulher vaidosa demais, fútil demais, competidora com todas as outras mulheres que passem na frente. A filha, sobretudo. Isso Freud já tinha mostrado em seu artigo, embora não tenha contado detalhes das histórias que Sidonie contou a ele. Por exemplo, ela contou a Freud que foi a uma estação de águas passar uns dias com a mãe, e sua mãe flertou com vários homens e a apresentou a eles como sua irmã mais nova. E há outras histórias do mesmo gênero que não relatarei aqui.

A biografia é repleta de fotografias, começa com uma de Sidonie ainda menina. Tenho que concordar com Freud que era muito bonita. E, logo em seguida, uma foto da Baronesa Leonie Puttkamer, a “dama de reputação duvidosa”. Ela vem de uma família nobre alemã, empobrecida, sustentada por um ou outro homem rico até se casar com um que se apaixona por ela. Ela, então, pode envolver-se nos relacionamentos que realmente a interessam: sua paixão pelas mulheres.

Aqui já vou fazer uma leitura minha que não aparece no livro: creio que essa nobreza da dama tem importância enorme para Sidonie: Antal, seu pai, é judeu, mas vai batizar todos os filhos na religião católica; é húngaro, o que pressupõe uma certa desvalorização diante dos vienenses, que se consideram a mais fina flor do império recém decaído. Fica evidente essa nostalgia de um poder que já se foi. Sidonie, posteriormente, se casará com um homem que vê pela primeira vez como cavaleiro na hípica e que descobre ser um oficial da ex-monarquia. Esse homem, que vai trabalhar para os nazistas, esconde seu desprezo por eles, pois continua a acreditar na monarquia passada, sonhada, idealizada. E a própria Sidonie é também assim a vida inteira: quando o irmão casa-se com uma camponesa francesa que salvou sua vida, escondendo-o por dois anos em um celeiro, durante a guerra, ela acha isso muito decaído; acha trabalhar também uma coisa nada aristocrática (e como não conserva seu patrimônio, gasta ele todo, tem de trabalhar. Seus irmãos não, trabalharam sempre. Nisso ela é exatamente igual a mãe e não percebe). Faz um elogio ao regime de Franco, pois visita a Espanha várias vezes e chega a morar lá. E por aí, vai...

Essa baronesa a quem Sidonie vai ter um amor contemplativo, ao estilo do amor cortês - exatamento como Lacan define no Seminário X, sem ter à época todos os detalhes do caso que agora podemos saber – além de tudo é de uma fina família alemã. Ela vai ser acusada pelo marido de tentar envenená-lo (o que as biógrafas querem saber de Sidonie se é verdade e ela não diz nada, fica em silêncio) e, já na cadeia, nessa história rumorosa que tomou conta da Viena dos Anos 20, o marido a denuncia por lesbianismo. Crime à época. Sidonie vai ajudá-la em tudo, arranjando advogado, escondendo as cartas que evidenciam o lesbianismo, etc. Mas o que gostaria de salientar: não há, nos mais de 8 anos em que Sidonie fica próxima de Leonie, um beijo sequer, um contato físico mais próximo. Também será assim com Fritzl, o homem ao qual ela se apaixonará e que lhe faz uma declaração de amor e morre na semana seguinte.

Antes desse episódio com Fritzl, Sidonie estava às véspera do casamento com Klaus, filho de um rico industrial vienense, a quem a família fazia muito gosto que ela se casasse, e ela no desespero, sabendo que não tinha desejo por homens, que lhe causava asco uma língua em sua boca, bem como aquela “coisa” que os homens têm entre as pernas, e ela tentou o suicídio dando-se um tiro no coração. Foi sua terceira tentativa de se matar: a segunda foi com uma ingestão de remédios e a primeira já está descrita por Freud. Mas não deu certo nem na terceira, pois a bala passa milimetricamente ao lado do coração, perfura o pulmão, ela quase morre, fica internada por tempos, sobrevive e morre aos cem anos.

O mais detestável que eu achei foi sua visão sobre o extermínio dos judeus. Isso foi uma coisa quase insuportável de ler: ela não se considera judia, pois nasceu e já foi batizada na religião católica então é uma injustiça ser considerada judia pelos nazistas. Não há uma indignação pelo genocídio, só há indignação muito pontual, quando, por exemplo, Wjera, a mulher que ela ama, tem o marido judeu enviado para Dachau. Essa mancha que foi o Holocausto não a atinge. E isso ela sendo judia. Isso que atinge a humanidade como um todo. É assim que Imre Kertész vê: só não são culpados por Auschwitz os que morreram lá, até mesmo ele, um sobrevivente, é culpado. Sidonie não é culpada de nada. E nem fica indignada. A única parte em que ela fica indignada com Deus é quando morre seu macaquinho Chico: “após a morte de Chico, cheia de amargura, deixara de acreditar em Deus”. E isso anos depois do Holocausto! Chega, não vou dizer mais nada sobre isso, porque já é evidente. Mas tem outras situações idênticas a essa.

Wjera Rothballer era uma mulher que Sidonie amou contemplativamente por anos, e com a qual teve, depois, um caso. Bela, tal como Leonie Puttkamer, era filha de uma aristocrática família de Nuremberg. Sidonie passa a ter relações sexuais com ela muitos anos depois do fim da Segunda Guerra; ela viúva, o marido morreu debilitado logo após ser libertado de Dachau, envolve-se com Sidonie. Ela se afasta de Sidonie meses depois, enviando uma carta dizendo a Sidonie que nunca mais se aproxime dela. Sidonie vai tentar em vários momentos retomar, mas nem a porta de seu próprio apartamento Wjera abre para Sidonie. E Sidonie conta que era porque brigavam muito, pois Wjera não gostava de seu cachorro. Será que ela quer que acreditemos nisso ou ela própria acreditou? Não sei, tenho dúvidas.

O livro vale a pena ser lido, pois as duas autoras são precisas ao contar a história de Sidonie, situá-la historicamente no contexto europeu, explicar quem são os personagens. Se a história tem brechas, como por exemplo, esta que relatei acima, é pela posição da biografada: a última coisa que quer saber é da verdade. A única falha que atribuo às autoras é que quando falam do envio de alguém – não lembro agora quem foi no contexto da história de Sidonie – para Auschwitz não conseguem dizer o nome, apenas colocam “campo de extermínio na Polônia”. Auschwitz soa pesado demais, um palavrão, palavra que queima escrevê-la e amenizam com o tal campo de extermínio. E também elas não se posicionam em momento nenhum em julgar Sidonie, ao contrário, são um tanto condescendentes com ela. Mas não vou analisar a posição das autoras, pois não tenho dados para tal.

Mas a cena das últimas páginas em que iria mostrar para vocês que ela continua no ressentimento e vingança ao pai – é assim que Lacan diz no Seminário X – transposto para o que ela fala de Freud, não vou contar, senão perde a graça. E assim vocês ficam com vontade de ler o livro. Mesmo que ela seja a última pessoa que alguém gostaria de ter como vizinha. Pelo menos foi essa a conclusão a que eu cheguei.

Andréa Brunetto, Campo Grande 05 de outubro de 2008.

Dia de tristeza infinda: Saramago morreu

Gostar é a melhor maneira de ter, ter é a pior maneira de gostar
Saramago foi um homem simples, um serralheiro que aprendeu tarde a ler, e depois, como uma surpresa, começou a escrever livros. De serralheiro, passou a entalhar palavras. Escrevia como vivia: de um jeito simples. Conta uma história que seu editor, ao receber o manuscrito do primeiro livro, queria colocar pontos, vírgulas, parágrafos, em sua escrita. Mas ele não aceitou. E então, ficou para nós essa escrita como uma associação livre, que toca para além do Eu.

Escuto agora todas as matérias sobre sua morte. A imprensa, quase unanimemente, diz: era tão pobre, de família tão pobre, tinha tão poucos recursos. Por acaso um escritor sai da riqueza? Por acaso sai da academia? Um escritor sai de sua história.

Há cerca de três anos quase morreu. Mas sua mulher Pilar lutou contra. Ele dizia a ela que tinha chegado a hora. Ela respondia que não. Já tinha desistido de escrever, mas como ela não aceitava que ele morresse, resolver escrever mais um livro. E saiu A viagem do elefante. Que tem como epígrafe: a Pilar, que não me deixou morrer.

Escreveu outros depois desse.

Em dezembro do ano passado, no avião, abro a revista da TAP e começo a ler uma entrevista feita recentemente com José Saramago. Nela faz o mais belo panorama de sua vida, de sua escrita e de seu encontro amoroso com sua atual mulher, a jornalista espanhola, Pilar.

Relata que tem dois lugares no mundo, Lisboa e sua ilha de Lanzarote e não sabe mais qual deles é seu lugar no mundo: a Lisboa, onde se fez homem e escritor ou Lanzarote, a ilha que escolheu para viver.

Das viagens que fez pelo mundo, respondendo a uma pergunta da jornalista Ana Sousa Dias, diz que a viagem mais importante é a viagem “das pessoas e das coisas, no tempo”. E conta sobre as casas que construiu: “Fizemos esta casa, fizemos outra em Lisboa. Nunca tive casas, nunca tive bens de raiz, e agora tenho tudo, a começar por uma mulher extraordinária que foi a grande sorte de minha vida. E não é pela comodidade da pessoa que envelhece e que tem a seu lado alguém a quem quer, a quem ama e que sabe que é amado e querido por essa pessoa. Não é isso. Escrevi em “Cadernos de Lanzarote que se tivesse morrido com 67 anos, antes de conhecê-la, teria morrido mais velho do que sou agora, porque ela veio trazer – nem sei dizer o quê – a felicidade, sim, mas a felicidade é uma palavra curta, veio trazer outra coisa, um sentido de vida novo. Mesmo assim, isso não diz tudo”.

Em parte sua afirmativa que Pilar tem todos esses méritos é mentira: são seus próprios recursos – e os jornalistas do mundo só falam de sua ex-pobreza – que lhe permitiram viver com tanta sorte e ser feliz com uma mulher. Mas atrás dessa mentira/ficção que conta-nos, fala uma verdade: a verdade mais estrutural de todo ser humano, de que somos orientados para o Outro. Vivemos pelo Outro e até deixamos de morrer pelo Outro.

Embora Saramago tenha tantos recursos, viveu a vida não como Poros e sim como Pênia – estou fazendo analogia com o mito de nascimento do amor – sempre pobre, simples, dormindo em chão duro, pelos caminhos. Por isso a surpresa de ter escrito livros, por isso a surpresa de ter tido casas.

Sei que ele como um serralheiro das palavras, esculpiu com sua obra, seu nome no mundo, mas hoje, especialmente hoje, não estou aceitando sua morte. E penso que a literatura nunca será a mesma. Estou muito, muito triste: nada mais de novos livros de Saramago, nada mais de entrevistas com Saramago nos dias que virão.

Campo Grande, 18 de junho de 2010
Andréa Brunetto

A pobreza do amor em tempos de capitalismo

Na música Chão de estrelas, o compositor Sílvio Caldas conta-nos de um amor que floresce na pobreza, no morro do Salgueiro, no barraco, em que as roupas são trapos dependurados na cadeira, em que a porta do barraco era sem trinco e o teto era furado, e a lua, furando o zinco, salpicava de estrelas o chão. Assim, sua amada pisava sobre os astros distraída. Eis uma riqueza poética para falar das condições em que floresce o amor. O amor nasce na pobreza. É essa a teoria dos artistas- Sílvio Caldas é um exemplo, eu poderia usar outras dezenas de exemplos – dos filósofos e dos psicanalistas.

Platão, em sua obra “O banquete” constrói um mito para falar do amor: ele é filho de Poros e Pênia, o recurso e a pobreza. Mas é a pobreza, Pênia, que com seus subterfúgios, se deita com Poros e concebe o amor. O banquete é composto de vários discursos sobre o amor, é nele que um dos participantes apresenta a idéia moderna do encontro amoroso como um reencontro de duas metades, de um ser humano inteiro e pleno que foi cortado ao meio e jogado pelo mundo, a correr desesperadamente à procura da parte faltante, sua outra metade, seu complemento. Hoje em dia, “modernizamos” o discurso e fala-se em duas metades da laranja, a tampa da panela, mas enfim, a idéia de que quem ama está à procura, algo lhe falta, é o chão, nem sempre de estrelas, de todas as histórias amorosas.

Espero ter deixado claro, então, que o amor não tem relação com situação econômica, mas com uma economia do desejo, da busca, desse desespero que empurrra o ser humano para tantas encruzilhadas. É por isso que o psicanalista Jacques Lacan afirmou que “toda ordem, todo discurso aparentado ao capitalismo deixa de lado o que chamaremos, simplesmente, as coisas do amor, meus bons amigos”. Dizendo de outra forma, no lugar onde se crê que há um objeto que esconde, suplanta, tampa essa “pobreza” própria do humano, o amor não acontece. Se você crê que os objetos que vai adquirindo pela vida, não apenas de consumo, mas de identificação também – “eu sou fulano de tal”, “eu conquistei tal coisa” – servem para dizer seu ser, lhe bastam, o amor não acontece.

Mudando agora de compositor, Chico Buarque de Holanda, em sua música “Suburbano coração” se pergunta se o amor vai entrar na casa, se ele vai pôr os pés no conjugado coração, se ele vai sentar no chão. Novamente um chão e uma pobreza do amor.

O amor, assim como a literatura, parodiando um poeta, é feito para os homens insatisfeitos com a vida que têm, os que querem algo diferente, àqueles a quem a falta incomoda, só a estes o amor pode chegar de surpresa – o amor sempre chega de surpresa – e o chão ser um tapete de estrelas.

“Hoje em dia ninguém ama ninguem, as pessoas só pensam em materialismos”. Uma frase como essa é muito escutada, em suas várias versões, na clínica psicanalítica e em outros discursos também. Quanto mais o capitalismo triunfa, com seus gadgets e sua oferta infinda de objetos, mais o ser humano comparece com sua pobreza. Então, a verdade da queixa supracitada é relativa.

Sobre o amor, suas faltas, sua pobreza e suas fronteiras, falaremos em Joinville no dia 12 de junho, data mais-que-perfeita para falar do amor.

Andréa Brunetto

Artigo publicado no jornal de Joinville em 12 de julho de 2010

Sobre Irène, Briseida e a imagem que não reina

Irène, último filme de Alain Cavalier, lançado em 2009, trata da morte de sua amada, ocorrida quase 40 anos antes. Irène, sua mulher, uma ex-miss França que ele tentou transformar em estrela, mas que morreu antes, sofreu um acidente de carro em 1972. E ele, o diretor, retoma seus diários de 1971-73 para nos mostrar as cenas da vida cotidiana, pequenos acontecimentos, o dia-a-dia com Irène.

O texto do diário é lindo, sensível, uma verdadeira poesia, mas o que queria ressaltar é que o diretor, com a câmera no ombro, um homem já idoso, é quem mostra seu descompasso e sua relação com Irène. Com as palavras e com as imagens é ele que nos captura.

No filme, praticamente um documentário, também uma busca de qual mulher representará Irène, aparece Sophie Marceau se oferecendo para representá-la, mas ele não escolhe nenhuma atriz para ser Irène. Há uma única imagem, mas não é Irène: ele coloca uma cena de um filme antigo que fez, A chamada do amor, com Catherine Deneuve. Mas só uma cena rápida e também não é Deneuve que será Irène: nenhuma imagem representará Irène. Só os significante tirados do diário e o anagrama de seu nome com o qual brinca: Irène, reine, renie.

Cavalier está muitos anos atrasado ao evento, quando faz seu filme. Digo isso porque a cena que o martiriza é essa: Irène o chama para passear, ele responde ‘espera’. Ela o chama novamente e pede que se apresse, ele responde novamente ‘espera um pouco mais, ainda’. Ela sai, pega o carro, sofre o acidente e morre.

Essa cena lembrou-me duas coisas. A primeira, duas frases de “La chanson des vieux amants”, conhecida música do cantor belga Jacques Brel, em que o tormento dos amantes se evidencia na discrepância no tempo: “Claro que você chora um pouco cedo demais, e eu me dilacero um pouco tarde demais”.

E a segunda associação que faço com o filme é o segundo paradoxo de Zenão de Eléia, Aquiles e a tartaruga, usado por Lacan para sustentar que a relação sexual não existe. No Seminário 5: as formações do inconsciente, que estamos estudando agora no Ágora, no capítulo 6, Lacan afirma: “Tudo o que diz respeito à linguagem procede por uma série de passos semelhantes àqueles com que Aquiles nunca, nunca chega à tartaruga” (p.107). E no capítulo seguinte retoma Aquiles e a tartaruga: “...nada da demanda, desde que o homem entrou no mundo simbólico, pode ser alcançado, a não ser por uma sucessão infinita de passos de sentido. O homem, novo Aquiles, perseguindo uma outra tartaruga, está fadado, em razão da captação de seu desejo no mecanismo da linguagem a essa aproximação infinita e nunca satisfeita, ligada ao próprio mecanismo do desejo, que chamaremos simplesmente de discursividade” (p. 127).

E no “Seminário 20 Mais, ainda”, Lacan retoma o paradoxo de Zenão para sustentar que não se alcança o Um: “quando Aquiles dá um passo em direção a Briseida, ela tal como a tartaruga, adiantou-se um pouco”. E acrescenta, mais adiante: “E é preciso que Aquiles dê o segundo passo, e assim por adiante.....Aquiles, é bem claro, só pode ultrapassar a tartaruga, não pode juntar-se a ela. Ele só se junta a ela na infinitude” (p.16).

Cavalier, Aquiles moderno, como todos nós, sabe que não há imagem que faça alcançar Irène – Irène é uma Briseida moderna, mil vezes perdida - e se ele chega até onde ela estava, ela já se foi, não está mais. Só lhe resta brincar com o significante, deixar o desejo escorrer nessa ‘aproximação infinita’ com a qual não se alcança a demanda. É Alain Cavalier, o artista, que nos ensina que a imagem não é rainha.
Andréa Brunetto